023 – Príncipe – Almoço na Cidade de Santo António

Comemora-se o aniversário da Reserva da Biosfera, da qual já falei na crónica 19.  O presidente do Governo Regional do Príncipe, José Cardoso Cassandra, o qual também apresentei noutra crónica – a , faz um discurso sobre a eliminação de plásticos.

O presidente do Governo Regional do Príncipe, José Cardoso Cassandra, a discursar.

É meio dia agora. Fui novamente aos escritórios do Parque Natural, mas se calhar não será boa altura, devem estar todos no aniversário certamente. A diretora do Parque, que eu virei a descobrir que se chama Plácida Lopes, está em pé ao lado do presidente, no discurso.

E não é só a minha bicicleta que está lamacenta, a dona está exatamente igual. Não devo causar muito boa impressão a tão ilustres convidados.

Enquanto espero a ver se alguém vem atender-me, aparece-me esta alma penada. A fixar-me e às bolachas que tenho na mão, com recheio de chocolate, que trouxe de Lisboa. Muito receoso. Já foi maltratado, para ter tanto medo. Nem comi mais nada, dei-lhas. Ouvi dizer que o chocolate faz mal aos cães. Credo, toma lá as bolachas todas. Não morre da sarna e da fome, morre do chocolate. Este terá a sarna do ouvido, com otites. Pobre alma. Só se preocupam com as árvores e com as plantas, ninguém se lembra dos animais. Terá que ser o próximo passo, meus amigos. Não permitir este grau de sofrimento nos animais. Eu não vi ninguém magrinho a passar fome no Príncipe. Já é altura de começar a partilhar com estas almas. E lançar uma campanha de castração para evitar que se reproduzam.

Quis deitar o pacote de plástico das bolachas no contentor amarelo, mas o autocolante diz “lixo indiferenciado” e tem o desenho duma espinha dum peixe. Isto será uma partida de alguém, aposto, que terá mudado o local do autocolante. Este autocolante pertence ao contentor verde. E agora onde é que deito o plástico? Ponho-o no amarelo na mesma. E muito gostava eu de saber onde é que o plástico deste contentor será tratado.

A placa na porta do escritório do Parque Natural.

Enquanto espero, liguei ao guia Manuel Sebastião (mais conhecido por Monuna) a perguntar-lhe se me ajuda a carregar a comida e a água. O Monuna respondeu-me que carrega uma mochila até 8 kg. Eu devo precisar de carregar talvez 2 kg apenas, se tanto. É que não posso carregar nada às costas, dói-me o pescoço. A mochila que transporto habitualmente às costas anda vazia. É para esconder a máquina fotográfica em caso de chuva. Só lá guardo eventualmente o biquíni e a bolsa plástica para a máquina. Todos os pesos – objetos e comida (como óculos, GPS, power bank, bolachas, barras de proteína) andam na bolsa à cintura. Ora na bolsa à cintura não cabe um frango, além de tudo isto. Porque eu vou ter que comer um frango nesta expedição dum dia inteiro.

Pois ninguém está disponível no escritório do Parque Natural, estão todos no aniversário, pelo que fui-me embora. O discurso já terminou, agora estão a arrumar as cadeiras e afins.
Voltei ao cemitério às 12h30, é a quarta vez que lá vou. Mas o Sr. Hilário ainda não voltou. Foi buscar dinheiro, disseram-me. Ao que parece é uma coisa demorada e complicada, buscar dinheiro. Pois é, é um mal geral.

À venda no local do discurso. Voltei aqui a ver se já consigo falar com alguém. Hoje é 5ª feira, eu tenho intenções de ir ao Pico no domingo, e na 2ª feira parto para São Tomé! Já não tenho muito tempo, tenho mesmo de organizar isto.

E finalmente consegui falar com a diretora o Parque, Plácida Lopes, nesta foto. Vejo na internet algumas informações sobre si: é licenciada em Comunicação Social com especialidade em Jornalismo, pela Universidade de Brasília. Foi assessora de imprensa do Presidente do Governo Regional do Príncipe (2011-2015). Foi professora de Integração Social, 2º ciclo do Ensino Secundário na Região Autónoma do Príncipe (2014 – 2016). É coordenadora geral da Unidade de Gestão da Reserva da Biosfera da Ilha do Príncipe, desde 2012. É assessora do Ambiente e Conservação da Natureza do Presidente do Governo Regional do Príncipe, desde 2015.¹
Muito simpática, disse-me que aceita a minha inscrição mas que normalmente ninguém vai ao Pico do Príncipe porque é muito difícil. Só investigadores. Eu disse que se a coisa se complicar, vimos embora.

É uma da tarde. Perguntei no restaurante da Kita o que é o hoje o almoço. Respondeu-me a empregada, que se chama Mónica e é mais conhecida por Mulata: “Flat de peixe com arroz de ervilhas”. O que é um flat de peixe?, perguntei. É uma tira de peixe sem espinhas e passada por ovo. Ah, um filete. Como nos entendemos todos com uma descrição tão perfeita. Mandei vir o flat, portanto. Claro que esta saladinha tem de sair daqui. Pedi à Mónica para retirá-la. Conforme expliquei na crónica 3 (e em outras três mil crónicas anteriores), um europeu não pode beber água da torneira, ou legumes molhados em água da torneira. Com grande pena minha mandei retirar a apetitosa saladinha.

