Amazónia Brasileira
001 – Águas da Amazónia
Os relógios pararam.
Ainda no aeroporto de Lisboa, puxo a patilha do relógio de pulso para ver as horas, o relógio que em tantas viagens me acompanhou, e constato, com transtorno, que a pilha se acabou. Prestes a partir, e eu sem o meu relógio.
O Filipe não usa relógio de pulso, não gosta. E no dia seguinte foi o despertador. Acabou-se a pilha também. Ficámos sem relógios. Apenas com os telemóveis, apetrecho que nunca uso em viagens – e que se manteve desligado nesta.
Podia ser um sinal do que estava para vir – pois não foram apenas os relógios que pararam. Todo o ritmo abranda na Amazónia. É necessário abrandar. O calor é intenso, a humidade elevada, o suor escorre lentamente pelo corpo. Os relógios devem ser esquecidos, as horas devem passar-se com tranquilidade, sem pressas.
Isso. Beleza.
Juntamente com a palavra “Oi?”, serão estas as três palavras que mais ouviremos nesta viagem. Outras tornar-se-ão parte do nosso vocabulário corrente, ou mais propriamente da nossa deliciosa alimentação: tucunaré, tambaqui, pirarucu, taperebá, cupuaçu, e muitas mais.
“Águas da Amazónia” é o título de uma música de Philip Glass, composta por dez partes, cada uma com o nome de um rio. É a música que deve acompanhar esta viagem pela Amazónia, área do planeta que tanto inspira artistas por todo o mundo. Esqueçamos as horas, esqueçamos o frenético dia-a-dia, e deixemo-nos navegar pelas tranquilas águas da Amazónia.
Vamos seguir sem relógios, sem horas, sem pressas.
Vamos conhecer a grande e poderosa Amazónia.
Amazónia.
As fronteiras nacionais estão indicadas a preto. A Amazónia abrange nove países.
Mapa retirado da Wikipedia.
002 - A Viagem
Despertámos às seis da manhã, em Lisboa, e só voltámos a deitar-nos às quatro da manhã do dia seguinte, já na Amazónia – hora portuguesa. Foram 22h extremamente cansativas.
Partimos às 9.35h no avião da TAP chamado Pedro Álvares Cabral (É um bom prenúncio, comentou o Filipe ao ver o nome) e dez horas depois aterrámos em Brasília. Hora local: 15.30h. O próximo voo que nos leva para Belém, na Amazónia, é às 20.05h.
Só para recolher as bagagens e passar no controlo em Brasília foi hora e meia, algo insólito. A confusão no aeroporto de Lisboa era tal, que já estávamos convencidos que as nossas bagagens tinham voado para outro país qualquer. Mas não, mais de uma hora depois, nós já desanimados, fartos de ver malas a passar no tapete rolante, e depois o tapete parado mesmo, sem malas nenhumas, eis que aparecem as nossas duas. Respirámos de alívio. E de seguida estivemos numa fila onde um único funcionário inspecionava esmeradamente todas as malas. Ora nós seríamos pelo menos trezentos passageiros. Um colega dele, no final, resolveu acelerar aquilo, abriu outro posto de controlo e começou a passar as pessoas mais rapidamente, porque senão eu não estaria aqui hoje a escrever as crónicas. Ainda lá estaria na fila.
Deixo a nota – aproveito esta passagem sobre bagagens – para referir um ponto importante relativamente às viagens: levamos sempre connosco uma mochila com peças que permitam viver com alguma qualidade logo nos primeiros dias. E levamos também os objetos mais valiosos connosco. Máquina de barbear, por exemplo. Calções, t-shirts, chinelos, roupa interior. São pequenas coisas que se levam facilmente nas mochilas. Se as nossas malas se tivessem extraviado, claro que causaria transtorno, mas estávamos preparados para tal. Os meus calções preferidos, as minhas camisolas preferidas, o biquini, bem como o melhor calçado (sandálias para caminhadas) ia tudo na mochila comigo. O Filipe a mesma coisa. Teríamos de comprar roupa, mas já seria feito com tempo, aguentar-nos-íamos três ou quatro dias à vontade. Já tivemos uma má experiência: quando fomos a Tenerife, há três anos, perderam-nos as bagagens. Felizmente foi à chegada a Lisboa, ao menos estávamos em casa. E as malas acabaram por aparecer três dias depois.
Mas voltemos à nossa viagem. Foi uma tortura lenta, a verdade seja dita. Chegámos quase mortos à Amazónia. O voo da TAP foi terrível, estivemos dez horas fechados num avião com lugares minúsculos que nem davam para esticar os braços. Os écrans dos bancos ficavam a dois palmos da nossa cara. Para cúmulo, não tinham jogos nem filmes à escolha. Ia-se passando de canal, e o que estivesse a dar, era o que tínhamos de ver. Se o filme estivesse a meio, paciência.
E depois foram quatro horas de espera para o voo seguinte, desta vez com a TAM – voo que vai para Macapá, com escala em Belém. Foi com impaciência e cansaço que vimos o écran gigante a passar dez mil voos, às vezes com dois ou três minutos de diferença entre si, até finalmente chegar ao nosso das 20.05h. Vejam o movimento deste aeroporto – apenas voos nacionais, atenção. Nós vimos de Lisboa, não estamos habituados a estas coisas… De vinte em vinte minutos parte um para o Rio de Janeiro, por exemplo. Há mais aviões no Brasil do que autocarros em Portugal. E as passagens aéreas não são nada baratas, conforme comentaram inclusivamente os nossos guias, quando abordámos o assunto. Disseram-nos que há tanta gente a viajar, o Brasil é tão grande e é tão necessário viajar de avião, que as companhias não têm necessidade de baixar os preços. Não haverá crise nas companhias aéreas brasileiras, portanto.
003 – Portas da Amazónia
Todos os voos foram pontuais, pelo que chegámos à hora prevista a Belém: 22.40h, hora local. Em Belém são menos 4h do que em Portugal. O calor e a humidade são espantosos. Vimos do frio; em Portugal fazem temperaturas anormalmente baixas para esta época do ano, Junho, pelo que foi com alegria que recebemos este calor brasileiro. Calor ainda moderado, pois não estamos na sua época mais quente. Às onze da noite estariam uns 25 graus, disse-nos o guia Gelderson, que nos recebeu no aeroporto. Gel quê?, perguntámos. Começou a nossa luta com a pronúncia brasileira versus pronúncia portuguesa. Podem tratar-me por Gel, disse-nos. (Leia-se “Géu”). Ok, Géu.
Ao chegar ao hotel “Portas da Amazónia”, uns quarenta minutos depois de sairmos do aeroporto, derreados, o rececionista informa-nos que houve uma confusão com os quartos: a senhora das limpezas confundiu os quartos, pelo que o nosso – grande – não está preparado, e vamos ficar temporariamente, apenas esta noite, num mais pequeno. No dia seguinte podemos mudar-nos para o outro.
Não ficámos contentes. Mas o cansaço era tal que tomámos um duche e fomos dormir, já passava da meia-noite.
O dia seguinte era suposto começar às sete, assim dizia o nosso programa desenhado por uma agência brasileira especializada em programas ecológicos, mas dado que chegámos tão tarde, passou para as oito.
Alvorada.
Às seis da manhã tocam os sinos. A luz entra abundantemente pelo quarto, e os sinos da catedral mesmo ao lado do hotel tocam ruidosamente. Faz muito calor e temos de ligar o ar condicionado. Estamos permanentemente a transpirar.
Estamos na Amazónia, estamos em Belém – a segunda maior cidade da Amazónia – e é hora de levantar e ir passear.
É com bastante expetativa que começamos o dia. Atravessado o Atlântico, finalmente é hora de começarmos a divertir-nos. Vamos à descoberta, tal como o Pedro Álvares Cabral. É a primeira vez que estamos no Brasil, nunca cá tínhamos estado, nem eu, nem o Filipe.
004 - Catedral Metropolitana de Belém & Origem das “Amazonas”
Antes de nos metermos por Belém, falemos da Amazónia.
Em 1541 o espanhol Francisco de Orellana , então com 21 anos, juntou-se à expedição de Gonzalo Pizarro para explorar a área a leste do Perú, que se pensava ser rica em canela e metais preciosos.
A expedição rapidamente se viu sem comida, e Orellana voluntarizou-se para liderar uma esquadra mais pequena, de 59 homens, que descesse o rio em busca de alimentos. De acordo com as informações do frei Gaspar de Carvajal, o cronista da viagem e cujo diário é o único documento escrito da epopeia, a corrente do rio era tão forte que impossibilitou o caminho de volta, de tal forma que Orellana e os seus companheiros não tiveram alternativa senão seguir em frente. Orellana separou-se de Pizarro em Dezembro de 1541, e navegou até chegar ao oceano Atlântico, em Agosto de 1542. Nunca mais voltou para junto da esquadra inicial, de Gonzalo Pizarro.
A rotina da expedição, nesses oitos meses, era a busca incessante de comida e conflitos com os locais. No fim da primeira semana, o grupo comia “couro de animais, trapos e a sola dos seus sapatos cozida com ervas”, segundo o relato de frei Gaspar de Carvajal. Ao longo do rio, cabeças humanas eram exibidas, espetadas em picotas, como troféus. Os espanhóis chamaram a esta zona “Província das Picotas”. Orellana ia fazendo várias incursões nas vilas que encontrava, em busca de alimentos. Num dos casos, após os habitantes se esconderem nas suas casas, queimou-as. A povoação foi então chamada de “Pueblo de los Quemados”. Noutra altura, desembarcaram numa grande vila à qual chamaram de “Pueblo de la Calle”, pois tinha uma grande rua central, com habitações de ambos os lados.
E foi a 24 de Junho de 1542 que a expedição sofreu um ataque de índios liderados por dez ou doze mulheres. Estas dispararam tantas setas, que os barcos pareciam “porcos-espinhos”. Uma delas atingiu o padre Carvajal num olho, deixando-o cego. Nos seus escritos, relata que estas índias se mostravam corajosas, lutadoras capazes, e líderes dos restantes índios. Conta que conseguiram matar sete ou oito delas, o que afastou temporariamente os índios, todavia os poucos espanhóis que sobreviveram tiveram de fugir rio abaixo, com os índios a persegui-los para expulsá-los do seu território.
Segundo frei Gaspar de Carvajal, aquelas mulheres “icamiabas”, como eram conhecidas pelos índios tupis, eram muito altas e brancas, e tinham longos cabelos. Andavam nuas, e usavam apenas arcos e flechas. Dominavam uma vasta região, cobrando tributos dos indígenas. As suas comunidades eram habitadas apenas por mulheres que não se casavam. Periodicamente, engravidavam de índios capturados das aldeias vizinhas. Somente as filhas permaneciam entre elas.
A força da descrição de Carvajal foi tanta na Europa, que o Amazonas – inicialmente chamado de Marañón – ganhou das guerreiras da mitologia grega o seu nome. Segundo a mitologia grega, as amazonas caracterizavam-se pelo costume de extraírem um seio para melhor manejarem o arco (a-mazon = mulheres sem seios), e eram bárbaras que desconheciam as leis da cidade.
O mito sobre as Amazonas do Brasil, nunca mais vistas, resultou numa série de estudos, investigações e especulações ao longo dos séculos. Mas assim ficou o nome de “Rio Amazonas” ¹’ ²’ ³’ ⁴.
Catedral Metropolitana de Belém, a tal que nos acordou diariamente às seis da manhã com os sinos a tocar alegremente. A sua construção começou em 1748 e terminou em 1782.
Esta foto foi tirada sobretudo por causa dos carros. Reparem nos vidros fumados – de lado, atrás e à frente. Parecem carros de assalto, e imaginem a nossa apreensão, acabados de chegar ao Brasil, depois de nos encherem os ouvidos com histórias escabrosas de raptos, assaltos e violações, e vermos apenas carros com vidros fumados – verdadeiramente escuros – por todo o lado. Felizmente o nosso guia não aderiu à moda e foi buscar-nos às onze da noite ao aeroporto num carro com vidros normais. Porque víamos as pessoas a entrarem para os carros – e adeus. Nunca mais víamos nada nem sabíamos minimamente o que se estava a passar lá dentro. Até podiam estar a gritar e a pedir socorro – que ninguém percebe. Explicaram-nos mais tarde que a lei brasileira não permite vidros tão fumados à frente, por exemplo, e que define também um determinado grau de lado e atrás. Mas como fazer cumprir a lei é mais complicado, cada qual usa os vidros como quer. O motivo? Evitar que o sol entre e aqueça o carro.
O autocarro vai para o mercado de Ver-o-Peso, o qual visitaremos mais à frente. O edifício de azulejos, atrás, é o nosso hotel.
¹ Athena Review, Vol. 1, No.3 “Orellana and the Amazons” Athena Publications, Inc. 1996-2003. Página consultada a 31 de Agosto de 2013
<http://www.athenapub.com/orellan1.htm>.
² Bentes, Dorinethe dos Santos (s.d.) “As Primeiras Imagens da Amazónia”. Centro Cultural dos Povos da Amazónia , Governo do Estado do Amazonas. Página consultada a 31 de Agosto de 2013
<http://www.povosdamazonia.am.gov.br/htm/htm/historia4.htm>.
³ Gombata , Marsília (2013) “Francisco de Orellana, o conquistador do Amazonas”. Guia do Estudante. Página consultada a 31 de Agosto de 2013
<http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/francisco-orellana-conquistador-amazonas-735039.shtml>.
⁴ Langer, Johnni (2008) “Caçadores da lenda perdida”, Revista de História da Biblioteca Nacional. Página consultada a 21 de Julho de 2013
<http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/cacadores-da-lenda-perdida>.
005 - Passeando por Belém & Apresentação da Amazónia
O que é a Amazónia?
Parece uma daquelas perguntas da escola, mas é importante deixarmos isto claro.
A Amazónia é uma floresta tropical com 5,5 milhões de quilómetros quadrados que cobre a maior parte da bacia amazónica⁵.
E o que é a bacia amazónica?
Cada rio, pequeno ou grande, tem a sua bacia hidrográfica. É a área onde a água da chuva é conduzida para uma rede hidrográfica, ou seja, é a área total drenada por um rio e seus afluentes. Separa-se das bacias contíguas por divisórias continentais, geralmente constituídas por longas montanhas e outras regiões altas⁶.
A bacia hidrográfica do rio Amazonas ocupa uma área total na ordem de 6.110.000 km², desde a nascente nos Andes Peruanos até à sua foz no oceano Atlântico, no norte do Brasil. Esta bacia compreende vários países da América do Sul: Brasil (63%), Perú (17%), Bolívia (11%), Colômbia (5,8%), Equador (2,2%), Venezuela (0,7%) e Guiana (0,2%)⁷.
O Rio Amazonas tem mais de 7 mil afluentes, e possui 25 mil quilómetros de vias navegáveis. A Bacia Amazónica ocupa cerca de 3,89 milhões de km² no Brasil, ou seja, 45% do país, abrangendo os estados do Acre, Amazonas, Roraima, Rondónia, Mato Grosso, Pará e Amapá⁸.
Nós estamos atualmente no Estado do Pará, mais exatamente na sua capital – a cidade de Belém.
Nesta viagem de 18 dias exclusivamente pela Amazónia, visitaremos dois estados: o Pará e o Amazonas.
Vendedor de mingau. Papa feita de leite com farinha Maizena, farinha de tapioca, milho ou outros cereais.
A humidade é tão grande que as plantas crescem por todo o lado.
Nesta foto vê-se o nosso guia Cícero a cumprimentar as donas da loja. Aqui vendem-se raízes, sementes, produtos naturais. Em cima da mesa colocaram-nos uma bomba energética, explicou-nos a senhora. Nós comprámos o guaraná em pó. Há que misturar uma colher de chá num copo de água, explicou-nos. Só o provámos em Lisboa, quando regressámos, e não apreciámos…
⁵ Wikipedia (s.d.), “Amazônia”. Página consultada a 23 de Julho de 2013.
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Amazonia>.
⁶ Infopédia, Porto Editora (2003-2013) “bacia hidrográfica”. Página consultada a 25 de Julho de 2013
<http://www.infopedia.pt/$bacia-hidrografica>.
⁷ ANA – Agência Nacional de Águas (s.d.), “Região Hidrográfica Amazônica”. Página consultada a 23 de Julho de 2013
<http://www2.ana.gov.br/Paginas/portais/bacias/amazonica.aspx>.
⁸ Wikipedia (s.d.), “Bacia do rio Amazonas”. Página consultada a 23 de Julho de 2013
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Bacia_Amaz%C3%B4nica>.
006 – Belém: Paris n’América
Falemos então da cidade de Belém, capital do Estado do Pará.
Após Francisco de Orellana ter percorrido todo o rio Amazonas, desde os Andes até ao Atlântico, não demorou muito para que outros conquistadores viessem instalar feitorias na região amazónica, nomeadamente ingleses, holandeses e franceses. A cidade caiu em mãos portuguesas em 1615 e, no ano seguinte, em janeiro de 1616, o capitão-mor Francisco Caldeira Castelo Branco construiu um forte de madeira, coberto de palha, o qual denominou de “Forte do Castelo de Santo Cristo”. A povoação que se formou ao seu redor foi inicialmente denominada de Feliz Lusitânia – embrião da futura cidade de Belém.⁹’ ¹⁰
À medida em que vamos passeando por Belém, o guia Cícero fala-nos da cidade. Conta-nos que Belém é uma cidade plana e que o seu ponto mais alto tem quinze metros. Tem duas estações durante o ano: a estação seca e a estação das chuvas. Mas chove durante todo o ano, se bem que em quantidades menores na estação seca. Estamos agora em Junho e a entrar nesta. A temperatura média é de 26 graus e as máximas rondam os 32/33 graus. No Rio de Janeiro e em São Paulo, contou-nos, as temperaturas chegam aos 40 graus, mas aqui em Belém não. A humidade média é de 85%, influência direta da floresta amazónica.
Entre o final do século XIX e o começo do século XX, durante o chamado Ciclo da Borracha, Belém chegou a ser a cidade brasileira mais desenvolvida do país, e uma das mais prósperas do mundo. Recebeu inúmeras famílias europeias, o que veio a influenciar grandemente a arquitetura de suas edificações, ficando conhecida na época como Paris n’América.
A tentativa de colocar uma pilha no meu relógio de pulso. Claro que a coisa não é simples, e o relojoeiro brasileiro olhou intrigado para aquela pulseira de metal e nem conseguia perceber onde estavam as horas (tal como os relojoeiros portugueses – para quem não leu as crónicas de viagens anteriores onde refiro as aventuras e desventuras deste relógio); eu assustei-me, e decidimos os dois não avançar com aquela delicada operação. Nem ele quis arriscar, nem eu quis ver novamente as molas a saltarem-lhe, como cheguei a ver em Portugal. Só o relojoeiro perto de minha casa se entende com este relógio. Resignei-me. Vou andar sem horas nesta viagem.
Também tentávamos arranjar pilhas para o despertador, mas para quem anda a passear e tem o tempo contado, não é assim tão simples. Nem há paciência para desviar caminho e ir aos locais onde se vendem pilhas. Resultado: não arranjámos pilhas para nenhum dos relógios. O meu telemóvel, por seu turno, nem sequer anda comigo, fica desligado nos hotéis. Somente o Filipe anda com o seu smartphone, e em caso de necessidade consultamos as horas nele.
