Dia 4 – De bicicleta: Velho Cemitério de Gyumri, Parque Central, Fortaleza Negra & tarde de estúdio
Acordei às 4 da manhã com sede, a transpirar loucamente, por causa da constipação. Amornei água para beber e voltei para a cama. Enviei uma nova mensagem aos responsáveis da residência a perguntar quem é que autoriza ligar o aquecimento: nem que que eu tenha de falar com o presidente da Arménia, este aquecimento tem de funcionar enquanto eu estou no estúdio a pintar, parada durante horas, nestas manhãs frias. Durante a noite não é necessário, tenho cobertores que nunca mais acabam, o problema são as manhãs frias e eu no estúdio a pintar. Hoje estão 10 graus de manhã (50 Fahrenheit) e dão 28 para a tarde (82 Fahrenheit). Os gyumritas têm um tempo de extremos. (“Gyumritas” é o gentílico de Gyumri!)
São 6 da manhã e eu tomo já dois comprimidos Ben-u-Ron de 500 gramas cada. Esta constipação ataca-me a coluna, é impressionante. Sinto arrepios na coluna.
A amornar água, para beber. Bebo sempre água morna, seja verão ou inverno. Sobretudo agora que estou constipada. Curiosamente este hábito de beber água morna começou exatamente com uma constipação, há anos atrás.
O destino esta manhã é o Velho Cemitério de Gyumri, que fica a 8,8 km de distância, e o caminho é a descer. Mas são apenas 58 metros de descida, é quase insignificante.
Não se deixem enganar pela calma desta rua: são 7h12. Daqui a pouco vai estar um trânsito infernal.
Patrulhas constantes da polícia, e sempre de luzes acesas. Sempre que estão de serviço, têm as sirenes acesas.
Esta cadelinha decidiu seguir-me na bicicleta. São 7h29.
Ali vem a cadelinha a correr atrás de mim. Estou tramada.
A 0456 não me larga nem por nada. São 7h56. Outros cães atacam-na pelo caminho e eu tenho que defendê-la. Aqui nesta rua foi atacada por um cão enorme. Eles são territoriais, não podem entrar nos territórios uns dos outros assim sem mais nem menos. Tive eu que fazer frente ao outro cão e acelerar na bicicleta, senão ainda matava a cadela. E ela a correr atrás de mim. Já é delicado andar no meio do trânsito sozinha na bicicleta; com um cão atrás de mim, ainda mais delicado é. Ela pode ser atropelada, eu estou na estrada. Enxotei-a várias vezes, claro, e dois homens tentaram ajudar, também a enxotaram. Ela ficou ao longe a olhar, com ar de sonsa, e quando eu retomei o andamento, veio atrás. Estou tramada mesmo. E atravessar a estrada, com 5 e 6 faixas a esta hora cheias de trânsito? Nestas circunstâncias ela tem que se manter junto a mim, não pode ficar para trás.
Chegámos ao Velho Cemitério de Gyumri. São 8h03. Agora temos que atravessar uma linha de comboio.
A água está limpa, a fotografia é que não permite ver. O recipiente tem terra no fundo, mas a água está limpa, é da chuva.
A bicicleta fica aqui presa com o cadeado, não vá um morto querer dar uma voltinha nela.
Conforme descrevi noutras viagens, é prioritária a visita aos cemitérios dos países por onde passo, bem como o conhecimento dos hábitos e rituais fúnebres das várias culturas. A forma como um país – uma determinada sociedade e cultura – encara a morte, e cumpre rituais fúnebres, varia sobremaneira de país para país, e eu tenho tido oportunidade de observar isso, pela Europa, América, Ásia, África, Austrália. Um cemitério em Timor-Leste, por exemplo, é ricamente colorido. As campas apresentam tons claros: azuis, verdes, amarelos. Nos verdejantes cemitérios em Viena de Áustria, as pessoas andam de bicicleta no seu interior, sentam-se e leem um livro; e aqui passeei de bicicleta entre os túmulos de Beethoven, Mozart e outros. Alguns cemitérios possuem vastas planícies de relvados. Outros, densa vegetação, que praticamente impede a passagem de quem os visita (e não é por abandono, é mesmo uma opção). Outros cemitérios ostentam orgulhosamente os seus túmulos para quem passa na estrada – é o caso da Hungria (ao longo de quilómetros, os túmulos saudavam-me, à minha passagem na bicicleta). Outros países – como é o caso de Portugal – por seu turno escondem-nos atrás de muros.
Toda a filosofia de vida de um povo manifesta-se na morte.
Deixo alguns links dos cemitérios de outros países, que mostrei nestas crónicas, ao longo dos anos. Eu diria que o mais bonito foi o da Gronelândia, mas porque não estou habituada a neve. É um cemitério branco. Os de Timor-Leste são os mais originais, de tão coloridos que são. Os da China têm paisagens grandiosas, porque os seus mortos querem ficar a ver bem longe.