Vou procurar o cão das bolachas de chocolate. A Kita cuida de um ou dois cães pelo menos. Estão gordinhos e bonitos. Não podem ser esses felizardos, tem de ser um magrinho, abandonado. Vou em busca dele.

Encontro pela terceira vez o guia Nelito do Bom Bom. Cumprimentámo-nos. Está a acompanhar aqueles dois turistas. São suíços, disse-me.

Depois de dez minutos às voltas à procura do cão das bolachas de chocolate, não o encontrei. Encontrei esta criatura magrinha a lamber a farinha que se encontra no chão à porta da padaria, na foto anterior. Coitadinho, com os ossinhos espetados na coluna. Parece um dinossaurozinho. Esta indiferença perante o sofrimento animal tem mesmo de acabar, meus amigos, já é altura. Não são necessários fundos de milhões de euros para dar um prato de arroz aos cães.

Temporariamente de regresso ao quarto. Depois da hora de almoço quero regressar ao cemitério, a ver se já está aberto.
Umas crianças perguntaram-me se eu caí, ao verem-me cheia de lama. Estava eu a prender a bicicleta com o cadeado, no muro, na rua.
Tenho 25,2 km de bicicleta, no total.
Limpei a bicicleta à porta do hotel, com os guardanapos onde ia embrulhado o arroz. Duas senhoras meteram-se comigo dizendo que hoje choveu muito, e que ainda vem mais chuva esta tarde. Efetivamente está a ficar tudo negro e já caíram uns pingos antes de eu entrar para o hotel. São 14 horas.
Lavei as pernas e os pés, um pouco à pressa com receio que falte a água. A esta hora costuma faltar. Só tomarei banho quando voltar. É mais seguro.
Lavei os calções e a t-shirt com sabonete. Estavam cheios de terra e lama. Trouxe outros calções de ciclismo. Como estou dez noites no mesmo local, já é possível lavar a roupa e esperar que seque. Quando mudo diariamente de alojamento a coisa é mais complicada.

Tive que vir comprar papel higiénico, já só tenho uma tira, não dá até amanhã de manhã. Há mesmo racionamento de papel higiénico no hotel. Um de marca portuguesa custou dez dobras (0,40€). Também comprei um iogurte, e leite para o caso da outra metade se ter estragado por não haver luz e frigorífico.
Este rapaz estava a ver uma telenovela santomense, pareceu-me, no portátil. Agora está a cortar um pacote de rolos para dar-me só um.

E quando regresso ao quarto, quase que caí sem forças. O que é isto?
Esta sensação é-me familiar de viagens anteriores. Estou sem forças. Tive que estender-me na cama, senão ainda caía.
Eu sei o que é isto. Enquanto almoçava e comia uma garfada de arroz, senti o sabor do vinagre da salada que mandei retirar. Ora se sinto o vinagre, é porque a água também está no prato.
Imediatamente separei o arroz daquela área do prato e limpei os espaços com um guardanapo.
Mas já foi tarde, Rute. Já foi tarde.
Bebi portanto água da torneira sem querer, involuntariamente, nas gotas que ficaram no prato depois de ter retirado a salada.
Uma hora depois caio prostrada na cama, com uma ligeira dor de estômago e inchaço da barriga. O organismo pede sempre repouso imediato, fica sem forças.  E o estômago a fazer muitas borbulhas, muito barulhento.
Deixaste-te apanhar, Rute. Mesmo com os cuidados que tens, deixaste-te apanhar. Perdi completamente as forças. Desfaleci.

Dormi uma hora. Não me mexi um milímetro. Estas bacteriazinhas africanas são potentes. O meu organismo trava uma luta feroz contra elas e põe-me imediatamente a dormir. Quieta, Rute, obedece. A quantidade de água foi mínima, não será grave.

Às 4 da tarde acordei e continua a haver luz e água. Hoje não as cortaram. Passei o resto da tarde com dores de estômago. Tomei dois medicamentos que trouxe comigo, já preparada para estes percalços.

Não estou capaz de ir visitar o cemitério, hoje já não saio do quarto. Não estou bem para sair. Tenho de repousar e amanhã vamos torcer para que tenha passado.

Hoje já há melgas e mosquitos no quarto. Tive de pôr spray entre as 17 e as 17h30 – e estive sentada no corredor do hotel a selecionar as fotografias do dia.

Há festa e música hoje. Não me apetece ir ver, claro. A música começou cerca das 18h.
Adormeci cerca das 20h. Vamos torcer para que amanhã de manhã já esteja totalmente recuperada.


¹ “Comissão de Articulação” (2019, Abril). V Congresso Internacional de Educação Ambiental dos Países e Comunidades de Língua Portuguesa, Guiné-Bissau. Página consultada a 26 Setembro 2019,
<http://www.ealusofono.org/index.php/acerca-de/comissao-de-articulacao>

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