⁹ Schilling, Voltaire (s.d.), “Amazônia”. História. Página consultada a 21 de Julho de 2013
<http://educaterra.terra.com.br/voltaire/500br/amazonia.htm>.
¹⁰ Wikipedia (s.d.), “Francisco Caldeira Castelo Branco”. Página consultada a 21 de Julho de 2013
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Francisco_Caldeira_Castelo_Branco>.
007 - Comércio nas Ruas de Belém
Igreja de Nossa Senhora das Mercês, a igreja mais antiga de Belém. A construção iniciou-se em 1640, em taipa, e posteriormente, no século XVIII, foi restaurada em pedra.
Água de coco. Havemos de beber duas ou três, durante esta viagem. Matei saudades das que bebi no Vietname. Sou grande apreciadora de água de coco.
Castanhas do Pará. O Filipe provou a que o senhor lhe entregou, e acabou por comprar um pacote pequeno. Eu tive receio, já sei que o meu estômago é muito esquisito – não pela castanha, mas pelas mãos e facas sujas. É gastroenterite certa, pois o nosso organismo não está habituado àquelas bacteriazinhas tropicais. Acabei por experimentar mais tarde uma das castanhas – do pacote que o Filipe comprou – depois de limpá-la bem.
De notar que não bebemos água da torneira, e inclusivamente lavamos os dentes com água mineral também. Antes de partirmos fomos vacinados contra a febre amarela, e o Filipe também contra a hepatite A. Eu ainda tenho as vacinas contra as hepatites A e B ativas, do tempo da viagem à Índia, com os devidos reforços, pelo que fiquei agora isenta dessas.
Fomos igualmente medicados para a malária, com a toma de um comprimido semanal.
Era suposto termos levado também a vacina contra a febre tifóide, mas no hospital Curry Cabral (um dos locais onde existe a Consulta do Viajante) informaram-nos que estava esgotada em toda a Europa. Disseram-nos que a Austrália tinha enviado algumas doses para Portugal, mas que eles também tinham deixado de cedê-las, pois precisavam delas para a sua própria população. Achámos bizarro – uma vacina (supostamente) tão importante e está esgotada em toda a Europa. Fazendo pesquisa na internet, encontrei um artigo que diz:
“A vacina contra a febre tifóide foi recolhida do mercado pela empresa que a comercializa, em setembro de 2012. Fonte oficial da Sanofi Pasteur explicou que se tratou de uma recolha voluntária, a nível mundial. Esta recolha aconteceu porque algumas das vacinas poderão “eventualmente” conter o princípio ativo (antigénio) em dose inferior à das especificações do produto”¹¹.
Muito bem, partimos para a Amazónia sem vacina contra a febre tifóide. A médica e a enfermeira que nos atenderam, no hospital, explicaram-nos de qualquer forma que a febre tifóide se combate com antibiótico. Se tivéssemos febre e diarreia, teríamos que atacar imediatamente com antibiótico. E lá viemos nós com antibiótico atrás, para o que der e vier.
¹¹ Sapo Saúde (13 janeiro de 2013), “Laboratório espera repor totalmente vacina da febre tifóide no final de março”. Página consultada a 27 de Julho de 2013.
<http://saude.sapo.pt/noticias/saude-medicina/laboratorio-espera-repor-totalmente-vacina-da-febre-tifoide-no-final-de-marco.html>.
008 - Mercado de Ver-o-Peso
O Mercado de Ver-o-Peso, inaugurado em 1901, ganhou o título de uma das Sete Maravilhas do Brasil, e constitui a maior feira ao ar livre da América Latina.
Fiquemos com um excelente texto da “Revista Estudos Amazónicos”:
A fundação de Belém pelos portugueses, então chamada de Feliz Lusitânia, foi um ato de clarividência política expresso em termos geográficos. Esta cidade tornou-se numa paragem obrigatória para qualquer embarcação que navegava pelo “grande rio” – designação dada à época ao Rio Amazonas. Foi nesta região que Portugal realizou o seu mais bem sucedido feito no sentido de penetração e ocupação do território conquistado.
Esta interiorização foi consolidada pela fundação de lugares, vilas e cidades ao longo do Rio Amazonas e seus afluentes. Esses sítios acabaram tendo como centro de convergência a cidade de Belém. Belém, no seu percurso histórico, torna-se o maior entreposto comercial da região, o ponto de circulação dos produtos extrativistas vindos do interior para a cidade, com destinos internacionais, bem como as manufacturas vindas da Europa para abastecer o comércio regional.
É em 1627, no meio desta movimentação comercial, que se estabelece o espaço que veio ser conhecido como Ver-o-Peso, fruto da necessidade de um posto de arrecadação fiscal. Denominado de “Casa de Haver-o-Peso” ali eram aferidas pelo peso as mercadorias embarcadas e os impostos recolhidos para a Câmara de Belém¹².
A descascar mandioca. A influência da comida africana e baiana é notória, muito à base da mandioca.
¹² Fleury, Jorge Nassar e Ferreira, Aline Alves (2011), “Ver-o-Peso da cidade: O mercado, a carne e a cidade no final do século XIX”. Revista Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, vol. VI, nº 1, pp. 100-116. Página consultada a 28 de Julho de 2013
<http://www.ufpa.br/pphist/estudosamazonicos/arquivos/artigos/1%20-%20VI%20-%205%20-%202011%20-%20Jorge_Aline.pdf>
009 - Mercado de Ver-o-Peso II
Mandioca.
As urnas grandes no chão é uma tradição dos índios. Os corpos eram enterrados na vertical. Quando só restavam os ossos, as ossadas eram colocadas nestas urnas. Era então feito o sepultamento secundário em cima de colinas artificiais, explicou-nos o guia Cícero.
Aviú é um camarão minúsculo. Parece farinha, mas não é.
Pirarucu é um dos maiores peixes de água doce do mundo. É característico da Amazónia, podendo atingir dois metros e pesar 150 kg¹³. O nome “pirarucu” vem dos índios tupis: “pirá” significa “peixe” e “urucum” vermelho. É o chamado bacalhau da Amazónia, e reparem no seu preço: igualmente caro. Trinta e seis reais equivalem a treze euros num câmbio de 0,36 cêntimos, o que estávamos a utilizar então. Vamos comer este peixe (fresco) várias vezes durante a nossa viagem, e falarei dele mais detalhadamente à frente.
Fruto chamado cupuaçu, também originário da Amazónia. Deste fruto fazem-se sorvetes, sumos, cremes, compotas, geleias e licores. Nós tivemos oportunidade de experimentar algumas destas especialidades, e mais à frente também veremos fotos.
O fruto que se vê à direita, com o que parecem ser “picos” chama-se biribá. Vem da árvore biribazeiro. Provámo-lo, é saboroso. À esquerda está novamente o cupuaçu.
¹³ Hayashi, Prof. Dr. Carmino (s.d.), “Importância das Espécies Nativas na Piscicultura Comercial”. I Seminário de Piscicultura do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Instituto de Ciências Exatas, Naturais e Educação. Página consultada a 4 de Agosto de 2013,
<http://www.almanaquedocampo.com.br/imagens/files/Peixes%20importancia%20especie%20nativa.pdf>
010 - Ver-o-Peso - Mercado da Carne e do Peixe
O Mercado de Ver-o-Peso tornou-se um dos principais pontos de abastecimento da cidade, além de ser, hoje, um dos pontos turísticos mais visitados.
Sendo aqui o ponto de chegada de toda a produção agrícola e pecuária vinda do interior, foi-se tornando aos poucos um grande complexo. Já em meados do século XIX, o local não tinha espaço suficiente para abrigar todos e tornava-se necessária a construção de uma estrutura mais apropriada. Os mercantes extrapolavam os limites físicos e espalhavam-se pelos passeios à volta. No Brasil, mais especificamente aqui em Belém, as consequências deste período eram nitidamente encontradas. Não foi por acaso que se deu a entrada maciça de ferro – além da estreita relação que a região tinha com a Grã-Bretanha, berço da Revolução Industrial e grande produtor deste material – e a necessidade de organização de um espaço para venda e troca de alimentos, principalmente a carne, visando a melhoria da higiene e a diminuição da contaminação de doenças.
É neste cenário que em 1901 é inaugurada uma nova edificação para abrigar os mercadores e os seus produtos: o Mercado de Ferro, usualmente conhecido como Mercado de Peixe. Como o nome já diz, este mercado é todo construído em ferro fundido perfilado que, embora não se tenha identificado referências quanto à procedência deste, as suas torres denotam uma possível raiz e gosto europeu da época.
Hoje, o complexo da feira engloba, além de duas praças – a Praça do Pescador e a Praça do Relógio – um mercado a céu aberto, constituído por duas feiras – a Feira do Açaí e a Feira do Ver-o-Peso; uma doca de embarcações – Doca do Ver-o-Peso; e os dois mercados – Mercado de Ferro (Mercado de Peixe) e o Mercado de Carne (antigo Mercado Municipal).¹⁴
Peixe Tamuatá do Marajó, ilha que visitaremos mais à frente. Segundo nos explicou o guia Cícero, este peixe esconde-se na lama até que a água volte, e pode mesmo deslocar-se por terra até encontrar outro habitat com água. Acumula gordura no corpo e é uma das especialidades gastronómicas da região.
¹⁴ Fleury, Jorge Nassar e Ferreira, Aline Alves (2011), “Ver-o-Peso da cidade: O mercado, a carne e a cidade no final do século XIX”. Revista Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, vol. VI, nº 1, pp. 100-116. Página consultada a 28 de Julho de 2013
<http://www.ufpa.br/pphist/estudosamazonicos/arquivos/artigos/1%20-%20VI%20-%205%20-%202011%20-%20Jorge_Aline.pdf>
011 - Forte do Presépio
Urubus, os pássaros negros também conhecidos como “Abutres do Novo Mundo”, cuja distribuição geográfica é exclusiva do continente americano.
Estacionamento debaixo de árvores de manga. Volta e meia cai uma e vimos algumas espalhadas pelo chão. Sendo um fruto relativamente grande e pesado – existem muitas espécies de mangas, umas mais pequenas do que outras, mas todas relativamente grandes – não é raro verem-se carros com amolgadelas no topo, por lhes ter caído uma em cima.
Forte do Presépio , que ao longo da sua história teve diversos nomes: Forte do Presépio de Belém, Forte do Senhor Santo Cristo, Forte do Castelo do Senhor Santo Cristo e Forte do Castelo, nome alusivo ao seu fundador, o capitão Castelo Branco. Atualmente é conhecido pelo nome original, escolhido pelos portugueses, no ano de 1616. Conforme referido anteriormente, a chegada dos portugueses à Amazónia deu-se em 1616, após terem derrotado os franceses no Maranhão, no mês de novembro do ano anterior. Ingleses e holandeses, sabedores do potencial da região amazónica, iniciaram a aproximação aos indígenas, negociando com eles. Portugal, sentindo a ameaça, nomeou Francisco Caldeira de Castelo Branco para comandar a expedição de exploração desta área, na boca do Rio Amazonas, recebendo o título de Descobridor e Primeiro Conquistador do Rio das Amazonas. Partiu de São Luís do Maranhão a 25 de dezembro de 1615, com três navios e duzentos homens, atingindo a região habitada pelos índios tupinambás. Ao desembarcar, iniciou a construção de uma frágil fortificação de taipa, coberta com palha, armando-a com doze peças de artilharia, sendo chamada de Forte do Presépio de Belém, em homenagem ao dia de Natal, quando partira a expedição do Maranhão.
Em 1619, porém, os índios tupinambás, aliados dos portugueses na sua chegada e que os haviam ajudado a construir o forte, enfurecidos desencadearam um violento ataque à povoação. Queriam expulsar os conquistadores portugueses que violentavam as suas filhas e mulheres e ainda os escravizavam. O ataque ocorreu de madrugada, quando centenas de índios atiravam flechas incendiárias e venenosas, surpreendendo os colonos e a guarnição do forte. A batalha durou quase 12 horas¹⁵. Danificada, essa primitiva fortificação foi então substituída por outra mais sólida. Efetivamente, ao longo de quase quatro séculos de história, o Forte foi reconstruído e reformado inúmeras vezes. Durante o século XVII, passou por momentos de extrema decadência, ora tomado pelo mato, ora com as muralhas e instalações em ruínas. Em 1728, o rei D. João V ordenou a sua restauração, e na segunda metade deste século, foi estabelecido nas suas dependências um precário hospital militar, sendo mais tarde transferido para uma residência particular em 1768.¹⁶
É ainda importante referir um dos mais relevantes acontecimentos do século XIX, em Belém, em que o Forte foi também utilizado: a revolta que ficou conhecida na história como Cabanada. Tratava-se de um movimento civil contra a elite portuguesa levado a cabo pelos “Cabanos”, em alusão às pequenas cabanas no meio do mato em que os revoltosos viviam. O forte serviu de aquartelamento para estes (1835-1840).
Já no século XX, em 1920, foi finalmente restituído às autoridades militares, tendo permanecido sob a jurisdição do Exército Brasileiro até 2001 quando o Governo do Estado do Pará conseguiu a sua alienação. O espaço passou a ser aproveitado para fins culturais e surge então o Museu do Forte do Presépio, localizado no antigo corpo da guarda, hoje rebatizado como Museu do Encontro. Atualmente é um dos pontos turísticos mais importantes de Belém¹⁶.
No interior deste museu é proibido tirar fotos, com grande pena minha, pelo que ficamos com fotos retiradas da revista “DaCultura”. O museu versa precisamente sobre o processo de colonização portuguesa na Amazónia. No centro existe uma escavação com resquícios de um sítio tribal, e nele estão expostos diferentes artefatos indígenas, além de uma coleção de muiraquitãs com vários séculos¹⁷. Os muiraquitãs são amuletos talhados em madeira ou em pedra, na maior parte das vezes o jade, de cor esverdeada, e que representam pessoas ou animais.
Uma réplica do quadro “A conquista do Amazonas” também está exposto no museu. O quadro retrata a presença dos portugueses, indígenas, missionários e caboclos (mestiços de brancos com índios), que marca o início da formação da identidade nacional.
Reza assim o Portal da Amazónia: “O Pará fica na memória como o palco principal da colonização portuguesa na Amazónia, quando o Europeu, ao “vestir os índios”, promoveu o início da transformação cultural da região”¹⁸.
¹⁵ Teixeira, Paulo Roberto (s.d.) “Forte do Presépio”, Revista DaCultura, Ano X, nº 17. Consultado a 8 de Setembro de 2013,
<http://www.funceb.org.br/images/revista/20_8e5h.pdf>.
¹⁶ Portal Belém do Pará (2009) “Forte do Presépio”. Página consultada a 8 de Setembro de 2013,
<http://www.belemdopara.com.br/detalhe.bdop?conteudo=672>.
¹⁷ Portal da Cultura Paraense (s.d) “Museu do Forte do Presépio”, Secretaria Executiva de Cultura, Governo do Estado do Pará. Página consultada a 8 de Setembro de 2013,
<http://www.secult.pa.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=51:museu-do-forte-do-presepio&catid=34:museus&Itemid=28>.
¹⁸ Monteiro, Eliena (2013) “Forte do Presépio: marco da colonização do Pará”. Portal Amazônia.com. Página consultada a 8 de Setembro de 2013,
<http://www.portalamazonia.com.br/cultura/turismo/forte-do-presepio-marco-da-colonizacao-do-para/>.
012 - Almoço em Ver-o-Peso
Estas duas fotos (acima e abaixo) foram tiradas no interior do Forte do Presépio.
Estou no primeiro dia da viagem, e com umas valentes olheiras. O cansaço vem de Lisboa e da viagem. Em breve irá passar.
O nosso primeiro almoço em terras amazónicas foi perfeitamente típico, em pleno mercado de Ver-o-Peso, e com uma refeição também muito característica da região: dourado frito acompanhado de uma bebida chamada “açaí”. Tudo preparado à nossa frente. O peixe estava muito fresco e era bastante saboroso. É um peixe de rio que mede mais de um metro de comprimento e chega a 25 kg de peso¹³.
Na realidade eu comi o peixe todo e apenas provei o açaí. Estava com receio do meu estômago, que é muito esquisito nas viagens a regiões exóticas. Conforme comentado numa crónica anterior, não podemos beber água da torneira, por exemplo, e aqui o açaí certamente não seria feito com água mineral. Já o Filipe foi mais foito – bebeu uma boa dose de açaí, que na altura ainda não soube temperar bem, pois leva bastante açúcar e ele não sabia, tendo-lhe adicionado apenas uma dose moderada. Havemos de beber mais vezes açaí, já com um pouco mais de segurança.
O Filipe a beber o açaí. Ao seu lado estão o guia Cícero e a nossa motorista Roberta, os quais nos acompanharam durante o dia em Belém. Estivemos sozinhos – esta viagem foi personalizada e não estivemos integrados em grupos.
Na minha mão vê-se o açaí, fruto proveniente de uma palmeira. O seu nome vem dos índios tupis: “yasa” – fruta que chora, numa alusão ao sumo que a fruta desprende. Com ele se fazem também doces, geleias e sorvetes.
Para ser consumido, o açaí é despolpado nesta máquina. A polpa solta-se e é então misturada com água. A foto ficou desfocada, infelizmente, mas é a única que tenho da maquineta.
Dourado¹³
¹³ Hayashi, Prof. Dr. Carmino (s.d.), “Importância das Espécies Nativas na Piscicultura Comercial”. I Seminário de Piscicultura do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Instituto de Ciências Exatas, Naturais e Educação. Página consultada a 4 de Agosto de 2013,
<http://www.almanaquedocampo.com.br/imagens/files/Peixes%20importancia%20especie%20nativa.pdf>.
013 - Basílica de Nossa Senhora da Nazaré
A Basílica de Nossa Senhora da Nazaré está numa rua pequena, pelo que apanhar toda a sua fachada é uma operação difícil. Recorro nesta crónica a uma foto da Wikipédia, que mesmo assim a corta parcialmente.
Falemos do Círio da Nazaré, a propósito desta Basílica.
Em Outubro realiza-se em Belém o Círio da Nazaré, a maior manifestação religiosa católica do Brasil. Conta com a participação de cerca de dois milhões de pessoas, as quais percorrem uma distância de cinco quilómetros entre a Catedral Metropolitana de Belém (visitada na crónica 4) e a Basílica de Nazaré, transportando a imagem de Nossa Senhora de Nazaré.
Há mais de 200 anos que o Estado do Pará, mais particularmente a capital, Belém, literalmente pára por ocasião do Círio de Nossa Senhora de Nazaré. No chamado dia do Círio, o trânsito é interditado nas ruas centrais da capital, as lojas fecham, as ruas pelas quais a procissão passa são profusamente decoradas, janelas, portas e sacadas são ocupadas pelos moradores atentos à passagem da imagem da santa. Muitos chegam até a comprar roupa nova para vestir no dia do Círio.