Amazónia brasileira (link)
Áustria (link) – túmulos de Beethoven, Mozart e Schubert, entre outros
Bulgária (link)
China (link 1; 2; 3; 4; 5)
Dinamarca (link) – túmulos de Kierkegaard e de Hans Christian Andersen
Gronelândia (link)
Hungria (link 1 & 2)
Ilhas dos Açores, Portugal (link 1; 2; 3; 4)
Índia, cemitério hindi (link)
Índia, cemitério cristão (link)
São Tomé e Príncipe (link 1; 2; 3)
Timor-Leste (link 1; 2; 3; 4; 5)
Que eu me recorde ainda não tinha visto estes relvados num cemitério, depois de dezenas de cemitérios visitados por todo o mundo. Esperemos que o utente desta campa tenha tido cães, durante a sua vida, e receba este bem, nas suas brincadeiras e inocência.
Alguém se esqueceu das chaves ali.
Até na morte põem as pessoas numa prisão.
Está a fazer exercício físico. É uma boa escolha de local, tranquilo.
Eu nunca piso túmulos, mas confesso que nesta selva amazónica tive que passar por cima de um ou dois, porque não há passagens.
1952 – 1980. 28 anos, portanto.
De regresso ao centro de Gyumri. São agora 9h42. A cadelinha continua atrás de mim. Ela não pode ir comigo para Mush, a estrada é demasiado arriscada, são 5 km de distância; eu tenho que deixá-la aqui no centro de Gyumri, onde a apanhei, e no ambiente que ela conhece.
Passámos na rua central, pedonal, e ela foi atacada por sete ou oito cães; aqui teve a população que intervir, eu sozinha já não consegui. Os cães desta rua estão gordos, são alimentados pelos restaurantes, e cada boca que chega é comida que lhes é roubada; são ferozes para qualquer outro cão que chegue.
Questão: como esconder-me de uma cadelinha 0456?
E foi aqui mesmo, nesta rua, que se deu a minha fuga. Ela entrou para uma esplanada, de um café (seria um café ou um restaurante?) onde estava um homem, que me pareceu um turista, que lhe fez festas, e ela ficou lá a pedinchar comida, como está habituada com certeza. Eu fotografava a rua, por esta altura, quando olhei para trás e a vi entretida com ele. Olhei para ele, e ele olhou para mim, sorriu, e eu montei a bicicleta e fugi a toda a velocidade.
Escondi-me dentro desta igreja, depois de ter estado escondida atrás dela, algum tempo, em pé, com a bicicleta pela mão. Senti uma tristeza profunda ao avistar o corpinho escuro da cadela, parado, com as orelhas caídas, no meio das pessoas que caminhavam, à minha procura. Ela ainda correu, mas a bicicleta foi mais rápida, e perdeu-me.
Estive quase meia hora aqui sentada, sozinha, sem mais ninguém. Triste com a miséria de vida que temos – de todos, da humanidade.
São 11 da manhã e voltei a pedir um prato de carne de vaca, e desta vez sugeriram-me o “Grandma’s Tolma”, que está na fila do meio, em baixo. O menu diz: “carne de vaca, folha de videira, matsoon” (2800 drams, 6,67€). Matsoon é um produto lácteo fermentado tradicional da Arménia, semelhante ao iogurte. É feito a partir de leite de vaca, cabra ou ovelha e tem uma textura cremosa e sabor ligeiramente ácido.
Este sorriso está um pouco forçado, mas não fiquei bem disposta com a história da cadelinha. Virei a pintar em breve a que será a minha pintura preferida entre as 15 que finalizei nesta residência artística, e onde falo deste episódio do Velho Cemitério de Gyumri. Tornou-se a preferida por questões formais e plásticas também, não só pelo significado.
Os rolos têm carne picada dentro e esta é uma das receitas tradicionais da Arménia.
Sobrou um rolo de carne, que eu fui oferecer a estes leões furiosos. Mas eles estão gordos e satisfeitos, não me ligaram nenhuma. Pus o rolo de carne à frente do nariz do da frente, e ele lá fez o favor de comer a carne picada – já que insisto… Nem se levantou. Estes cães são mesmo uns sortudos, e bem que podiam dividir um bocadinho da comida com os outros de Gyumri.
Aqui apareceu outro cão estranho, e foi a matilha toda atrás dele. Parecem ursos polares, os cães da Arménia. Uma vez mais a população teve de intervir e enxotar os cães, e defender o outro desgraçado, que ia sendo comido vivo. A rapariga do cabelo vermelho ainda está a acalmar um, com a mão.
É meio-dia, é cedo ainda para regressar ao estúdio. Ao ver no mapa que a Fortaleza Negra fica aqui perto, decidi ir visitá-la.
No caminho passei pelo “Central Park”, e decidi entrar.
É um manequim dentro da cabine telefónica.