A origem do Círio e da Festa de Nazaré está envolta em lendas ou mitos, que se misturam com factos históricos. Sabe-se que a devoção à Nossa Senhora de Nazaré começou, no Brasil e no Pará, numa localidade denominada Vigia e de lá deve ter atingido a capital, Belém. Por volta de 1700, reza a tradição, caminhava nas matas da então tortuosa estrada do Utinga, hoje avenida Nazaré em Belém, um caboclo (ou seja, mestiço de portugueses e de índios) agricultor e caçador chamado Plácido José dos Santos. Levado pela sede, acabou por descobrir entre pedras cobertas de trepadeiras, às margens do igarapé Murutucu (localizado atrás da atual Basílica de Nazaré), uma espécie de nicho natural com uma pequena imagem da Virgem de Nazaré. A imagem, hoje tida como a original, tinha 38,5 centímetros de altura. Plácido levou-a para casa e no dia seguinte, ao acordar, viu que tinha desaparecido. Assustado, correu até ao local onde a encontrara e percebeu que a imagem tinha voltado para o mesmo lugar. O fenómeno repetiu-se várias vezes, até que o governador da época mandou que a imagem fosse levada para a capela do Palácio do Governo, onde ficou guardada pelos soldados, que passaram a noite em vigília para impedir que alguém ali entrasse ou de lá saísse. Mas, no dia seguinte, a santa foi de novo encontrada nas margens do igarapé, no mesmo lugar para onde sempre retornava, com gotas de orvalho e ervas presas ao seu manto, numa prova da longa caminhada através da estrada. A santa “viva” tinha-se movido novamente pelos seus próprios meios.
Para atender aos desejos da santa, Plácido resolveu então construir uma pequena ermida para abrigar a imagem. A notícia do milagre espalhou-se rapidamente, atraindo para a palhoça do caboclo os habitantes da cidade que, curiosos, passaram a engrossar as fileiras dos devotos da santa milagrosa. A cada ano aumentava o número dos que iam até à cabana do caboclo a fim de oferecerem ex-votos – objetos de cera representando membros do corpo humano, muletas ou retratos, forma utilizada pelos fiéis para demonstrar o reconhecimento por graças alcançadas – aos pés do altar. Nestas peregrinações sobressaíam os círios ou velas de cera que, tal como em Portugal, depois passaram a denominar a própria procissão feita em homenagem à santa.
Em 1793, o bispo do Pará, Dom João Evangelista, oficializou a devoção, colocando Belém sob a proteção de Nossa Senhora de Nazaré. E nesse mesmo ano, o presidente da Província do Pará, ávido por fomentar o comércio regional, resolveu organizar uma grande feira na qual os produtos agrícolas e extrativistas de toda a província seriam expostos e comercializados. Estrategicamente, determinou que a feira deveria ocorrer no final do segundo semestre, na mesma época em que os devotos costumavam homenagear a Virgem de Nazaré.
Alvo das atenções e dos interesses da Coroa e da Igreja, a devoção popular à Nossa Senhora de Nazaré caminhava assim para uma futura institucionalização.
O primeiro Círio da Nazaré oficial ocorreu em 1793. Em junho desse ano, pouco antes da feira, o presidente da província adoeceu e fez uma promessa: se recuperasse a saúde e pudesse inaugurar a grande feira, levaria a imagem até ao palácio do governo e, de lá, esta seria conduzida, em procissão, de volta à igrejinha.
Efetivamente o presidente da província – Sousa Coutinho – recuperou e, no dia 8 de setembro de 1793, cumpriu a promessa. O primeiro Círio foi acompanhado por quase dois mil soldados, além da população civil. Participavam ainda no cortejo, além do presidente da província, os vereadores da Câmara e o vigário geral, substituindo o bispo, que viajara para Portugal. À frente, desfilava um esquadrão de cavalaria com os seus clarins, anunciando ao povo a aproximação do cortejo. Ao centro, fidalgos a cavalo formavam alas, entre as quais desfilavam as importantes damas locais, sentadas nas almofadas dos seus palanquins. Naquele primeiro Círio a imagem da santa foi transportada no colo do vigário geral, num carro puxado por juntas de bois, como se fazia em Portugal. Quando o cortejo chegou à ermida da santa, foi rezada uma missa, após o que o presidente da província inaugurou a feira que mandara montar no arraial. Foi também lançada, solenemente, a pedra fundamental da igreja de pedra e cal que deveria ser erguida no lugar da ermida.
Este primeiro Círio revivia a lenda: a imagem da santa, levada na véspera para a capela do Palácio do Governo, refazia o seu caminho mítico, no dia seguinte, até ao local do primitivo achado¹⁴.
Sobre o atual edifício da Basílica, pouca informação se encontra. O nosso guia Cícero deu-nos alguns detalhes: foram dois barões da borracha portugueses que mandaram construí-la, em 1909, e é uma réplica da basílica de São Paulo, em Roma. Explicou-nos que as colunas frontais foram trazidas da ilha da Madeira e que a pintura no topo, à entrada, mostra os dois portugueses.
Visitada a Basílica, continuámos o nosso caminho. Nestas fotos pode ver-se o preço da gasolina em Belém: 2,829 reais equivalem a um euro, ao câmbio desta altura (0,36 cêntimos).
¹⁴ Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional – Ministério da Cultura do Brasil (2005), “Círio de Nazaré”. Página consultada a 3 de Agosto de 2013
<http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=725>.
014 - Parque Zoobotânico
Tal como indicado na placa na entrada, o parque foi criado em 1895 pelo naturalista e zoólogo suiço-alemão Emil Goeldi. Possui mais de cinco mil espécies de fauna e flora regional. Dentre a fauna livre, conseguimos avistar uma série de cutias e uma preguiça.
Repare-se na escuridão das fotos. Aproximam-se as três da tarde, e a esta hora chove sempre. A chuva tem hora marcada, em Belém. O céu começa a ficar carregado – seriamente carregado – pelo que começámos a acelerar o passo, e eu a procurar abrigos à medida em que andávamos, de forma a proteger a máquina fotográfica a qualquer momento. Estamos numa zona tropical, não será uma simples chuvinha.
Cacau.
Cutias.
Uma preguiça.
À medida em que caminhamos na companhia do guia Cícero, este vai falando sobre tudo e mais alguma coisa. Contou-nos que pelo facto de ter mais de sessenta anos, tem direito a andar gratuitamente na rede de autocarros do Brasil. Nos “onibus”, como aqui lhes chamam. Não tem carro e leva duas horas de onibus para chegar a casa. Saiu portanto às 7 da manhã de casa, hoje, para chegar às 9h a Belém, junto a nós.
Trabalhava num banco, na sua juventude, mas demitiu-se porque não gostou daquele estilo de vida. Meteu-se pela profunda floresta amazónica, juntamente com a mulher, e aí construiu a sua casa. Quando um dia partiram, por causa dos filhos, abandonaram-na simplesmente.
Hoje vive do turismo. Conhecedor da Amazónia e da vida na floresta, acabou por tornar-se guia turístico, e podem crer que a visita de Belém na sua companhia foi um dos pontos fortes desta viagem.
Mas voltando aos benefícios da terceira idade: fazendo pesquisa na internet sobre esta matéria, descobre-se que os idosos beneficiam de alguma proteção pela lei brasileira. Têm direito a medicamentos grátis, por exemplo. Bem como acesso à justiça garantido. O abandono de um idoso num hospital ou numa casa de saúde pode ser punido com detenção de seis meses a três anos, além de multa. Todos os privilégios do idoso podem ser consultados no “Estatuto do Idoso”¹⁵.
¹⁵ Agência Senado – Senado Federal (s.d.), “Estatuto do Idoso”. Página consultada a 3 de Agosto de 2013,
<http://www.senado.gov.br/noticias/jornal/cidadania/EstatutodoIdoso/not02.htm>
015 - Teatro da Paz e Mangal das Garças
Saímos do Parque Zoobotânico, andámos uns metros até ao carro – onde a Roberta nos esperava – e começou a chuvada torrencial, acompanhada de relâmpagos e trovoadas. É de ficar boquiaberto. Ninguém nas ruas, tudo deserto, poucos carros a circular. Íamos avistando as pessoas escondidas aqui e além, abrigadas onde conseguiam, às vezes nas paragens dos autocarros. Todos os dias é assim, pelo que nos contaram. E dura cerca de meia hora. As ruas ficam cheias de folhas de árvores espalhadas por todo o lado; no final parece que passou um furacão por Belém. E agora têm de vir limpar as ruas, dissemos, em jeito de pergunta. Sim, todos os dias vêm varrê-las.
Foto retirada de Wikipedia.
Aproveitámos a chuvada para visitar o encantador Teatro da Paz, inaugurado em 1878, durante o período áureo da borracha. A extração da borracha na Amazónia, proveniente da árvore chamada seringueira, trouxe consigo grande investimento europeu. Belém, capital do Estado do Pará, assim como Manaus, capital do Estado do Amazonas, que também visitaremos mais à frente, passaram por uma importante transformação e urbanização. Belém era uma das cidades mais desenvolvidas e prósperas do mundo, não só pela sua posição estratégica – quase no litoral – mas também porque sediava um maior número de residências de seringalistas, casas bancárias e outras importantes instituições. Ambas as cidades possuíam luz elétrica e sistema de água canalizada e esgotos. Mas, apesar desse progresso, a cidade ainda não possuía um teatro de grande porte, capaz de receber espetáculos do género lírico. Procurando satisfazer o anseio da sociedade da época, o governo da província dá então inicio ao projeto arquitetónico inspirado no Teatro Scalla de Milão (Itália).
O teatro da Paz foi a primeira casa de espetáculos construída na Amazónia e tem características grandiosas: 1.100 lugares, acústica perfeita, lustres de cristal, piso em mosaico de madeiras nobres, frescos nas paredes e no teto, dezenas de obras de arte, e elementos decorativos revestidos com folhas de ouro¹⁶.
É hoje considerado um dos teatros-monumentos do país, e foi com grande pena que não assistimos a um espetáculo no seu interior, dado não haver programação nesta noite. Amanhã pelas seis da manhã já estaremos de abalada.
Mangal das Garças.
Conforme reza o website oficial, onde podem ser vistas mais fotos:
O Parque Naturalístico Mangal das Garças foi criado pelo Governo do Pará em 2005 e é o resultado da revitalização de uma área de cerca de 40.000 metros quadrados às margens do Rio Guamá, nas franjas do centro histórico de Belém.
Antes era uma área alagada e a transformação foi cuidadosa. O pré-requisito era o aproveitamento máximo das condições paisagísticas da área. A ideia era representar as diferentes macrorregiões florísticas do Pará: as matas de terra firme, as matas de várzea e os campos, com a sua fauna. Com lagos, aves, vegetação típica, equipamentos de lazer, restaurante, vistas espetaculares da cidade e do rio, o Mangal das Garças logo se tornou um dos pontos turísticos mais elogiados de Belém¹⁷.
Bando de guarás no Mangal das Garças. A sua cor deve-se à alimentação à base de determinados caranguejos, os quais possuiem um pigmento (o caroteno) que lhes tinge as penas.
Esta foto foi tirada com a ajuda do guia Cícero. Se repararem, vêm-se as gotas de chuva a cair na água. Fizemos a visita ao Mangal sempre a chover, se bem que no início fossem apenas uns chuviscos leves. E fazia calor, claro. Mas por esta altura chovia acentuadamente e nestas circunstâncias eu não podia ter a máquina fotográfica à chuva. O guia Cícero disse que eu não podia ir-me embora dali sem tirar uma foto aos guarás. Nunca mais eu iria ver com certeza guarás assim tão perto. Então despiu a camisa e fez uma proteção em cima da minha cabeça, para eu poder tirar esta foto com a máquina protegida da chuva. De facto voltaremos a ver guarás mais algumas vezes, e em meio selvagem, mas nunca assim tão perto.
Foto retirada de “Mangal das Garças”¹⁷
¹⁶ Teathro da Paz (s.d.), “O Theatro”. Página consultada a 4 de Agosto de 2013,
<http://www.theatrodapaz.com.br/pagina.php?cat=151¬icia=367>
¹⁷ Mangal das Garças (s.d.), “O Mangal”. Página consultada a 4 de Agosto de 2013,
<http://www.mangalpa.com.br/?page_id=2>
016 - Hotel e Jantar
Instalaram-nos num novo quarto no hotel, desta vez mais espaçoso. Após um duche, o guia Gel veio buscar-nos às 19h para levar-nos à estação das Docas, em Belém.
Isto parece-nos tudo muito português. Mas estas docas não são as nossas em Belém. Estas são as docas de Belém do Pará. Todavia o esquema é idêntico: vários restaurantes alinhados à beira rio, num local bonito e agradável.
Sob recomendação do guia Gel jantámos ambos, eu e o Filipe, outro prato típico: um peixe do rio chamado filhote paraense, ou piraíba, acompanhado de arroz de jambu – uma erva também conhecida como agrião-da-amazónia. Tudo perfeitamente delicioso. O filhote paraense é um peixe sem escamas (chamados “peixe de couro”) de grande porte, o qual chega aos 300 kg e 2 metros de comprimento. Os que pesam até 60 kg são conhecidos como filhotes. Esta espécie existe na bacia Amazónica e na bacia Araguaia-Tocantins, esta última exclusivamente brasileira. Os pescadores amarram na canoa uma corda bem forte e um anzol grande, usando como isca um peixe de médio porte e aguardam a chegada do piraíba, que, quando fisgado, chega a rebocar a canoa por vários quilómetros. Dependendo da força e tamanho do peixe é necessário cortar a corda para a canoa não se virar¹⁸.
Piraíba ¹³
Piraíba ¹⁸
¹⁸ Ambiente Brasil (s.d.) “Piraíba – Brachyplathystoma filamentosum”. Página consultada a 4 de Agosto de 2013,
<http://ambientes.ambientebrasil.com.br/agua/pesca_esportiva_em_agua_doce/piraiba_-_brachyplathystoma_filamentosum.html>
017 - A Caminho da Ilha do Marajó
Às seis da manhã o suor já escorre lentamente pelo pescoço. Estamos à entrada do hotel, à espera do guia Gel, e os sinos da catedral tocam. Às 6.05h a iluminação pública nas ruas de Belém desliga-se. Partimos na carrinha do Gel, e desta vez juntou-se-nos a sua mulher, a fotógrafa Priscila. Vamos passar três dias à Ilha do Marajó. Pelo caminho – cerca de 45 minutos até chegar à estação fluvial onde apanharemos o barco – vemos algumas ruas já congestionadas de trânsito, e vemos também muita gente em parques e jardins a praticar jogging.
018 - Três Horas de Barco
Foram três horas para fazer 50 km.
Instalámo-nos no convés do barco e entretivemo-nos a ouvir música nos ipods, nomeadamente as “Águas da Amazónia”, de Philip Glass, que eu devo ter ouvido umas três vezes. (A obra no total dura cerca de 40 minutos).
Aproveitemos esta longa e relaxante viagem para falar do rio Amazonas.
O Rio Amazonas tem sua origem na cordilheira dos Andes, no Perú, e desagua no Oceano Atlântico, no norte brasileiro. Ao longo do seu percurso vai recebendo vários nomes. No Perú começa com o nome de rio Apurímac, e no final, em Manaus, recebe o nome de rio Amazonas.
Estudos recentes indicam que o Amazonas é o maior rio do mundo, tendo ultrapassado o rio Nilo. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, no Brasil (INPE) efetuou medições com imagens de satélites, concluindo que o Amazonas tem 6.992 quilómetros de extensão enquanto o Nilo atinge 6.852 quilómetros. Ou seja, o rio Amazonas é 140 km mais extenso do que o Nilo. As vertentes mais distantes do Amazonas, onde se iniciaram as medidas, só foram cientificamente definidas na expedição às nascentes organizada pela RW Cine, em junho de 2007, e que reuniu pesquisadores do Instituto Geográfico Militar do Perú, da Agência Nacional de Águas (ANA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do próprio INPE¹⁹.
Rio Amazonas
¹⁹ Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (1 de Julho de 2008), “Estudo do INPE indica que o rio Amazonas é 140 km mais extenso do que o Nilo”. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Página consultada a 4 de Agosto de 2013
<http://www.inpe.br/noticias/noticia.php?Cod_Noticia=1501>.
019 - Na Fila para o Segundo Barco
E falemos agora sobre a ilha do Marajó.
O Marajó, que em língua tupi significa “barreira do mar”, é um arquipélago formado por cerca de 2.500 ilhas e ilhotas num total de 49.606 quilómetros quadrados²⁰. Está integralmente situado no Estado do Pará e constitui uma das mais ricas regiões do Brasil em termos de recursos hídricos e biológicos²¹. Entre todas as ilhas, a do Marajó é a maior, com 40 mil quilómetros quadrados. É banhada pelo rio Amazonas, pelo rio Tocantins, e ainda pelas águas salgadas do oceano Atlântico. É a maior ilha flúvio-marítima do mundo. Portugal tem 92.000 quilómetros quadrados, por exemplo. Serve como termo de comparação. A ilha do Marajó é quase metade de Portugal.
Saímos do barco e seguimos apressadamente para o seguinte. Já estamos na ilha do Marajó, dirigimo-nos agora especificamente para Soure, considerada a sua capital informal. Foi mais uma meia hora de viagem, de carro. No caminho pedi ao guia Gel para parar de forma a tirar esta foto da escola. As crianças fizeram-me adeus e chamaram-me, mas com grande pena minha não pude ir conversar um pouco com elas, pois tínhamos um horário apertado para apanhar o próximo barco.
O Filipe interrogando o motorista do camião sobre o veículo e a marca Volkswagen, pois em Portugal não são comercializados camiões desta marca. Os rapazes lá sabem destas coisas.
Moto-Táxis.
Ilha do Marajó
²⁰ Wikipedia (s.d.) “Arquipélago do Marajó”. Página consultada a 16 de Agosto de 2013,
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Arquip%C3%A9lago_do_Maraj%C3%B3>.
²¹ Governo Federal, Grupo Executivo Interministerial (2007) “Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável para o Arquipélago do Marajó”. Brasília, Editora do Ministério da Saúde. Consultado a 16 de Agosto de 2013,
<http://www.sudam.gov.br/Adagenor/PRDA/Plano-Marajo/07_0035_FL.pdf>.
020 - Na Balsa
Ainda em Belém tinham-nos avisado sobre este sol do Marajó. Forte e que queima muito. Enquanto esperávamos para entrar na balsa – ao sol, perfeitamente entretidos com toda aquela azáfama – pusemos protetor solar. O Filipe esqueceu-se de colocá-lo nos pés e pernas, ou achou que não seria necessário, pelo que apanhou um autêntico escaldão nestes poucos minutos. A travessia da balsa levou dez minutos e desta vez abrigámo-nos debaixo do toldo destinado aos passageiros. O suor escorre-nos pela face e pelo corpo.
A entrar para o barco em marcha-atrás.
021 - Primeiro Almoço na Ilha do Marajó
O Censo Demográfico de 2010 mostra que o arquipélago do Marajó possui 487 mil habitantes. Nós estamos no município de Soure, com 3.500 km², e com uma população de 23 mil habitantes.
No Marajó em geral predomina a população rural (57%) de acordo com o IBGE em 2010 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), enquanto que a média do país é de 16%. Dos dezasseis municípios, apenas três, nomeadamente Soure, onde nos encontramos, possuem uma população urbana superior à rural. No Marajó, tradicionalmente, os grandes latifundiários destinam uma pequena parte das suas terras para o trabalho dos vaqueiros, para que estes possam construir as suas moradias e desenvolver uma pequena produção de subsistência, em troca de cuidados com a fazenda.
No Marajó os principais produtos da lavoura permanente são o coco-da-baía e a banana. Os principais produtos da lavoura temporária são abacaxi, arroz, mandioca e milho²².
É interessante como nós em Portugal temos “stop”, que é uma palavra inglesa, e no Brasil preferiram adotar a palavra portuguesa “pare”.
Não é chuva, é calor mesmo!
Uma das melhores refeições desta viagem: bife de búfalo marajoara coberto de queijo do Marajó, feito igualmente com leite de búfala. É aqui na ilha do Marajó que se encontra o maior rebanho de búfalos do Brasil. A carne é tenra e muito saborosa (semelhante à de vaca), e o mesmo se pode dizer do queijo, delicioso. Voltámos a comer este prato, mais tarde, mas já não conseguiu ter a mesma categoria deste. A salada, claro, não pudemos comer dado que só podemos ingerir alimentos cozinhados. (Podem parecer cuidados a mais, porém mais adiante constataremos que não…)
A bandeira vermelha que se vê à frente de algumas casas, como nesta foto, significa que ali é um estabelecimento onde se vende açaí.
²² Barbosa, Maria José de Sousa et al. (2012) “Relatório Analítico do Território do Marajó”. Universidade Federal do Pará, Ministério do Desenvolvimento Agrário. Consultado a 16 de Agosto de 2013,
<http://sit.mda.gov.br/download/ra/ra129.pdf>.
022 - Chegada à Eco Pousada Paracauary
Instalações básicas, mas perfeitamente compensadas pelo maravilhoso local e também pelos anfitriões – nada mais nada menos do que os pais do guia Gel. Éramos os únicos hóspedes na altura, pelo que foi quase um encontro familiar; nós forasteiros convidados para juntarmo-nos à sua mesa, na hora das refeições, e sempre muitíssimo bem tratados.
Falemos um pouco mais sobre o Marajó.
A estrutura económica de todos os dezasseis municípios que compõem a área é essencialmente primária, baseando-se no extrativismo vegetal (ou seja, é colhido o que a natureza fornece), na pesca, na pecuária bovina e bufalina e na agricultura de subsistência. Dentre as atividades económicas regionais, as extrativistas são as que apresentam maior importância, principalmente o açaí e o palmito, pois são elas que garantem emprego e renda para a maior parte da população.
O sistema de transportes limita-se ao marítimo e hidroviário. Praticamente não existem estradas na região, e os poucos caminhos existentes são intransitáveis na estação das chuvas. O transporte empregado, tanto para os moradores, quanto para o escoamento da produção, é feito pelos rios. Na época da seca, o transporte é feito através de montarias puxadas a búfalo. As poucas estradas existentes em asfalto, margeiam a costa em cotas mais elevadas, chamadas de tesos, ligando os centros maiores. As demais são construídas em argila ou areia, para facilitar a manutenção, e interligam-se com as outras²¹.
Já tínhamos falado dos “tesos”, mas dado o seu papel importante aqui no Marajó, aprofundemos o tema. Os “tesos” são colinas artificiais construídas no passado pelos índios para a colocação de habitações, provavelmente visando evitar inundações. Os tesos variam muito de tamanho. Os pequenos, com 10 a 70 metros de comprimento e com até 5 metros de altura, são mais comuns, e no seu topo foram construídas casas. São, portanto, considerados “tesos-habitação”. Outros são muito maiores, alcançando mais de 200 metros de comprimento e 10 metros de altura. Conforme referido na crónica 11, apresentam um grande número de sepultamentos, e ainda uma maior quantidade de peças cerâmicas decoradas, o que sugere que estes sítios tenham servido como cemitérios e/ou locais cerimoniais²³.
²¹ Governo Federal, Grupo Executivo Interministerial (2007) “Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável para o Arquipélago do Marajó”. Brasília, Editora do Ministério da Saúde. Consultado a 16 de Agosto de 2013,
<http://www.sudam.gov.br/Adagenor/PRDA/Plano-Marajo/07_0035_FL.pdf>.
²³ Itaú Cultural (s.d.) “Uma grande população”. Página consultada a 16 de Agosto de 2013,
<http://www.itaucultural.org.br/arqueologia/pt/tempo/marajoara/ilha00.htm>.
023 – Momentos de Relaxe na Ilha do Marajó
Estes nossos primeiros dias na Amazónia têm sido duros, quentes, sempre a transpirar de um lado para o outro, sem parar. É tempo agora de relaxar um pouco, de usufruir de tempo livre, e de nos refrescarmos na piscina. Metemo-nos nas duas bicicletas que nos disponibilizaram, demos umas voltas e voltámos para a pousada.
À esquerda, entre os homens, está um búfalo deitado e a ser escovado. Avistar búfalos de poucos em poucos metros torna-se corrente. Não esquecer que é nesta região que existe a maior quantidade de búfalos no Brasil. Ao centro as crianças brincam com os papagaios, o principal divertimento infantil na ilha do Marajó. Por todo o lado se vêem garotos a brincar com papagaios. São eles próprios que os fazem, e o fio é coberto com pó de vidro. O objetivo é cortar a corda ao papagaio do outro, enquanto estão no ar. Este fio coberto com pó de vidro torna-se extremamente cortante, a ponto de existirem acidentes graves nomeadamente com os condutores de motos, que se arriscam a ficar com o pescoço cortado. Algumas motos estão apetrechadas com uma antena para que o fio embata nela, e não no motociclista. Eu vi-as, mas não consegui fotografar as motos, que iam em andamento, de forma a que se visse a fina antena.
024 – Visita à Fazenda do Bom Jesus
No Marajó somente os municípios de Soure, Salvaterra e Cachoeira do Arari possuem acesso por estrada de asfalto e por terra, no entanto a saída é por Belém através de balsa. O acesso aos demais municípios do Marajó é feito exclusivamente por via fluvial. No caso dos municípios mais distantes de Belém – Afuá e Chaves – o acesso é feito por via aérea até à cidade de Macapá, que fica noutro estado que não o Pará (fica no estado do Amapá) e posteriormente por via fluvial com cerca de sete a oito horas de viagem. A falta de segurança nos rios do Marajó é um dos principais problemas enfrentados pela população: há constantes ataques dos chamados “piratas”, na maioria das vezes com muita violência e até mortes. No entanto, alguns municípios, como por exemplo Soure, onde nós estamos agora, oferecem transporte aéreo em sistema de táxis alugados²¹.
Explicou-nos o guia Gel que a dona desta fazenda é médica veterinária e engenheira agrónoma, tem cerca de sessenta anos, é solteira e não tem filhos. Um irmão seu morreu, e tem outra irmã e sobrinhos, que provavelmente herdarão a fazenda, tal como ela própria a herdou dos pais; contudo os sobrinhos estão longe e não ligam a estas lides. O Gel contou-nos também que os animais apreendidos pela polícia, em tráfico ilícito, são libertados aqui: desde jacarés, a macacos, até tartarugas amazónicas.
Fiquei encantada com a beleza e tranquilidade desta fazenda e ao mesmo tempo melancólica com o seu destino. Ninguém da família quer tomar conta da propriedade. Certamente será vendida a alguém, logo se vê o que vai acontecer-lhe, qual será o seu futuro e o de todos estes animais.
²¹ Barbosa, Maria José de Sousa et al. (2012) “Relatório Analítico do Território do Marajó”. Universidade Federal do Pará, Ministério do Desenvolvimento Agrário. Consultado a 16 de Agosto de 2013,
<http://sit.mda.gov.br/download/ra/ra129.pdf>.
025 - Fazenda do Bom Jesus
Garça Real. Alimenta-se de peixes, sapos, rãs. Fica parada à espera da presa, à beira dos rios ou lagos, e apanha-os num golpe certeiro. Faz ninho a pouca altura e põe dois ovos. Existe em quase todo o Brasil e vive geralmente solitária ou, em menor frequência, em grupos de dois ou três indivíduos²⁴.
Martim Pescador. Muito comum em margens dos rios, o martim-pescador permanece à espera que passem pequenos peixes, os quais captura em mergulhos certeiros, com o bico pontiagudo. Além de peixes, alimenta-se de insetos como abelhas, vespas e formigas aladas. Vive aos casais, revezando-se o macho e a fêmea na escavação de tortuosas galerias, de um metro de extensão, nos barrancos dos rios, onde nidificam. Os seus dedos dianteiros, unidos na base, prestam-se à perfeição para isso²⁵. Põe geralmente 3 a 5 ovos brancos, no fundo do túnel. A espécie existe do Texas à Argentina; e por todo o Brasil²⁶.
Guarás, que já vimos de perto no Parque Zoobotânico, em Belém. Tal como referido na crónica 15, a sua cor deve-se à alimentação à base de caranguejos, os quais possuem um pigmento (o caroteno) que lhes tinge as penas. O guará anda vagarosamente na água rasa, com a ponta do bico submersa, abrindo e fechando as mandíbulas em busca dos caranguejos. Vive em grandes bandos e reproduz-se em colónias no meio de densa vegetação. Os ninhos são plataformas construídas de gravetos, localizadas a cerca de 2 a 12 metros de altura. Cada fêmea põe em média 2 ou 3 ovos, de cor cinza-oliváceo com manchas e pontos castanhos. Existe em todo o Brasil, se bem que as populações do litoral sudeste e sul do país foram drasticamente reduzidas em decorrência da caça indiscriminada: além da carne para alimentação, as suas penas eram exportadas para a confeção de adereços; da captura dos ovos e da destruição e poluição dos manguezais, devido à urbanização²⁷.
Mais à frente teremos oportunidade de visitar um manguezal, cujo solo é típico dos países tropicais: lodoso, salgado e muito rico em nutrientes, ocupado por árvores denominadas “mangues”.
Os seguranças da fazenda, podemos chamar-lhes assim, cuja propriedade é atravessada diariamente pela população. Mais à frente veremos inclusivamente o autocarro da escola a passar.
²⁴ Wikiaves (2012), “Garça-real”. Página consultada a 15 de Agosto de 2013,
<http://www.wikiaves.com/garca-real>.
²⁵ Biomania (s.d.) “Martim-Pescador”. Página consultada a 15 de Agosto de 2013,
<http://www.biomania.com.br/bio/conteudo.asp?cod=1808>.
²⁶ Wikiaves (2012), “Martim-Pescador-Pequeno”. Página consultada a 15 de Agosto de 2013,
<http://www.wikiaves.com.br/martim-pescador-pequeno>.
²⁷ Ambiente Brasil (s.d.), “Guará (Eudocimus ruber)”. Página consultada a 16 de Agosto de 2013,
<http://ambientes.ambientebrasil.com.br/fauna/aves/guara_(eudocimus_ruber).html>.
026 - Fazenda do Bom Jesus III
Árvore Imbaúba. Os rebentos e os frutos da imbaúba são alimentos habituais da preguiça, o que justifica o nome de árvore-da-preguiça, pelo qual também é conhecida. Existem cerca de cinquenta espécies, distribuídas por quase todo o Brasil. Todas as espécies de imbaúba são típicas de áreas quentes e húmidas²⁸. Como possuem caule e ramos ocos, vivem em simbiose com formigas, especialmente as do género Azteca, que habitam no seu interior e as protegem de animais herbívoros – daí os nomes castelhanos para a planta: hormigo ou hormiguillo, numa referência a hormiga (“formiga”)²⁹.
A nossa chuvinha habitual da tarde, sempre pontual. Fica a nota de que a gritaria dos macacos acompanha-nos todo o tempo. Não há fotos de macacos, mas nós ouvimo-los claramente.
Cavalo marajoara, adaptado à água. Há mais de trezentos anos, os primeiros cavalos chegaram ao arquipélago do Marajó trazidos da ilha de Cabo Verde pelos portugueses. Os animais foram cruzados com cavalos árabes, alter e outras raças lusitanas, dando origem à raça marajoara. Desde então, por meio da seleção natural, o animal foi-se adaptando às condições ambientais adversas da ilha, enfrentando duas estações bem marcadas e rigorosas: a chuva e a seca. Dispondo de pastagens escassas e desafiando um tipo de solo argiloso, quebradiço, seco e batido pelas pegadas de búfalos, o marajoara desenvolveu a sua resistência e rusticidade. O cavalo é extremamente importante na região, especialmente para o trabalho de lida. Juntamente com o búfalo, ele também é largamente empregado como meio de transporte³⁰.
Árvore repleta de papagaios. Pelo que conseguimos contar, eram dez.
²⁸ Biomania (s.d.) “Imbaúba”. Página consultada a 15 de Agosto de 2013,
<http://www.biomania.com.br/bio/conteudo.asp?cod=1808>.
²⁹ Wikipedia (s.d) “Embaúba”. Página consultada a 17 de Agosto de 2013,
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Imba%C3%BAba>.
³⁰ Equinocultura (s.d.) “Marajoara”. Página consultada a 17 de Agosto de 2013,
<http://www.equinocultura.com.br/c/21>.
027 - Jantar feito pelo François
A nossa demanda por água engarrafada é constante. A certa altura resolvemos comprar um garrafão de cinco litros.
O François é um francês que veio há dez anos para o Marajó. Casou-se por aqui, e aqui ficou. Tem um filho em França. O seu restaurante tem um menú pequeno, mas bom. O Filipe, à semelhança do guia Gel, resolveu jantar uma salada calabresa, com bacon, ovo e alface. Excesso de confiança, podemos dizer, dado que fomos proibidos na Consulta do Viajante de comer saladas cruas ou fruta descascada. O Gel nasceu e cresceu no Marajó. O seu organismo está habituado a todas estas bacteriazinhas tropicais. Mas nós não. A salada estava perfeitamente deliciosa, é verdade, eu ainda me atrevi a dar-lhe duas dentadinhas, muito a medo. Eu fiquei-me por um crepe de frango e queijo do marajó, feito com leite de búfala. Mas o Filipe pagou posteriormente pela sua audácia. Digamos que teve de visitar a casa de banho mais frequentemente do que é normal. O Filipe já não tinha ficado muito bem com a proeza do açaí no mercado de Ver-o-Peso, mas agora foi de vez. Também irei sofrer lá mais para a frente, mas desta ainda escapei. As duas dentadinhas não me deixaram muito bem de estômago, de qualquer forma.
Atenção: tudo foi feito com higiene e com bons ingredientes, frescos. Nós é que não estamos habituados a estes microorganismos, tal como nos explicaram na Consulta do Viajante.
028 - Amanhece no Marajó
Alvorada às 6.20h. A saída para o nosso programa é apenas às 8.30h, mas ninguém consegue dormir muito depois das seis, com o calor e a luz. Tratamos de besuntar-nos todos com protetor solar e repelente de insetos. É a operação matinal número dois, logo após as lavagens no WC. Nesta foto já se vê o nosso ar suado e besuntado. Acho que nenhum mosquito conseguirá sobreviver se pousar em nós, se calhar não pelo repelente de insetos, mas simplesmente pelo facto de não conseguir descolar as patas de nós.
As malas por esta altura já estão todas desarrumadas, nada se encontra, o meu cartão multibanco anda desaparecido desde Belém. Eu sei que ele está algures, anda desaparecido, mas eu guardei-o algures. Já estamos a entrar na onda do “relax”. Isso. Beleza. Estamos a habituar-nos a este calor amazónico, estamos a habituar-nos à calma e à descontração. Tem de ser, senão não apreciaríamos devidamente a viagem.
A dona da pousada (a mãe do guia Gel) veio apresentar-se. Na véspera nem chegámos a vê-la. Disse-me para eu amarrar a saia. Amarrar a saia?, perguntei, intrigada. Eu estou de calções… Explicou-me então que nos dias de chuva se diz “amarrar a saia”. Já não me lembro porque me disse ela isto, devia haver previsões de chuva, com certeza. Mas pelo menos não choveu nesse dia, escapámos.
029 - Visita à Fazenda de São Jerónimo
Como previsto, às 8.30h arrancamos para a nossa próxima visita, onde faremos uma pequena caminhada, andaremos de canoa, e também montaremos búfalos – na fazenda extrativista de São Jerónimo. “Extrativista” significa que é colhido o que a natureza fornece. Nada é plantado propositadamente.
Repare-se no cavalo marajoara (detalhes na crónica 26) e no búfalo, ambos símbolos do Marajó.
Da esquerda para a direita: Filipe; Sr. Brito, o dono da fazenda; e o guia Gel. A sua mulher, Priscila, que não se encontra nesta foto, acompanhou-nos também nestes dias no Marajó.
Ligeira caminhada até chegar às canoas. Repare-se também na mochila do Filipe: sempre à mão, nos bolsos laterais, estão a água, os protetores solares (usámos fator 30 para o corpo, 50 para a face) e o repelente de insetos. Estamos numa zona com forte incidência da malária, por exemplo. Nós estamos medicados, tomamos um comprimido semanal conforme indicações do médico, porém mais vale prevenir do que remediar.
030 - Passeio de Canoa
Nas atividades da fazenda de São Jerónimo juntou-se-nos um rapaz com o seu pai (à esquerda), além da Priscila, ao centro. O Filipe está a entrar para o barco.
Árvore Mangue, que forma o manguezal. Mais adiante andaremos pelo meio de um, em cima de passadeiras. Atenção que “manguezal” nada tem a ver com mangas. Conforme referido na crónica 25, o manguezal é típico dos países tropicais: solo lodoso, salgado e muito rico em nutrientes, ocupado por árvores denominadas mangues. No manguezal dá-se o encontro de águas fluviais e marítimas. Mais adiante, quando o visitarmos, falarei detalhadamente sobre este ecossistema.
031 - Um Banho Refrescante
Aproveitemos a pausa (em que eu fui vestida tomar banho no rio…) para falar da organização desta viagem. Como habitual, a pesquisa inicial começou na internet. Como habitual também, procurei uma agência do próprio país, neste caso o Brasil, e que estivesse disponível para desenhar programas à medida. Não quero pacotes feitos, não quero andar em grupos com horários severos e rigorosos.
Entrei em contacto com várias agências especializadas em ecoturismo, na Amazónia. Como já estou habituada também, algumas nem responderam. Outras dão respostas desinteressantes. Encontrei então uma agência com a qual comecei a trocar emails, dando indicações cada vez mais exatas sobre o que pretendia, e ao fim de muitas trocas de impressões, obtive o programa que estamos a fazer agora. Posso dizer que o primeiro email foi enviado a 23 de Setembro. O programa final foi apresentado a 6 de Dezembro. Levou dois meses e meio, portanto. Claro que uma viagem destas dá trabalho e leva o seu tempo a desenhar. Não pode ser organizada um mês antes. E estão grandes montantes envolvidos – esta viagem está entre as mais caras que fiz até hoje, proporcionalmente, tendo em conta a sua duração, dezoito dias. O que a encareceu grandemente foram os voos – tivemos ao todo seis voos, contando com os de ida e volta para Portugal. E no Brasil “voos low cost” é conceito que não existe, conforme comentado na segunda crónica, a propósito da viagem de avião. Nós na Europa voamos para Madrid por trinta euros, mas no Brasil fazemos um voo doméstico de uma hora, empaturrado, por cento e trinta. E sem direito sequer a um snack.
Obtido o programa temos agora a fase ainda mais complicada: garantir a fidedignidade da agência. Recordemos que se trata apenas de um website na internet. Num continente distante. Não os conhecemos, não sabemos se existem de facto, e se quando chegarmos ao Brasil, estará realmente alguém à nossa espera. Porque o valor da viagem tem de ser transferido na totalidade antes de irmos. É delicada, esta fase. Tantas histórias ouvimos contar sobre burlas na internet, é normal que coloquemos um travão.