A estátua é a “Mãe Arménia”. É uma réplica da “Mãe Arménia” de Yerevan, a capital, e representa uma figura feminina a segurar uma espada. É um tributo ao papel das mulheres na defesa e na manutenção da paz no país.
A Fortaleza Negra, também conhecida como “Sev Berd”. Foi construída em 1837 durante o domínio do Império Russo. O nome “Negra” refere-se à cor escura das pedras usadas na sua construção. Desempenhou um papel significativo nas várias guerras e conflitos que afetaram a Arménia ao longo dos anos. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi usada como posto militar e teve uma importância estratégica.
Pelo que li na internet, o interior agora é usado para concertos.
Não consegui resistir a este fabuloso palco redondo, dentro de uma fortaleza negra. Não estava ali ninguém e eu subi com a bicicleta. Acabei por passar um momento um pouco embaraçoso, porque entretanto chegaram os funcionários, ou pelo menos um deles seria – três homens. E eu em cima do palco, com a bicicleta, a dizer adeus. Fiquei com a sensação, todavia, que eles estarão habituados a estas cenas, porque não me ligaram. Olharam para mim, eu baixei a mão, e eles sentaram-se a conversar, os três, como se nada fosse. Um deles ainda me perguntou: “Foto?”. Sim, anuí, e tratei de tirar a bicicleta de cima do palco.
São 13h18, regresso a Mush. São 6,7 km de distância.
Não consigo mudar as mudanças, está numa muito leve, que não me permite acelerar. Ainda estive aqui uns vinte minutos, pelo menos, e o mecânico da t-shirt branca ajudou como pode, afinou o que conseguiu, depois mostrou-me que não dá mais. O guiador também está solto, mexe-se, parece que vai cair, e eu disse ao Vahagh (creio que é o dono da bicicleta), que eu a arranjaria se o custo não fosse extraordinário. O Vahagh respondeu-me que é uma bicicleta chinesa, que não tem arranjo. Bom, agora pelo menos as mudanças passei a conseguir mudar, mas não todas, apenas as do meio. Todavia a partir de agora consigo acelerar um pouco nas retas.
Os mecânicos não queriam receber dinheiro por este serviço, e impediram-me de chegar à mesa onde eu queria deixar o dinheiro, já que eles não o aceitavam na mão. Eu lá consegui deixar 700 drams em cima de outra coisa.
São 14h30 e cheguei a Mush.
Ainda pintei quase três horas, esta tarde. Muito congestionada, precisei de tomar novamente os comprimidos Ben-u-Ron.
São agora 19h30 e eu vejo os primeiros artistas desta residência artística: a Tatiana Efrussi à esquerda, que apresentei na crónica 2 e que está no apartamento ao meu lado. Fiquei com muita pena que a Tatiana se fosse embora já amanhã, gostei muito de conversar consigo – estávamos perfeitamente alinhadas no desbravar dos transportes da Arménia, sobretudo porque a Tatiana precisa de deslocar-se no país devido ao seu trabalho: ela aborda temas como o urbanismo utópico, o imperialismo soviético e russo, e as paisagens naturais. O objetivo da sua residência era a pesquisa de locais e a acumulação de material visual como base para a futura exposição. Portanto a Tatiana tinha mesmo que deslocar-se, e o nosso interesse mútuo em descobrir o funcionamento dos transportes públicos era evidente. Foi a Tatiana quem me deu os primeiros e básicos ensinamentos sobre como deslocar-me na Arménia. A Tatiana nasceu na Rússia e está radicada em Paris. Fala russo, portanto, e consegue falar com os arménios. Todos os arménios falam e escrevem fluentemente o russo, faz parte do programa escolar. Pelo que me disseram, apenas as novas gerações começaram agora a aprender inglês na escola.
Ao lado da Tatiana está Sargis Hovhannisyan, o autor dos quadros que se encontram no meu apartamento. Em breve irei visitar uma magnífica exposição com curadoria sua, no centro de Gyumri (lá chegaremos, hei de mostrar fotos) e agora o Sargis anda ocupado com a “Gyumri Art Week”, onde é curador e organizador, em conjunto com o Vahagh Ghukasyan, entre outros. É um festival de arte contemporânea que estará patente entre 2 e 18 de agosto de 2024, em vários locais de Gyumri. Com grande pena minha, já não conseguirei visitar, pois regresso a Portugal no dia 31 de julho.
Cartaz da Gyumri Art Week, 2 a 18 agosto 2024.
Finalmente, ao lado do Sargis estão três artistas arménios: chegaram ontem, estão juntos, e vão embora daqui a três dias. Não conseguimos falar muito, por causa do inglês. O Sargis veio verificar o que se passa com o aquecimento do meu estúdio, e comparou a posição dos manípulos e torneiras, com os dos apartamentos deles. Todos têm o aquecimento a funcionar, menos o meu.
Estiveram quase uma hora de volta do esquentador e dos botões. Infelizmente não conseguiram. O Sargis disse que ia chamar um técnico.