À semelhança de viagens anteriores, cumpri nesta o mesmo procedimento: pedir contactos de pessoas que tenham usufruído dos serviços desta agência, e contactos apenas de empresas. Nada de gmails e hotmails e afins. Claro que qualquer pessoa cria uma conta, indica que foi cliente e que correu tudo bem. Pedimos contactos de pessoas com um endereço de email de empresas, para as quais pudéssemos telefonar – no emprego – e garantir que realmente existem e podem ser encontradas.
E à semelhança das anteriores, a agência do Brasil não colocou qualquer problema. Percebeu o nosso receio e deu-nos um contacto de uma cliente habitual que trabalha no Citibank, em São Paulo. Acabámos até por ficar amigas no Facebook, trocámos uma série de impressões sobre viagens e quiçá qualquer dia virá visitar-nos a Lisboa.
Felizmente correu tudo bem. A agência portou-se à altura, e todos os serviços prestados correram sem falhas.
032 - Baía do Marajó
Passeamos num cenário paradisíaco. Faz calor, a água está morna, divertimo-nos neste grupo improvisado. A rã foi difícil de apanhar, andava aos saltos, a fugir pela areia, comigo atrás, até que finalmente consegui apanhá-la, no meio dos risos de todos.
Afundamo-nos bastante na areia, à medida em que caminhamos.
033 - Baía do Marajó II
Mangue. Cai da árvore, espeta-se na lama e desenvolve-se para formar uma nova árvore. Na foto abaixo já se vê uma a crescer.
Repare-se nos apetrechos habituais do guia Gel (tal como os nossos): garrafa de água na mochila e repelente de insetos debaixo do braço.
Lama com efeitos terapêuticos. Contou-nos o Gel que um dia um francês, ao passear com ele por aqui, encheu o corpo desta lama. Ao que parece um banho de lama destes, na Europa, custa bem caro.
034 - O Manguezal
Não confundir “mangal” ou “manguezal” com a fruta manga. O nome manguezal vem da árvore “mangue”, que se vê nas fotos. O manguezal é um ecossistema costeiro de transição entre os ambientes terrestre e marinho. Característico de regiões tropicais e subtropicais, está sujeito ao regime das marés. Nele se dá o encontro das águas de rios com a do mar, produzindo água salobre.
No Brasil, existem cerca de 25.000 km² de florestas de mangue, que representam mais de 12% dos manguezais do mundo inteiro. É no mangue que peixes, moluscos e crustáceos encontram as condições ideais para reprodução, berçário, criadouro e abrigo. O manguezal possui grande valor ecológico e económico. Os mangues produzem mais de 95% do alimento que o homem captura do mar.
A vegetação de mangue serve para fixar as terras, impedindo assim a erosão e ao mesmo tempo estabilizando a costa³¹.
Ninho de cupins. Em português (de Portugal) é conhecido por térmitas. Constroem túneis húmidos para passar, túneis esses que se vêem na foto. Veremos uma série de ninhos idênticos ao longo desta viagem e dado que esta crónica já vai longa, será mais à frente que falarei detalhadamente sobre este animal.
Cupim – Foto de George Grall, National Geographic
Fiquemos com a informação compilada pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo³¹:
Muitas atividades podem ser desenvolvidas no manguezal sem lhe causar prejuízos ou danos, entre elas:
- Pesca desportiva e de subsistência, evitando a sobrepesca, a pesca de pós-larva, juvenis e de fêmeas ovadas.
- Cultivo de ostras.
- Cultivo de plantas ornamentais (orquídeas e bromélias).
- Criação de abelhas para a produção de mel.
- Desenvolvimento de atividades turísticas, recreativas, educacionais e pesquisa cientifica.
Relativamente aos impactos ambientais, os principais fatores que causam alterações nas propriedades físicas, químicas e biológicas do manguezal são:
- Aterro e Desmatamento
- Queimadas
- Deposição de lixo
- Lançamento de esgoto
- Lançamentos de efluentes industriais
- Dragagens
- Construções de marinas
- Pesca predatória
³¹ Portal de Ecologia Aquática, Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (s.d.), “O Ecossistema Manguezal”. Página consultada a 18 de Agosto de 2013,
<http://ecologia.ib.usp.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=70&Itemid=409>.
035 - Passeio de Búfalo
Falemos então dos búfalos. Como chegaram os búfalos ao Marajó? Porque existem tantos búfalos no Marajó, comparativamente ao resto do Brasil?
Existem uma série de estudos e teorias, e fazendo pesquisa na internet, um dos estudos mais detalhados que se encontram vem da Associação Brasileira de Criadores de Búfalos. No seu website têm um PDF disponível que indica:
Durante muito tempo o búfalo permaneceu como um desconhecido no Brasil, insulado em fazendas de Uberaba, Cássia, Franca e Santa Rosa, ou proliferando na distante Amazónia. Pouco interesse despertou entre os estudiosos nas primeiras décadas do século XX. As suas origens e possibilidades permaneciam ignoradas dos seus próprios criadores, raramente saíam nas publicações agropecuárias e raramente eram matéria de ensino nas escolas de Agronomia e Veterinária. Não figurava nas estatísticas e para muitos era apenas um animal selvagem, quando não confundido com os bisontes americanos.
Narram as crónicas que os primeiros búfalos teriam entrado na Amazónia em 1890 ou 1895, trazidos por condenados foragidos da Guiana Francesa num barco que aportou na Ilha do Marajó. Seriam da variedade Malaia ou da China, mas provenientes da Ilha do Caribe ou das Guianas, onde foram introduzidos pelos colonizadores ingleses e holandeses.
A teoria mais remota que se tem confirmado, é o de uma importação por volta de 1902 feita por Bertino Lobato de Miranda, para a sua Fazenda São Joaquim, nas margens do rio Ararí, no Marajó. Eram búfalos pretos, de procedência italiana.
Mais conhecida é a importação de 1906, feita por Vicente Chermont de Miranda para a sua Fazenda Dunas e Ribanceira, na costa norte da Ilha. Com a ida de Chermont para o sul, o seu rebanho ficou praticamente abandonado, tornando-se semi-selvagem e embrenhando-se nas matas e alagados da região. Eram do tipo que veio a ser chamado “Rosilho”, mais tarde identificado como Carabao.
Em 1908 a firma Karl Hagenberck que mantinha em Hamburgo um famoso circo e um estabelecimento de importação e exportação de animais selvagens, remeteu exemplares para o Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, onde foram colocados à venda alguns casais de búfalos. Todavia em vista da falta de interesse dos pecuaristas fluminenses, esses exemplares foram levados para a Amazónia, onde se desenvolvia a sua criação.
Na década de 1940, o DNPA – Departamento Nacional de Produção Animal, do Ministério da Agricultura, tendo em vista as dificuldades enfrentadas pelos bovinos europeus, decidiu estimular a pecuária regional do Pará, com programas de fomento dos bubalinos. Foi organizada a Fazenda de Criação de Soure, que recebeu um plantel de Búfalos “Pretos”, para seleção da aptidão leiteira. As fêmeas em lactação eram mantidas em regime de semi-estabulação e controle leiteiro, o único de que se tinha notícia na época. Reprodutores e matrizes desses estabelecimentos eram vendidos anualmente em leilão para criadores da ilha e de outras regiões do Pará. Rebanhos foram formados pelo Instituto Agronómico do Norte. Na margem direita do Rio Amazonas, em Santarém no Pará, foi instalada a Estação Experimental de Maicurú, que chegou a possuir quase 2.000 búfalos³².
Estes e muitos mais detalhes sobre a evolução ao longo dos anos estão disponíveis na página citada abaixo da Associação Brasileira de Criadores de Búfalos.
Suco de taperebá ou também conhecido por cajá. É amargo, é necessário misturar açúcar, ficando então delicioso. Esta fruta vem da árvore cajazeira, presente na América tropical.
³² Associação Brasileira de Criadores de Búfalos (s.d) “Introdução dos Búfalos no Brasil”. Consultado a 18 de Agosto de 2013,
<http://www.bufalo.com.br/info_criador/historico_bufalos.pdf>.
036 - Piscina e Almoço
Filé de búfalo, sempre muito saboroso. Todas as nossas refeições foram preparadas pela dona da pousada, a qual ouvíamos cantar enquanto cozinhava.
Ao fundo os donos da pousada (pais do Gel); ao centro o próprio Gel e a Priscila. Foram três dias muito agradáveis passados na companhia desta família. O Gel tem mais irmãos, todos formados e a trabalhar nas grandes cidades. A própria Priscila é de São Paulo, veio recentemente para Belém por causa do Gel, que desenvolve aí a sua atividade de guia turístico.
Sobremesa de cupuaçu (creme e doce). Mostrei o fruto à venda no mercado de Ver-o-Peso (crónica 9).
Aqui deu-se a desgraça final. O açaí estava bem saboroso. Tão saboroso que o Filipe comeu uma boa dose dele, e eu algumas colheradas – misturadas com farinha de tapioca. Ora nós já não estávamos bem da véspera, com a salada do François. Andamos demasiado foitos, é a verdade. Saladas lavadas com água da torneira. E agora o açaí, que é ele próprio um pouco pesado, e com certeza será feito com água da torneira também. Resultado: o Filipe continuou decididamente a frequentar a casa de banho mais vezes do que o normal, e eu, como já é hábito nestas viagens exóticas, fiquei nessa tarde com umas dores de estômago que nem consegui andar direita. Mau. Temos de resolver isto rapidamente. Tive uma gastroenterite no Vietname, tive uma gastroenterite na Índia e não quero ter outra na Amazónia. Já sei o que a casa gasta, pelo que tomei uma dose cavalar de medicamentos – ou talvez seja mais apropriado dizer uma dose bubalina, dado que estamos na terra dos búfalos. Ataquei periodicamente com medicação adequada ao estômago e às gastroenterites, não me recordo ao certo, devia ter apontado, mas lembro-me de ter contado uns seis medicamentos diferentes. E descansámos uma meia hora após o almoço. Um dos sintomas é grande sonolência e cansaço, mal consigo levantar-me, pelo que nessa meia hora ainda dormitámos os dois, eu e o Filipe. Foi importante, este pequeno repouso. A tarde foi terrível, de qualquer forma. Fomos fazer umas visitas e eu andava calada e encurvada, cheia de dores. Desgraçado do açaí, estava capaz de torcer-lhe o pescoço se ele tivesse um.
037 - Curtumes do Marajó
Vestígios dos papagaios das crianças nos fios de eletricidade são comuns.
No Brasil são reconhecidas pela Associação Brasileira de Criadores de Búfalos quatro raças (de cima para baixo): Carabao; Mediterrâneo; Jafarabadi; e Murrah.
Os animais da raça Mediterrâneo têm origem italiana, possuem aptidão tanto para a produção de carne como de leite, têm porte médio e são medianamente compactos.
A raça Jafarabadi, de origem indiana, é a raça menos compacta e de maior porte, apresenta chifres longos e de espessura fina, com uma curvatura longa.
A Murrah, também indiana, apresenta animais com conformação média e compacta, cabeças leves e chifres curtos, espiralados enrodilhando-se em anéis na altura do crânio.
A raça Carabao é a única adaptada às regiões pantanosas, e está concentrada na ilha de Marajó; teve a sua origem no norte das Filipinas, apresenta pelagem mais clara, cabeça triangular, chifres grandes e pontiagudos, voltados para cima, porte médio e capacidade de produção de carne e leite, além de serem bastante utilizados como força motriz.
Os bubalinos têm temperamento dócil, o que facilita a sua criação e manejo e adaptam-se bem às condições ambientais húmidas. Como a sua pele é preta com poucos pêlos também pretos, sofrem muito quando estão expostos ao sol , além da dificuldade que têm em dissipar o calor extracorpóreo, em função do reduzido número de glândulas sudoríparas. Por esse motivo ele necessita de açudes ou lagos para ficar mergulhado nas horas mais quentes do dia³³.
Está visto que o Filipe montou um Carabao, no passeio na Fazenda, e eu devo ter montado um da raça Murrah.
Todo o processo de preparação dos curtumes foi-nos explicado, ao mesmo tempo que víamos alguns obreiros a efetuar as operações. Muito resumidamente: a pele é salgada durante três meses. Depois é dessalada com água e colocada em cal durante oito dias, para amolecer. É posteriormente limpa e colocada em tinta feita com casca triturada de mangue, durante trinta dias. A partir daqui o couro passa a ser chamado de sola. É-lhe então aplicado óleo de soja para amaciar e dar brilho. É tudo feito artesanalmente, sem químicos.
Couro de boi e couro de búfalo. O de búfalo é muito mais grosso.
Os túmulos no cemitério ficam com a cabeça sempre virada para o rio, explicou-nos o guia Gel.
³³ Associação Brasileira de Criadores de Búfalos (s.d) “Raças”. Página consultada a 18 de Agosto de 2013,
<http://www.bufalo.com.br/racas.html>.
038 - Artesanato do Marajó
Ao longo dos séculos houve sucessivas ocupações de índios no Marajó, com vários tipos de cerâmica. A fase marajoara, entre os anos 400 a 1350 d.C, apresenta-se como a mais sofistificada. Os índios do Marajó faziam peças rituais, utilitárias e decorativas. Vasilhas, potes, urnas funerárias, chocalhos, machados, bonecas para crianças, cachimbos, estatuetas, porta-venenos para as flechas, e tangas (ou tapa-sexo). Os objetos eram zoomorfizados (representavam animais) ou antropomorfizados (com uma forma semelhante ao homem ou parte dele), e também misturavam as duas formas: zooantropomorfizados.
Visando aumentar a resistência do barro eram agregadas outras substâncias, minerais ou vegetais: cinzas de cascas de árvores e de ossos, ou pó de pedra e conchas, por exemplo.
A fase marajoara termina cerca do ano de 1350, abandonada ou absorvida pelos novos migrantes, os aruãs, presentes na ilha aquando da chegada dos europeus³⁴.
Diversos artesãos dedicam-se atualmente à preservação e renovação da cultura marajoara, e visitaremos dois deles nesta tarde.
Esta ceramista mostrou-nos o interior da sua oficina, bem como as várias peças. Eu por esta altura andava realmente mal do estômago; atravessava nesta tarde a pior fase. À noite iria melhorar, e no dia seguinte iria começar a curar-me definitivamente. De forma que eu andava verdadeiramente apática, encurvada com as fortes dores, a tentar prestar atenção ao que ela dizia, bem como às peças, mas sem grande êxito. O Filipe, o Gel e a Priscila sabiam o que se passava comigo, mas ela não. A certa altura chamou-me decididamente pelo nome (já não me lembro quem lhe deu o meu nome, se mo perguntou diretamente, ou se perguntou a eles) e disse para eu tirar uma foto à peça que o Filipe comprou para nós. A ceramista devia pensar que eu estava um bocado lerda, com certeza, deveria estar a estranhar o meu ar. Imagine-se o estado em que eu estava, parada, meio encurvada, com a máquina ao pescoço mas sem tirar fotos – eu que fotografo tudo o que mexe e mais o que não mexe. Achei graça à sua atitude decidida, a ver se me conseguia entusiasmar: “Rutxi! Vem cá tirá uma foto!” (E eu fui, marreca e obediente…)
A brincarem com papagaios. A corda, como já referido na crónica 23, é embebida em pó de vidro e torna-se extremamente cortante. O objetivo do jogo é cortar a corda dos outros papagaios durante o voo.
³⁴ Enciclopédia Itaú Cultural (2006) “Arte Marajoara / Cerâmica Marajoara”. Página consultada a 18 de Agosto de 2013
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=5353>.
039 - Praia da Barra Velha
Ceramista e escultor marajoara Ronaldo Guedes, um dos artistas mais bem conceituados do Estado do Pará. A ceramista de ontem também é conhecida, vimos aliás artigos de jornais com entrevistas suas afixados num placard, na loja, bem como fotos de personalidades que visitaram as suas instalações. Mas recordemos que eu andava a leste do paraíso, nesta altura, por causa do estômago, pelo que não anotei o seu nome.
Universidade Federal do Pará, Campus de Soure, criado em 1986. Inclui faculdade de Letras e de Biologia.
Entramos na fazenda do Araruna, onde fica a praia da Barra Velha, banhada pelo rio Pará, o nome dado ao rio Amazonas após juntar as suas águas com o rio Tocantins. Não esquecer o referido na crónica 18: ao longo do seu percurso, o rio Amazonas vai recebendo vários nomes.
Recordo-me de estar numa praia gigante, na Austrália, mas acho que esta da Barra Velha consegue ser ainda maior. Passaram por nós alguns rapazes em bicicletas, aparentemente a passear.
Aproxima-se uma valente chuvada, mas não desistimos de atravessar esta parte, com água, para irmos ver o resto da praia mais à frente. Foi uma autêntica aventura por três motivos; ora vejamos:
Primeiro, é uma zona onde há raias. Ao que parece a picadela de uma raia no pé é extremamente dolorosa e deixa-o muito inchado. A regra nestes casos é atravessar arrastando os pés pela areia, e de preferência em fila indiana. Pelo que seguimos todos atrás do guia Gel, sempre a arrastar os pés.
Em segundo lugar porque começou a chover e a fazer relâmpagos e trovoadas, e é sabido que caminhar na praia nestas circunstâncias levanta um perigo acrescido. Todos levamos um chapéu de chuva que o Gel tinha guardado no carro, já preparado para estas eventualidades. E eu com a máquina fotográfica fechada na mala, e com o impermeável por cima dela (um impermeável que vem com a própria mala). Estas poucas fotos que consegui tirar, foi com certo custo, e tive a ajuda do Filipe, que segurava no chapéu-de-chuva entretanto. Vamos todos vestidos, ninguém foi preparado com fato de banho – a não ser o Filipe, que levava os seus calções amarelos, e parece-me que o Gel também usava uns calções idênticos. A Priscila desenrasou-se bem com os seus calções de licra. Portanto eu vi-me com água até à cintura, completamente vestida e calçada, com bolsa à cintura (tive de tirá-la, claro) e mais a máquina fotográfica. Nós ríamos às gargalhadas, um tanto ou quanto nervosos por causa das raias, mas estávamos completamente decididos a chegar ao outro lado. Se viemos até aqui, agora vamos até ao final. Acho que o Gel e a Priscila teriam desistido se eu e o Filipe mostrássemos desinteresse. Claro que sim. Nós é que queríamos avançar pelo areal, ver o resto da praia, e eles não nos fizeram a desfeita.
Em terceiro e último lugar, tive aqui um desgosto: as minhas sandálias compradas nos EUA, através da internet, e que me acompanharam nestas aventuras desde a Índia, não aguentaram a pressão de caminhar dentro de água, com a areia a sugá-las permanentemente. Descolou-se a parte inferior da sola. Fiquei com parte da sola, mas extremamente dura, já não dá para caminhar. A sola mais suave, que estava colada a essa, desapareceu no meio das areias alagadas. Nunca mais a vi. Foi com sério desgosto que deitei as sandálias para o lixo, num dos próximos hotéis, depois de ainda tentar andar com elas (arranquei a sola da segunda, entretanto, a qual se tinha descolado também) e vir que era de todo impossível. A questão é que a marca já não está a fabricar sandálias deste modelo – com proteção à frente para os dedos. Se eu desse um pontapé numa pedra enquanto caminhava, era a pedra que sofreria. Eu tinha os dedos fortemente protegidos. Doravante vou usar outras sandálias que levei, também da mesma marca e compradas em Nova Iorque, durante as férias que lá passámos, mas sem a dita proteção dos dedos. É mais delicado, é preciso caminhar com mais cuidado. E usar botas ou ténis está fora de questão, morreria de calor.
Adeus sandálias, portanto. Morreram no Marajó.
Quando saímos da água, os meus calções cheios de bolsos vinham cheios de água dentro. Devia ter quase um litro de água dentro dos vários bolsos laterais, sentia-os pesadíssimos. O Filipe, troçando, perguntou se eu queria levar a água de recordação para casa, e espremeu-os. O Gel e a Priscila riam-se do meu aspeto, com um armazenamento de água nos calções, sem uma sola na sandália e com a outra a cair.
040 – Jantar com Danças Folclóricas
Jantámos esta noite num hotel do Marajó – e apercebemo-nos que teríamos ficado ali em melhores quartos, mas incomparavelmente piores em termos de localização e beleza dos arredores, já que na nossa pousada estamos mais afastados do centro, temos piscina, vegetação e relvados, e estamos à beira rio. Tomar o pequeno almoço à beira rio compensa perfeitamente as condições moderadas dos quartos e duches.
Recordemos que eu ao almoço fiquei muito mal do estômago, e passei a tarde mal. Agora ao jantar, bem como nas próximas refeições, tenho de ter bastante cuidado e moderação. Este foi o meu jantar – banana, bolachas e um iogurte (que nem comi tudo) e ainda um pouco de arroz branco.
O Filipe escolheu “Petisco de Peixe”.
Assistimos a um espetáculo com danças típicas da região do Pará, e mais especificamente da Ilha do Marajó: o carimbó. Este nome vem dos índios tupis e refere-se ao tambor com o qual se marca o ritmo, o curimbó. Vem de Curi (pau) e Mbó (oco ou furado). Em alguns lugares do interior do Pará continua o título original de “Dança do Curimbó”.
Inicialmente, segundo tudo indica, a “Dança do Carimbó” era apresentada num andamento monótono, como acontece com a grande maioria das danças indígenas. Quando os escravos africanos entraram em contacto com essa manifestação artística dos Tupinambá começaram a aperfeiçoar a dança. O andamento, de monótono, passou a vibrar como uma espécie de variante do batuque africano. Por isso contagiava até mesmo os colonizadores portugueses que, pelo interesse de conseguir mão-de-obra para os mais diversos trabalhos, não somente estimulavam essas manifestações, como também, excecionalmente, faziam questão de participar, acrescentando traços da expressão corporal característica das danças portuguesas. Não é à toa que a “Dança do Carimbó” apresenta, em certas passagens, alguns movimentos das danças folclóricas lusitanas, como os dedos castanholando na marcação certa do ritmo agitado e absorvente.
Todos os dançarinos apresentam-se descalços. As mulheres usam saias coloridas, muito franzidas e amplas, blusas de cor lisa, pulseiras e colares de sementes grandes. O cabelo ornamentado com flores. Os homens dançam utilizando calças brancas ou pretas, normalmente com a bainha enrolada, costume herdado dos ancestrais negros que usavam as calças enroladas desta forma devido às atividades exercidas, como por exemplo a coleta de caranguejos nos manguezais.
As mulheres, cheias de encantos, costumam troçar dos seus companheiros segurando a barra da saia, esperando que eles estejam distraídos para atirar-lhes ao rosto esta parte da indumentária feminina. O facto provoca gritos e gargalhadas nos outros dançarinos. O cavalheiro que é vaiado pelos seus próprios companheiros é forçado a abandonar o local da dança.
Assistimos também à “Dança do Perú” ou “Perú de Atalaia”, onde o cavalheiro é forçado a apanhar, apenas com a boca, um lenço que a sua companheira estende no chão. Caso não consiga executar tal proeza a sua companheira atira-lhe a barra da saia ao rosto e, debaixo de vaias dos demais, ele é forçado a abandonar a dança. Caso consiga é aplaudido³⁵. Houve homens entre o público que tentaram, e um rapaz, turista, conseguiu, recebendo bastantes aplausos e gritos por parte de todos nós. Experimentem apanhar qualquer coisa do chão com a boca, sem caírem, e verão que não é nada fácil. É uma questão de ir abrindo as pernas, mantendo sempre o equilíbrio.
³⁵ Pará – Cultura, Fauna e Flora (2006), “Dança do Carimbó”. Página consultada a 25 de Agosto de 2013,
<http://www.cdpara.pa.gov.br/carimbo.php>.
041 - O Último Amanhecer na Ilha do Marajó
Quando fomos tomar o pequeno-almoço, a dona da pousada – D. Lena – deu-nos o abraço da paz, como ela lhe chama. Preparou-me um chá de canela com as folhas da árvore que Seu Lima foi buscar ali mesmo dentro do recinto da pousada, para o meu estômago ainda frágil.
Peixe Tralhoto, de olhos proeminentes. Costuma ser chamado também de peixe dos quatro olhos, mas na realidade tem apenas dois: a córnea está dividida horizontalmente em duas, por uma membrana opaca. Cada metade tem a sua própria retina. Nesta estrutura ocular, a íris possui duas projeções que dividem a pupila em duas. Ou seja, a parte de cima dos olhos fica fora de água e permite-lhe ter uma visão aérea. A parte de baixo dos olhos fica dentro de água e permite-lhe ter uma visão aquática³⁶. Os cientistas descobriram que a parte superior dos olhos do tralhoto – que fica fora da água – e mais sensível à cor verde. Já a metade inferior é mais sensível ao amarelo. A água em que ele vive é normalmente barrenta (nas florestas de mangues da Amazónia) e nesse ambiente a luz amarela é a melhor transmitida³⁷. Uma curiosidade observada no tralhoto é que tanto os machos quanto as fêmeas possuem órgãos sexuais orientados, ou para a direita, ou para a esquerda, ocorrendo a cópula apenas em pares invertidos: machos destros com fêmeas canhotas e machos canhotos com fêmeas destras³⁸.
Foto retirada de Hypescience³⁷
Aqui temos novamente o cupim, do qual tivemos oportunidade de ver um ninho na crónica 34. O cupim alimenta-se de madeira e pode ser bastante crítico se eles resolverem comer uma casa, já que os cupins não conseguem ver a diferença entre o interior de uma árvore morta e as paredes da casa de alguém. Em algumas partes do mundo, os ataques de cupins às casas são tão comuns que as pessoas adaptaram-se, construindo os seus lares sobre vigas revestidas com materiais anticupim, como pedaços de metal e outros tipos de proteção. Inclusivamente o processo de aquisição de uma casa geralmente já inclui uma inspeção da existência de cupins, que reduz a probabilidade de comprar uma casa já infestada. Após uma colónia ter feito a mudança para a sua casa, exterminá-la pode ser algo bem difícil.
O cupim existe há cerca de 50 milhões de anos e atualmente há quase 3 mil espécies deles vivendo nas regiões tropicais e subtropicais. As colónias dividem-se em várias castas ou grupos: os reprodutores – o rei e a rainha – que são os únicos que têm olhos. Os outros cupins são cegos e orientam-se pelo olfato e pelos trilhos húmidos. Existem depois os soldados, que defendem o ninho dos invasores, normalmente formigas e cupins de outras colónias. Na maioria das espécies, os soldados possuem cabeças grandes e mandíbulas fortes. E finalmente os operários, com mandíbulas menores e dentes serrilhados, que lhes permite morder pequenos pedaços de madeira e carregar materiais de construção. Como o nome sugere, são eles que fazem a maior parte do trabalho na colónia, sendo responsáveis por cavar túneis, recolher alimentos, cuidar dos mais jovens, e alimentar o rei, a rainha e os soldados. Tanto os operários como os soldados são estéreis.
Alguns operários, todavia, transformam-se em adultos com asas. Passam a ser chamados de alados. Saiem da colónia para encontrar um novo lar, ajudando a aumentar a população de cupins. Como eles voam muito mal, a maioria não consegue sobreviver à jornada. Após um alado macho e uma fêmea formarem um casal, procuram abrigo, normalmente um pequeno buraco ou depressão próximo do solo e de madeira, e selam o ninho com saliva, solo e os seus próprios dejetos. Então ocorre a cópula, e a nova rainha põe os ovos. Algumas espécies de rainhas põem milhares de ovos por dia. O rei e a rainha cuidam da primeira geração da nova colónia sozinhos até que tenham criado operários suficientes para assumir essa tarefa. Leva de dois a quatro anos para que a colónia fique pronta, e então o ciclo começa novamente com um novo grupo de alados indo embora para formar novas colónias. As rainhas podem viver até vinte e cinco anos, ao passo que a maioria dos operários vive entre dois e cinco anos.
O ninho dos cupins, chamado de cupinzeiro ou cupinzal, tem várias chaminés e tubos que permitem que o ar circule por toda a estrutura. Os ninhos são fortes, capazes de sobreviver a incêndios e enchentes, embora a água consiga entrar nas câmaras internas e afogar os cupins que estiverem lá dentro. Algumas pessoas vêem os cupins como agressivos destruidores de lares e propriedades, mas cerca de 90% das espécies de cupins são benéficas. Eles consomem, digerem e utilizam a vegetação morta ou próxima da morte. Algumas espécies também se alimentam dos excrementos de herbívoros, que podem conter celulose não digerida. Em alguns locais, os cupins são o fator mais importante na decomposição da celulose, e sem eles as árvores mortas e dejetos de herbívoros não se decomporiam normalmente, amontoando-se aos poucos e dificultando a migração e a busca de alimento por parte de outros animais³⁹.
Vila de Pesqueiros, a qual deu origem à praia onde vamos. De início não tinha iluminação pública, não proporcionava qualidade de vida pela sua falta de serviços, pelo que a população foi-se embora. Na década de 1980/90, o Estado começou a desenvolver a área, criou um posto de saúde e uma série de infraestruturas, pelo que as pessoas começaram a voltar. Antes não existiriam ali mais do que dez famílias, contou-nos o guia Gel.
³⁶ Cavalcante, Adriana et al. “Biologia reprodutiva de Tralhoto na Baía de São Marcos, Maranhão, Brasil”. Boletim do Instituto de Pesca, São Paulo, 38(4): 285 – 296, 2012. Página consultada a 25 de Agosto de 2013,
<ftp://ftp.sp.gov.br/ftppesca/38_4_285-296.pdf>.
³⁷ Hype Science (s.d) “Peixe de quatro olhos enxerga dentro e fora da água ao mesmo tempo” Página consultada a 25 de Agosto de 2013,
<http://hypescience.com/peixe-de-quatro-olhos-enxerga-dentro-e-fora-da-agua-ao-mesmo-tempo/>.
³⁸ Wikipédia (s.d.) “Tralhoto”. Página consultada a 25 de Agosto de 2013,
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Tralhoto>.
³⁹ Wilson, Tracy (2008) “Como funcionam os cupins“. HowStuffWorks. Página consultada a 25 de Agosto de 2013,
<http://ciencia.hsw.uol.com.br/cupim.htm>.
042 - Manhã Livre na Praia do Pesqueiro
Vamos tomar banho no rio Pará, o rio que banha esta praia do Pesqueiro. Recordo que “Pará” é o nome dado ao rio Amazonas após juntar as suas águas com o rio Tocantins. Ao longo do seu percurso, o rio Amazonas vai recebendo vários nomes.
A temperatura da água ronda os 26 graus. (Vamos refrescar-nos para a toalha, disse o Filipe, após o banho…) E ao sair da água a primeira coisa que fizemos foi colocar o repelente de insetos. Não o protetor solar, mas o repelente de insetos. Aqui há muitos, pequeninos, que picam todos ao mesmo tempo, sobretudo nas pernas. Torna-se quase um formigueiro.
A praia, que é um dos maiores atrativos naturais de Soure, possui barraquinhas com serviços de bar e restaurante e uma culinária cuja especialidade são os peixes regionais e o caranguejo toc-toc, o qual é cozido inteiro em água, com sal, limão e alho. A dica é também aproveitar uma saborosa água de coco, oportunidade que não perdemos. Dado que eu estou a recuperar de uma crise de estômago, optámos por deixar o almoço encomendado na nossa pousada – algo mais leve para mim, como frango grelhado com arroz branco.
De notar que quando estacionámos o carro na praia, à chegada, vieram os “flanelinhas”. É o nome dado pelos brasileiros aos arrumadores de carros (também os há aqui, na praia do Pesqueiro!!). São garotos que ajudam a estacionar os carros, e andam habitualmente com um pano de flanela para limpar os vidros – daí o nome de “flanelinhas” (leia-se com pronúncia brasileira, claro).
Leónidas, que nos entreteve um pouco com os seus colares e pulseiras, bem como com a sua conversa extrovertida. Deixou-me tirar-lhe esta foto (posou inclusivamente para ela) e pediu para não colocá-la no Facebook. Rimo-nos todos. Disse que eu e a Priscila éramos parecidas e perguntou se éramos irmãs. O Filipe comprou-lhe um colar para oferecer a uma sobrinha, deu-lhe uma nota de vinte reais para pagar, e ele não tinha troco. Como fazemos?, perguntou-lhe o Filipe. Não esquenta…, respondeu-lhe calmamente o Leónidas. E foi buscar troco algures.
043 - Almoço e Abalada
Frango frito para o Filipe, frango grelhado para mim, preparado pela D. Lena na nossa pousada.
Guaraná bebido pelo Filipe. Bebemos imensos tipos e marcas de guaranás, durante esta viagem. Ficámos a apreciar muito mais esta bebida, o verdadeiro guaraná não tem nada a ver com o que encontramos nos supermercados em Portugal.
Repare-se no preço do combustível, aqui no Marajó: gasóleo 2,57 reais (ao câmbio de 0,36 cêntimos, dá 0,93 cêntimos de euro) e a gasolina a 3,36 reais (1,21 euros). Na cidade de Belém a gasolina era um pouco mais barata: 2,83 reais.
Ruínas dos jesuítas. Pode dizer-se que os jesuítas se instalaram no Estado do Pará desde a década de 1650, com a chegada do padre António Vieira. Cem anos depois dá-se a sua expulsão. O crescimento da ordem, principalmente no século XVIII, provocou inúmeros conflitos com moradores e autoridades, sobretudo em torno da mão-de-obra indígena, fundamental na região. Os jesuítas combatiam veementemente a exploração e escravização dos indígenas. Tiveram também um papel muito importante na área do ensino, o qual incidia não só sobre os índios, mas também sobre as comunidades portuguesas. Significativamente, numa carta ao provincial do Brasil, escrita provavelmente em 1654, o próprio padre Vieira enfatizava que com os portugueses “se não tem trabalhado menos que com os índios” No Estado do Pará, onde nos encontramos, os jesuítas conseguiram construir uma incrível rede de colégios, aldeias e residências que cristalizaram o seu poder e o seu apostolado na região⁴⁰.
⁴⁰ Chambouleyron, Rafael e Neto, Raimundo (s.d.) “Jesuítas, Moradores e Colégios na Amazónia Colonial”. Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil”, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Pará. Página consultada a 31 de Agosto de 2013,
<http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/jornada/jornada9/_files/Hq2dgL6I.doc>.
044 - Experimentando os Papagaios Artesanais
Artesanais, mas perfeitinhos, conforme se pode ver na foto. No final demos cinco reais ao garoto pelos preciosos minutos de competição perdidos com os amigos, enquanto nós nos divertíamos com o seu papagaio. Faz um calor tremendo, o termómetro do carro marca 37 graus.
Enfrentámos depois as três (agora um bocado entediantes) horas de viagem de barco da melhor forma que conseguimos. Voltámos a instalar-nos no convés, desta vez ainda sob sol forte. Chegámos já noite cerrada a Belém.
045 - De Novo em Belém
Estamos de passagem, amanhã vamos apanhar um avião para outras terras. E recebeu-nos uma autêntica tempestade, com estradas cortadas e postes de eletricidade caídos. Trânsito totalmente congestionado, pelo que uma viagem de meia hora transformou-se numa com o triplo do tempo. Nós cheios de fome para jantar. O Gel e a Priscila deixaram-nos no hotel já passaria das 21h. Tomámos um duche, outra vez num quarto diferente (é o terceiro que usamos neste hotel…), mudámos de roupa e fomos de táxi até às Docas, para jantar. Eu com algum receio de apanhar táxis à noite, depois de ter visto nas notícias tantas histórias escabrosas. Foi o rapaz da receção do hotel que o chamou e felizmente calhou-nos um senhor bem simpático, que foi conversando connosco, contando que tinha uma filha na universidade.
Na última vez jantámos no restaurante “Capone”, desta vez fomos para o “Lá em Casa” – ambos sob sugestão do guia Gel. Eu pedi pescada amarela na chapa (um peixe de escamas existente no oceano Atlântico desde o Panamá à Argentina, e o qual mede até 1,10m⁴¹) acompanhado de arroz branco, e o Filipe uma especialidade da casa chamada “Peixe à Chefe”.
Pescada Amarela
O longo tempo de jejum na viagem de regresso a Belém, bem como o atraso para jantar, não ajudou na recuperação do meu estômago. Mesmo assim não pude deixar de experimentar um dos famosos gelados de Belém – escolhi o de tapioca e soube-me muitíssimo bem. Infelizmente, cerca da meia noite, já na casa de banho do hotel, vomitei tudo. Foi a primeira e única vez que vomitei, nesta viagem à Amazónia. Logo por azar era o dia da toma do comprimido para a malária, que devia ser tomado uma vez por semana. Precisamente no dia em que o tomei, vomitei, porventura precisamente por o ter tomado, pois o medicamento é um pouco agressivo. Durante esta semana não o tomarei, paciência. E eis que no dia seguinte tínhamos um carreiro de formigas até à sanita da casa de banho. O Filipe ria perdidamente, troçando do meu estado frágil, com fome, sem conseguir comer, e agora com formigas. O que é certo, porém, é que o Filipe já ia para o terceiro dia mal, também. Em breve ver-se-ia forçado a recorrer ao Imodium e seria então a minha vez de rir.
Que flores de estufa somos nós.
⁴¹ Luna, Susan e Bailly, Nicolas (s.d.) “Cynoscion acoupa”. Página consultada a 23 de Outubro de 2013,
<http://www.fishbase.org/summary/1169>.
046 - Adeus Belém
O nosso próximo voo é às 13.47h (exatamente assim, 13.47h) com destino a Santarém. Vai outro guia buscar-nos a esse aeroporto para então levar-nos a Alter do Chão, onde iremos passar cinco dias. Todos estes nomes portugueses – de terras existentes em Portugal – são engraçados: jantámos em Belém, no dia seguinte vamos para Santarém, depois Alter do Chão…
Tivemos a manhã livre, pelo que dormimos até tarde. (O quanto é possível dormir, com o calor e a humidade. O ar condicionado esteve quase permanentemente ligado). Tomámos o pequeno almoço às 10h, hora limite, e foram buscar-nos ao meio-dia. Estamos ligeiramente debilitados (conforme referido, vomitei o jantar na véspera), faz muito calor, e nós já corremos Belém de uma ponta à outra, pelo que optámos por ficar no quarto fresco, a descansar, durante essa hora.
A motorista Roberta, já nossa conhecida, veio buscar-nos, e o nosso voo partiu com antecedência, curiosamente. Levantámos voo às 13.35h, doze minutos antes da hora marcada. Nós estamos habituados a partir com atraso, quando muito à hora; partir com antecedência foi coisa que nunca nos tinha acontecido. O sentido prático dos brasileiros é fantástico. O avião está cheio, todos os passageiros que compraram bilhete já estão dentro, a torre de controlo deu o ok, e aí vamos nós. Outro elemento estranho ao qual nós, europeus, não estamos habituados, é o facto de não haver proibição no transporte de líquidos na bagagem de mão. Nós estamos habituados à restrição dos 100 ml. Aqui entramos com garrafas de litro e meio na mão, não há problema. Pelos vistos ninguém quer fazer explodir um voo para Santarém.
Não houve um único sumo que nos tivessem posto à frente, que eu não tivesse experimentado. Mesmo em quantidades mínimas, porventura apenas um pequeno gole. Com todos estes nomes exóticos – não sei se alguma vez mais terei esta oportunidade, pelo que era imprescindível experimentá-los. Eram para todos os gostos e uma questão de adicionar açúcar ou água ao gosto.
047 - Aeroporto de Santarém
Estes aeroportos locais são sempre uma emoção para os viajantes – pelo menos os mais viajados internacionalmente, habituados a grandes aeroportos, com controlos rigorosos de segurança, polícia por todo o lado, restrições de bagagem e sei lá que mais. Aqui não há nada disso. Saímos do avião (um caloraço enorme) e atravessámos a pista a pé, com as malas atrás, pelo meio dos aviões. Parece que estamos num terminal de autocarros. Nós divertimo-nos a tirar fotografias a tudo. Os voos da TAM são muito confortáveis, curiosamente mais confortáveis do que o da TAP onde fizemos dez horas de voo. Este voo durou 1.15h, ou seja, chegámos às 14.50h a Santarém. Em todos os voos da TAM (fizemos três ao todo, e ainda mais um noutra companhia brasileira chamada GOL), em todos os voos da TAM oferecem logo à partida uns caramelos de chocolate muito bons, de boa qualidade. Da primeira vez tirei um, da segunda vez tirei dois, e à terceira já vieram três ou quatro, após vermos os restantes passageiros – locais – a tirá-los às mãos cheias.
E temos agora um novo guia. Não sabemos quem é. Há sempre uma certa expetativa ao chegar, a ver se vamos encontrá-lo, ou se ele nos encontra a nós. E lá estava ele com um papel na mão, com os nossos nomes. O Filipe nunca mais se despachava, ainda estava na fase de não largar as casas de banho, pelo que fomos os últimos passageiros a sair do aeroporto e finalmente cumprimentar o novo guia, de ascendência japonesa, e vestido a rigor – calções e camisa de caqui de manga curta, botas de caminhada e chapéu – Ildefonso Taketomi. Take quê? Já começa a ser habitual esta nossa dificuldade em perceber e fixar nomes. Bom, pelo menos Ildefonso é bem português.
Fazem 36 graus e lá fomos nós, de carro durante 45 minutos até Alter do Chão, com o guia Taketomi, que veremos mais adiante, a dar-nos as primeiras explicações sobre a região: que aqui existe a savana fechada, como os biólogos lhe chamam, diferente da floresta amazónica. Os rios estão cheios e nós estamos no meio de três: o Amazonas, o Tapajós e o Arapiuns.
048 - Chegada a Alter do Chão
Alter do Chão
Os nosso dias em Alter do Chão vão ser tranquilos. Já estamos fora da cidade, agora vamos navegar pelos rios e fazer caminhadas. Temos de esforçar-nos por fazer uma alimentação moderada, saudável, para ver se recuperamos depressa todas as energias. A viagem ainda está no princípio, estamos no sexto dia. Esta mercearia foi onde nos abastecemos de bananas e iogurtes diariamente. Juntamente com bolachas (felizmente trouxe de Lisboa, pois a oferta aqui era pouco variada ou não adequada a estômagos frágeis) e um pouco de peixe grelhado com arroz branco, foi sendo a minha alimentação. O Filipe estava mais à vontade, também foi comendo carne e alguns fritos. De facto andávamos bem, satisfeitos e cheios de força. Os programas em Alter do Chão tiveram o seu nível de exigência, mas fizemo-los sem qualquer problema. Aqui, nestas terras calmas, curámo-nos definitivamente das nossas maleitas gastrointestinais.
O guia Taketomi, de chapéu, a passar as bagagens ao empregado do hotel.
Receção do hotel. Esta foto é importante porque mostra a praia de Alter do Chão quando os rios estão vazios. Será lá mais para Agosto. Nós estamos em Junho, as águas já estão a descer e vamos inclusivamente ter uma tarde de praia, mas este centro que se vê na foto ainda não está totalmente visível por esta altura.
049 - Tarde Livre, Reconhecimento da Vila
Segundo reza o website da prefeitura de Santarém, Alter do Chão foi fundada em 1626 pelo português Pedro Teixeira, um militar que participou na expedição de Francisco Caldeira Castelo Branco (ver crónica 11 sobre o Forte de Belém). Pelas suas características peculiares e atrativos naturais e culturais, Alter do Chão recebe atualmente um elevado número de turistas e navios de cruzeiros marítimos que demandam o rio Amazonas. Por esta razão, a referida vila é um importante pólo turístico da região⁴².
Vamos então a isto.
Primeira fase: refrescamo-nos na piscina do hotel, na companhia das iguanas.
Segunda fase: tentamos tomar um banho no rio, mas temos medo das raias, pelo que regressamos à piscina.
Terceira fase: mais frescos, vamos então dar um passeio a pé até ao centro da vila, caminhada que desde o nosso hotel leva uns dez minutos.
Respira-se ar puro e tranquilidade. Nesta altura ainda existem poucos turistas. Contou-nos o guia Taketomi que quando chega um navio, a vila enche-se de milhares de pessoas, diz que é uma multidão enorme nas ruas e praças, e há música e barulho. O nosso hotel é aconselhado pelo facto de estar relativamente distante da confusão, se bem que nesta altura do ano a gente mal dê conta disso.
Acabaram-se os dois sprays de repelente de insetos que trouxemos de Lisboa. Procurámos farmácias para renovar o nosso stock, e foi com desapontamento e apreensão que tivemos de comprar um novo repelente com baixa proteção. Existem vários tipos de repelentes, numa série de marcas e com variados graus de proteção. Quem viaja por países tropicais, sobretudo em viagens longas como a nossa, tem de ter isto em atenção. A rapariga que nos atendeu nesta farmácia, tal como a senhora de outra para-farmácia no aeroporto de Belém, não faziam a mínima ideia disto, e puseram-se a a ler as letrinhas minúsculas das várias embalagens, tentando descortinar se os repelentes que tinham à venda possuíam a loção IR3535 com 25% de proteção – o que nós pedíamos. Ora isto era chinês para eles. Mas dado o elevado risco de malária que corremos – estamos na Amazónia, há malária e há dengue; além do incómodo de ser picado pelas vulgares melgas – dadas estas circunstâncias, precisamos de um repelente de insetos fiável para colocar na pele. Qual quê. Trouxemos o que seria uma água perfumada, que custava um terço do nosso repelente comprado em Lisboa (o qual é feito em França, a propósito) e que tinha também um terço da proteção. Mais interessante se torna isto pelo facto de em Portugal encontrarmos em qualquer farmácia os potentes repelentes – não há mosquito que se aproxime de nós – quando não existe mais nada senão simples melgas, e eis que na Amazónia, onde morrem pessoas com malária e dengue, só existem estas águas perfumadas, que nem o nome de repelentes merecem. Se calhar existem à venda no Rio de Janeiro ou em São Paulo, talvez. Lê-se na Wikipedia que em 2010 existiam mais de cem mil pessoas no Brasil infetadas com dengue⁴³, por exemplo. Relativamente à malária, mata um milhão de pessoas por ano em todo o mundo, sendo que 97% dos casos no Brasil ocorrem na Amazónia⁴⁴.
Bom.
Melguinhas e toda a bicharada voadora, estamos aos vosso dispor.
Nunca imaginámos que em seis dias iríamos dar cabo de duas embalagens (das grandes) de repelentes. Na Índia andei um mês com uma, e também punha todos os dias. Não consigo perceber. Felizmente a coisa até correu bem. Por aqui não fomos exageradamente picados, ainda usámos o resto do spray que tínhamos, e nos nossos próximos destinos deixou mesmo de haver mosquitos, pois andámos no Rio Negro, de águas ácidas, e nada propícias ao seu desenvolvimento. Foi a nossa salvação.
⁴² Prefeitura de Santarém (s.d.) “Alter do Chão”. Página consultada a 31 de Agosto de 2013,
<http://www.santarem.pa.gov.br/conteudo/?item=89&fa=6&cd=6&cod_tema=3>.
⁴³ Wikipedia (s.d.) “Dengue”. Página consultada a 31 de Agosto de 2013,
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Dengue#Dengue_no_Brasil>.
⁴⁴ Wikipedia (s.d.) “Malária”. Página consultada a 31 de Agosto de 2013,
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Mal%C3%A1ria>.
050 - No Centro da Vila
Muito pitoresca, muito engraçada, e onde podemos andar livremente, sozinhos, sem qualquer receio. Estamos num ambiente pequeno, todos se conhecem, todos se cumprimentam, e estão mais que habituados a ter turistas a deambular por aqui e por ali, pelo que nem nos ligavam particularmente. Em breve procuraremos bicicletas para alugar. O Filipe comprou uma lata de guaraná num quiosque, e banana frita numa das barraquinhas que se vêem atrás de mim – bananas das grandes, típicas da região, utilizadas para cozinhar. Disse que era deliciosa. Eu contive-me, fritos é melhor não arriscar por enquanto. A seu tempo.
A maré está cheia e as casas estão mesmo debaixo de água. Tranquilamente. Logo esvaziará, a maré. Isso. Beleza. (Leia-se “Isso, Beleza” com pronúncia brasileira).
051 - Anoitecer em Alter do Chão
Regressámos ao hotel ao anoitecer, onde tínhamos deixado o jantar encomendado para as 19.30h: peixe pirarucu na brasa, o maior peixe existente nos rios brasileiros. Mede até dois metros e pesa até 150 kg, conforme referido na crónica 9, onde estava à venda salgado, no mercado de Ver-o-Peso. A sua carne é deliciosa, e é um dos peixes mais consumidos na Amazónia. Em qualquer restaurante está disponível. Eu limitei-me a comer um pedaço do peixe e do arroz do Filipe. Recordemos que na véspera vomitei o jantar, não vale a pena insistir. Eu irei comer bananas e iogurtes, sobretudo, nestes primeiros dias. O Filipe pediu ainda como entrada macaxeira frita com bacon, a qual me atrevi a provar uma coisa mínima, só para não deixar escapar a oportunidade de experimentar algo novo. Macaxeira é uma espécie de mandioca que parece batata.
Peixe Pirarucu
À entrada do hotel, depois de jantar, por onde andámos a passear, vimos este sapo-cururu. A sua pele possui várias glândulas venenosas. Quando importunados, os sapos inflam o corpo e posicionam as suas glândulas em direção ao agressor. O envenenamento, entretanto, só ocorre se o predador morder o sapo e a secreção das glândulas entrar em contacto principalmente com a sua mucosa oral. Trata-se de uma defesa passiva, portanto. Alimenta-se de caracóis terrestres, centopeias, baratas, besouros, gafanhotos, formigas e roedores de pequeno porte⁴⁵. A vocalização do sapo-cururu pode ser ouvida no website do Programa de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio), dedicado ao estudo da biodiversidade no Brasil. Este exemplar mostrava-se estranhamente tranquilo perante a minha presença e perante as dezenas de flashes que disparei sobre ele, a ponto de interrogar-me se não seria um boneco. Não é, não. É mesmo um sapo-cururu que de vez em quando se mexia, e nunca mais voltámos a vê-lo nas várias noites que aqui pernoitámos.
Estamos sozinhos sentados em frente à piscina do hotel, rodeados de árvores por todo o lado. E a verdade seja dita: ficámos assustados com os gritos da bicharada. O barulho dos animais é tão intenso que nos deixa um pouco nervosos. À mínima coisa desconfio que teríamos corrido disparados para dentro do hotel. Olhávamos à nossa volta, esperando ver aparecer sabe-se lá o quê, mas uma coisa é certa: seriam animais grandes, pelo barulho que faziam. Só no dia seguinte, quando perguntámos ao guia Taketomi o que era aquilo, é que ele se riu e disse-nos que seriam – entre outros animais – macacos zogue-zogue (eu escrevi no meu bloco “zogui-zogui”, de acordo com a pronúncia brasileira…). São esquivos, praticamente impossíveis de fotografar por turistas comuns. Existem muitas espécies de zogue-zogues, de vários tamanhos e cores. Pelo que consigo perceber pesquisando na internet, no Pará existe a espécie “callicebus hoffmannsi”⁴⁶, os quais são cinzentos ou acastanhados. Não os vimos, mas ouvimo-los. O Filipe gravou inclusivamente no smartphone o som dos animais, nesta nossa primeira noite em Alter do Chão. Sabemos hoje, todavia, que o principal som dessa noite era precisamente o dos sapos-cururu.
Macacos Zogue-Zogue.
Fonte – animaldiversity.ummz.umich.edu.jpg
⁴⁵ Fontana, Pedro (2012)” Estudo morfológico comparativo do sistema de defesa química cutânea em duas espécies de sapos amazônicos (Rhinella marina e Rhaebo guttatus)”. Programa de Pós-graduação em Toxinologia do Instituto Butantan. Página consultada a 31 de Agosto de 2013,
<http://posgrad.butantan.gov.br/dissertacoes_teses/Dissertacao-%20P.%20L.%20M.%20Fontanabaixa.pdf>.
⁴⁶ Tourinho, Manoel et al. (2010) “Relatório Ambiental Preliminar das áreas de concessão florestal do Conjunto de Glebas Mamurú-Arapiuns“. Universidade Federal Rural da Amazónia. Página consultada a 31 de Agosto de 2013,
<http://www.ideflor.pa.gov.br/file/Relat_rio%20Ambiental%20Preliminar%20-%20RAP.pdf>.
052 - Subida à Serra da Piraoca
Estes malandros comeram-me metade do bolo, enquanto fui buscar leite. Deixei uma fatia de bolo em cima da mesa, e quando me virei lá estavam eles. E apenas metade da fatia. São os chamados “Bem-Te-Vi” (eu bem os vi, sim, mas já não consegui fazer nada) e serão um dos pássaros mais populares do Brasil. Acompanharam-nos por todo o lado, nesta viagem. Existem na América Latina, bem como em parte dos EUA, nomeadamente no Texas; vivem em cidades, plantações, pastagens e rios, e comem todo o tipo de comida: devoram centenas de insetos diariamente mas também fruta e flores de um jardim, ovos de outros pássaros, minhocas, lagartos e até cobras, e também são apreciadores de bolos, constato. O bem-te-vi mergulha na água e apanha peixes, girinos e sapos. Depois do terceiro ou quarto mergulho, precisa de secar-se ao sol. Vira-se então para os besouros, vespas e outros insetos voadores⁴⁷. O seu nome é onomatopaico, pois ao cantar parece pronunciar com clareza: “Bem-te-vi”⁴⁸. Viu-me, viu-me. Todas as manhãs, neste hotel, era uma fatia de bolo para mim, e outra para ele.
Árvore jambuzeiro, cuja flor – o jambo – deixa um tapete cor-de-rosa no chão.
A população de Alter do Chão já está habituada à água. À abundância de água, entenda-se. Contou-nos o guia Taketomi que em 2009 a água entrou por estas casas.
Repare-se nos telhados das cabanas, ao fundo, a par com as árvores. São restaurantes que abrem apenas no verão, quando a água baixa. Mais para a esquerda ainda vamos apanhar um a funcionar (descoberto, naturalmente), onde almoçaremos. Estamos já a ver parte de um “igapó” – matas inundadas, cuja vegetação está adaptada a terrenos alagadiços. Aquelas árvores estão vivas e bem de saúde, apesar de apenas se ver parte da sua copa.
Macaco Guariba⁵⁰
Durante a travessia de barco fomos ouvindo os macacos, desta vez os Guariba, pelo que nos explicou o guia Taketomi. Não os vimos, mas ouvimos. O macaco Guariba (ou Bugio), tem pêlos mais compridos nos lados da face formando uma espécie de barba, e é famoso pelos seus gritos. São inclusivamente conhecidos por “macacos-gritadores”, já que os seus gritos podem ser ouvidos num raio de vários quilómetros de distância. Têm sido sujeitos a caça intensa, no Brasil, o que juntamente com o desmatamento, os coloca em risco de extinção⁴⁹’⁵⁰. Vê-los-emos mais adiante, num passeio pela floresta do Tapajós. Entretanto podem ser vistos e ouvidos neste vídeo do website “Vida Animal”.
Quando não está coberto de água, fica assim.
⁴⁷ Hsiao, Alesia (2001) “Pitangus sulphuratus”. Página cunsultada a 29 de Setembro de 2013,
<http://animaldiversity.ummz.umich.edu/accounts/Pitangus_sulphuratus/>.
⁴⁸ Vivaterra (s.d.) “Bem-Te-Vi”. Sociedade de Defesa, Pesquisa e Educação Ambiental, Rio de Janeiro. Página consultada a 8 de Setembro de 2013,
<http://www.vivaterra.org.br/aves.htm>.
⁴⁹ Portal Ache Tudo & Região “Macaco Guariba ou Bugio” (2012). Página consultada a 8 de Setembro de 2013,
<http://www.achetudoeregiao.com.br/animais/macaco_guariba.htm>.
⁵⁰ BBC Brasil.com (s.d.) “Macacos sob Ameaça”. Página consultada a 8 de Setembro de 2013,
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/especial/1252_macacos/index.shtml>.
053 - Caminhada pela Savana Fechada
Hoje vamos ver algo muito diferente da selva amazónica, disse-nos o guia Taketomi. Vamos ver a savana fechada, com arbustos e árvores de pouca altura com caules e galhos tortuosos.
Enquanto caminhávamos, o guia Taketomi perguntou-nos se já tínhamos ouvido falar da formiga “tucandeira”, existente na Amazónia. Esta formiga existe apenas na América Central e do Sul. É uma formiga grande, também conhecida como “formiga-bala”, que chega aos 2,5 cm, e cuja picadela dói severamente. A tucandeira tem um ferrão no abdómen, como uma vespa, e possui um veneno neurotóxico que torna a sua ferroada a mais dolorosa de todos os insetos do mundo. (Eu caminhava de sandálias e passei a olhar com mais atenção para o chão…) De facto, um insetologista norte-americano chamado Justin Schmidt deixou-se ferroar por dezenas de espécies de insetos e criou o Índice Schmidt de Dor, no qual as dores são avaliadas em notas de 1 a 4. A formiga tucandeira ficou no topo da lista, e vejam-se as impressões deste excêntrico pesquisador sobre a ferroada desta formiga: “É como andar sobre as chamas de carvão em brasa enquanto um prego enferrujado de 7 cm perfura o seu calcanhar.”⁵¹ O veneno da tucandeira causa uma dor insuportável, a qual pode ser acompanhada de tremuras, suor, náusea, e paralisia da perna ou braço afetados⁵², fazendo a vítima achar que realmente vai morrer. Mas depois de vinte e quatro horas a dor vai passando, e o veneno não causa nenhuma sequela. É uma arma muito engenhosa.
Neste artigo do jornal “Daily Mail Online” podem ser vistos os dez insetos com as piores picadas, bem como a foto da nossa amiga tucandeira (“Bullet Ant”, em inglês) que felizmente não chegámos a encontrar no nosso caminho. Ou se passou no nosso caminho, pelo menos não demos conta.
Agora imagine-se este ritual dos índios que o guia Taketomi nos contou: aos treze ou catorze anos de idade, é altura de os meninos se tornarem homens. Como ritual de iniciação, os rapazes metem as mãos dentro de umas luvas que estão cheias destas formigas, e têm de dançar. As raparigas, por outro lado, após a primeira menstruação ficam um ano fechadas numa cabana, amarrando os joelhos e os tornozelos para as pernas ficarem grossas.
Neste vídeo do You Tube podemos ver o ritual de iniciação com a formiga tucandeira.
Ninho de formigas Tachi, explicou-nos o guia Taketomi, que são outro tipo de formigas, que quando esmagadas exalam um odor forte. O guia Taketomi apanhou algumas e passou-as para nós, para cheirarmos. Contou-nos que os índios esfregam-nas no corpo para esconder o seu odor humano, e assim conseguirem caçar nas florestas, sem os animais detetarem a sua presença. Curiosamente, fazendo pesquisa na internet, verifico que se estas eram mesmo as formigas Tachi, elas são bastante ferozes, e com uma picadela também dolorosa. São conhecidas como “formigas-de-novato”, vivem habitualmente nas árvores chamadas de “pau-de-novato”, e têm este nome precisamente pelo facto de apenas as pessoas novas na região tocarem nestas, sendo então sujeitas a ataques severos. Num case-study da revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, conta-se o caso de um turista de 52 anos, no Pantanal, que puxou e quebrou um ramo da árvore para que o seu barco chegasse à margem. Imediatamente um grupo de formigas atacou-lhe furiosamente o braço. A vítima sofreu cerca de cinquenta ferroadas que lhe provocaram instantaneamente dor intensa. O paciente apresentou suor abundante, agitação e taquicardia, com pressão arterial normal. Foi-lhe dado um analgésico que não aliviou a dor, tendo esta persistido durante oito horas aproximadamente. Na manhã seguinte, porém, já não existiam vestígios de dor ou inflamação⁵³.
Ainda hoje me pergunto se aquelas formigas que andaram a passear na nossa mão durante dois ou três segundos, até que as esmagámos, seriam mesmo as Tachi. Daqui a uns dias veremos novamente um ninho idêntico, mas o guia de então identificará as formigas como sendo do género Tapibá, as quais desprendem igualmente um forte odor quando esmagadas O que é certo é que nada nos aconteceu, e prosseguimos o nosso caminho, encantados com toda esta bicharada.
⁵¹ Instituto Educacional de Comunicação e Tecnologias em Ciências e Biologia – Aprenda.bio (2013) “Entre Picadas e Mordidas: Paraponera Clavata, a Formiga Tocandira”. Página consultada a 14 de Setembro de 2013,
<http://www.aprenda.bio.br/portal/?p=5331>.
⁵² Gerritsen, Vivienne (2001) “Princess Bala’s sting”. Protein Spotlight, Swiss Institute of Bioinformatics. Página consultada a 14 de Setembro de 2013,
<http://web.expasy.org/spotlight/back_issues/sptlt014.shtml>.
⁵³ Junior, Vidal; Bicudo, Luiz e Fransozo, Adílson (2009) “The Triplaria tree (Triplaris spp) and Pseudomyrmex ants: a symbiotic relationship with risks of attack for humans“. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 42(6):727-729. Página consultada a 14 de Setembro de 2013,
<http://www.scielo.br/pdf/rsbmt/v42n6/22.pdf>.
054 - Chegada ao Topo e Regresso
A serra da Piraoca tem aproximadamente 130 metros de altura. À medida em que subimos, o guia Taketomi vai-nos explicando uma série de coisas. Que, por exemplo, a palavra “Piraoca” vem dos índios. “Pira” significa peixe, e “oca”, casa. A partir da palavra “pira” (peixe) surgem muitas outras: o peixe que jantámos na véspera – pirarucu – é composto pelas palavras “pira” e “urucu”, esta sendo uma semente colorante vermelha (com a qual se faz o colorau no Brasil). Recordemos que o pirarucu tem o rabo vermelho, conforme visto na crónica 51. Piranha, por exemplo: “ranha” significa dentes. “Piracaia” – “caia” significa assado. Peixe com dentes e peixe assado, respetivamente.
No topo da serra tivemos uma vista geral do Rio Tapajós e do Lago das Piranhas. Este lago está infestado de piranhas, as quais apreciam este tipo de recantos. O guia Taketomi contou-nos que não foi mordido por nenhuma piranha, mas que já foi picado por uma raia. Disse que dói muito, que parecia que estavam a arrancar-lhe a perna. No posto de saúde abriram-lhe a ferida com um bisturi, limparam-na, e deram-lhe uma injeção. Em meia hora estava a dormir. Acordou doze horas depois. Vá lá, nós andámos tantas vezes dentro de água, sempre a arrastar os pés, tivemos sorte.
Falou-nos também do porco Queixada, parecido com javalis, que existe aqui na Amazónia e que é muito perigoso. Vivem em bandos de 50/100 indivíduos, e chegam a ter um metro de comprimento. Se se sentem cercados, atacam ferozmente qualquer inimigo, e quando um deles está ferido, é normal todo o bando voltar-se para defendê-lo. Há relatos de onças e, até mesmo de humanos, se bem que raros, que foram mortos por bandos de queixadas furiosos.
Faz agora entre 30 / 34 graus, estimou o guia Taketomi. No topo da serra, maravilhados com a vista (um dos raros pontos altos em que estivemos nesta viagem) o suor escorre-nos pelo corpo. Obrigatório o uso de chapéus para evitar alguma insolação.
Posteriormente, à medida em que descíamos, o guia Taketomi foi-nos falando de si próprio. Ficámos a saber que tem dois filhos adultos a trabalhar no Brasil (se bem percebi, no Estado da Rondónia, também pertencente à Amazónia) e que tem ainda um filho adotivo de oito anos, Vítor, que é filho de índios, nascido aqui na Amazónia. Vive com a mulher e com o Vítor. Logo quando chegámos, à saída do aeroporto, deu uma volta connosco pela vila e mostrou-nos a sua casa, na qual predomina a madeira, numa área mais sossegada, entre vivendas. Contou-nos que quando tinha 13 ou 14 anos de idade, esteve 45 dias sozinho a viver sozinho na floresta, numa cabana. Foi o pai buscá-lo, pois ele queria completar dois meses. Ficou apenas com uma espingarda para caçar, e alimentava-se de frutos, sementes e plantas. É descendente de japoneses, e mal chegou a Alter do Chão, há bastantes anos, percebeu que era ali que queria passar o resto dos seus dias.
055 - Passeio de Canoa num Igapó
Um igapó é uma mata que é alagada frequentemente, a ponto da sua vegetação habituar-se e adaptar-se. É característico da Amazónia.
Vamos dar um pequeno passeio por este igapó, levados pelo Luizinho, o rapaz de t-shirt verde, e também na companhia do guia Taketomi.
Nestes igapós existem anacondas, escondem-se no fundo da água, entre as plantas. A população deixou de ter patos porque as anacondas os comiam, explicaram-nos. A anaconda – ou sucuri – não é venenosa, ela mata as vítimas por constrição, ou seja, apertando-as. Aproxima-se com cuidado, lentamente, e a partir do momento em que consegue rodear e enrolar-se na vítima, em poucos segundos aperta-a até esmagá-la. A anaconda tem uma força poderosíssima. Existem muitos mitos e exageros relativamente a este animal, com tamanhos gigantes (não acreditem em tudo o que vêem na internet) mas neste vídeo do Reptile Channel pode ver-se uma verdadeira a comer um leitão (morto).
Também existem jacarés, e o Luizinho contou-nos um episódio em que um ficou preso nos ramos, tiveram de vir os bombeiros salvá-lo, tendo sido necessário amarrar-lhe a boca e laçá-lo.
Deram-nos a provar um fruto chamado bacuri que só existe nesta região da Amazónia, se bem que esteja a começar a ser mais conhecida e a espalhar-se o seu consumo pelo país. O bacuri é utilizado na produção de doces, gelados, sumos, geleias, licores e outras iguarias. A sua casca também é aproveitada na culinária regional e o óleo extraído das suas sementes é usado como anti-inflamatório e cicatrizante na medicina popular e na indústria de cosméticos⁵⁴. Este é o bacuri da várzea (parece um limão e é ácido como um limão), e tem gomos com caroços. Existe o bacuri da terra que é diferente.
Reparem que as plantas estão vivas. Não é por estarem debaixo de água que morrem. Continuam viçosas, esperando que a água baixe. Esta é a vegetação típica dos igapós. Metade do ano estão debaixo de água, na outra metade estão a descoberto. Eu bem que me esforçava por vislumbrar alguma sucuri, no fundo, mas nada. Elas andam por aqui, todavia, este é o seu habitat natural.
⁵⁴ Homma, Alfredo et al. (s.d.)”Bacuri”. Portal de São Francisco. Página consultada a 15 de Setembro de 2013,
<http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/bacuri/bacuri.php>
056 - Restaurantes Aquáticos de Alter do Chão
Tínhamos deixado reservado o almoço, quando passámos de barco a caminho da Serra da Piraoca, pelo que já éramos esperados. O nosso tucunaré, o peixe que vamos almoçar, foi posto a grelhar. Nada melhor do que dar uns mergulhos, entretanto, enquanto esperamos.
Temos a tarde livre e estamos por nossa conta. O guia Taketomi foi à sua vida, só nos encontraremos novamente na manhã seguinte. Alugámos um táxi-barco que nos levou aos restaurantes, o qual, mais tarde, cerca das 16h, virá buscar-nos de volta.
057 - Almoço e Praia
Aí vem o nosso peixe – um magnífico tucunaré. E tem de vir tudo bem embrulhado, não por arrefecer, descobrimos, mas porque as moscas também gostam do petisco. Depressa arranjámos um truque para elas nos deixarem em paz, sem termos de estar constantemente a abanar as mãos para enxotá-las: colocámos um bocado de peixe e arroz num canto da mesa. Elas tiveram o seu repasto, e nós o nosso. Há comida para todos, é uma questão de organização das tropas.
O tucunaré existe na Amazónia e na bacia Araguaia-Tocantins, no norte do Brasil. Mede entre trinta centímetros e um metro. Não são migratórios. Formam casais, reproduzem-se em ambientes com águas paradas ou lentas e partilham a responsabilidade de proteger os ovos e as crias. Alimentam-se de peixes e camarões¹³.
E estava tudo perfeitamente delicioso.
Esta é uma família de hippies que vive em Alter do Chão, e encontrámo-los vários vezes durante os dias que aqui passámos. Hoje tivemos o nosso primeiro contacto. Chegaram de barco (com o pai e outros parentes ou amigos, nem sei) e venderam-nos pulseiras e brincos feitos artesanalmente. Ela chama-se Audrey, porque a sua mãe gostava da Audrey Hepburn. Há cinco anos que vivem num barco em Alter do Chão. Convidaram-nos para a festa da escola que ia haver nessa noite, com comes e bebes. Ao que parece a escola foi toda pintada e agora vai fazer-se uma festa de reabertura. Acabámos por não conseguir ir, pois apanhou-nos na hora de jantar, pelos vistos. Já estávamos com bicicletas por essa altura, e ainda demos umas voltas à procura da festa, mas já deveria ter acabado.
¹³ Hayashi, Prof. Dr. Carmino (s.d.), “Importância das Espécies Nativas na Piscicultura Comercial”. I Seminário de Piscicultura do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Instituto de Ciências Exatas, Naturais e Educação. Página consultada a 4 de Agosto de 2013,
<http://www.almanaquedocampo.com.br/imagens/files/Peixes%20importancia%20especie%20nativa.pdf
058 - Passeio de Bicicleta ao Entardecer
Foram dias animados e finais de tardes tranquilos, as que passámos em Alter do Chão. O sossego impera, pelo menos nesta altura do ano. Segundo nos contaram, em Agosto quando chegam os cruzeiros a vila enche-se com milhares de pessoas.
059 - De Visita ao Posto Médico & Começa um Novo Dia
Eu já estou quase boa, o meu estômago faz progressos consideráveis, e já consigo comer algo mais substancial para além de bananas e iogurtes, como dá para se perceber na foto abaixo, com um prato de pirarucu grelhado com arroz branco, para mim, e um bife de búfalo para o Filipe. Mesmo assim tive curiosidade em ver como funciona um posto de saúde no Brasil, ou pelo menos na Amazónia, e lá fui inscrever-me para ser atendida. Demos com o posto de saúde porque andávamos a passear de bicicleta pelas ruas da vila. Não é tarde nem é cedo, deixa ver o que me dizem. O posto funciona 24h por dia e tem atendimento gratuito para toda a gente, locais e estrangeiros. Informaram-me que a esta hora não há um médico de serviço, mas poderia atender-me uma enfermeira. Certo. Preenchi o meu nome, país de origem e data de nascimento num livro grande. Antes de mim foi atendido um paciente do Chile, com 28 anos de idade, reparei. Fui levada para um gabinete, com uma secretária e uma maca, onde contei as minhas maleitas à enfermeira de serviço. Eu sentada em frente à secretária, ela do outro lado. Receitou-me Buscopan de 8/8 horas (que eu tinha comigo, trazido de Lisboa) e umas gotas de algo que eu não conhecia, mas ao que parece é vulgar em Portugal também: Simeticona, com sabor a cereja, feito num laboratório brasileiro, e que é indicado para a sensação de estômago inchado. Deram-me um frasquinho. Tinha de tomar 30/40 gotas de 6/6 horas. É equivalente a uma colher de sopa. Só a paciência que tive em contar as 40 gotas… da vez seguinte enchi a colher de uma vez e pronto. Até teve bons resultados, deixei de sentir o estômago inchado, de facto. Eu também já estava a melhorar a passos largos, conforme referi antes. E ainda me receitou algo caseiro: as folhas da planta boldo, que deveria macerar e beber com água (foto abaixo). Saímos do posto, e na porta imediatamente ao lado, lá estava ele. Já deve estar ali plantado para estes turistas flor de estufa que por aqui andam. Arrancou umas folhas e deu-mas. Agradeci, montei na bicicleta encostada à porta do posto, e fomos embora, eu e o Filipe, que tinha esperado na rua. Confesso que nunca experimentei a planta, tive receio. O meu estômago é muito esquisito; fiquei-me pelas bananas, iogurtes, arroz branco e peixe grelhado, nos próximos dias. Encontram-se na internet informações claras sobre o boldo, como por exemplo:
“O chá, que geralmente é maceração das folhas, é um tónico amargo que facilita o trabalho da vesícula biliar, estimulando a secreção da bílis e favorecendo a digestão de gorduras. É indicado no combates às dores estomacais, males do fígado, diarreia e desconforto causado por gases intestinais. Porém, deve ser usado com cautela pois, em excesso, pode provocar irritação gástrica. É preciso ter cuidado para não confundir o boldo com algumas plantas ornamentais, que são aparentemente semelhantes”⁵⁵.
Passámos uma noite bastante mais tranquila com a ajuda do spray anti-mosquitos que comprámos numa loja de chineses no centro da vila (bem na praça central; as lojas dos chineses também já chegaram a Alter do Chão). Na véspera dormimos mal com as melgas e os seus zumbidos. Eu ponho repelente de insetos e não me preocupo mais, mas com o Filipe não é assim tão simples, não consegue dormir com os zumbidos, pelo que andou à caça delas durante a noite, de luz acesa, claro. A noite anterior não foi propriamente tranquila. Desta vez precavemo-nos: enchemos o quarto de spray, saímos para jantar, e quando regressámos já não havia melgas. Passou a ser uma tarefa diária, esta.
E começa um novo dia, desta vez com um passeio de barco de dia inteiro. Life is good.
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⁵⁵ Blanco, Rose Aielo (s.d.) “Boldo? Qual boldo?” Jardim de Flores. Página consultada a 15 de Setembro de 2013,
<http://www.jardimdeflores.com.br/ervas/ervas4.html>.
060 - Passeio de Barco
Atravessámos o Lago Verde na lancha que se vê nesta foto, primeiramente com destino à comunidade de Ponta de Pedras, onde vamos reservar o almoço para o meio dia. Ao atracar o barco foi com surpresa que avistámos uma preguiça a descer o tronco da árvore. Queria mudar de árvore, eventualmente, e já tinha o rabo molhado. Ao ver-nos, começou a subir a árvore outra vez. Tudo com uma grande vagareza, como é apanágio do bicho. A raridade deste fenómeno – ver uma preguiça a descer da árvore – é tanto mais significativa se soubermos que estes animais raramente descem ao chão. Apenas o fazem aproximadamente a cada sete dias para fazerem as suas necessidades fisiológicas. Mais adiante veremos o desenlace deste episódio. As preguiças vivem em árvores grandes e frondosas, não exatamente nesta árvore onde se encontrava agora, isolada (a foto não dá para perceber, mas ela não podia sair daquele ponto, à beira da água – sobretudo porque existia um cão à solta uns metros ao lado, pertencente a uma casa, que ladrou para nós quando passámos). Descobrimos mais tarde que não seria certamente o dia dela fazer as suas necessidades fisiológicas, mas que queria mesmo sair dali. (Não percam os próximos capítulos…). Fiquemos para já com as informações da bióloga Vera Lúcia de Oliveira que se tem destacado quer no Brasil quer internacionalmente pelo seu trabalho e luta na proteção deste animal:
A preguiça vive nas florestas tropicais desde a América Central até ao norte da Argentina. Dorme cerca de catorze horas por dia, pendurada nas árvores. Na reprodução, dá apenas uma cria e é a fêmea que cuida do filhote. Reproduz-se, como tudo o que faz, na copa das árvores. O seu principal predador é o jaguar (conhecido no Brasil como onça-pintada, sobre a qual falarei mais adiante). Atualmente, porém, o principal predador destes animais é mesmo o homem, que as comercializa em feiras e nas margens das estradas. A ação do homem sobre as preguiças tem sido muito facilitada nos últimos tempos pela acelerada fragmentação e destruição das matas, o que as leva a locomoverem-se desajeitadamente pela superfície do solo, em busca de sobrevivência, ficando totalmente expostas à caça e à captura. A preguiça nunca bebe água; a água que necessita para viver é absorvida do próprio alimento, através das paredes intestinais, durante o processo de digestão⁵⁶.
Neste vídeo do You Tube podemos ver a bióloga e um pouco do seu louvável trabalho.
Comunidade de Ponta de Pedras.
Chegados à comunidade de Ponta de Pedras, mostraram-nos os peixes disponíveis.
Tambaqui (quer inteiro, quer a metade cortada).
O nosso já conhecido tucunaré.
E a matrinxã, que provaremos lá mais para a frente. O peixe é bem fresco e aquele maravilhoso tambaqui, que deixámos encomendado para o almoço, deixou-nos a melhor recordação em termos de alimentação, de toda a viagem. Em breve mostrarei fotos do pitéu assado.
⁵⁶ Oliveira, Vera Lúcia “Quem são os Bichos-preguiças?” Associação de Proteção ao Meio Ambiente de Cianorte – APROMAC. Página consultada a 15 de Setembro de 2013,
<http://www.apromac.org.br/preguicinha.htm>.