019 – Príncipe – Infante D. Henrique, Parque Natural Obô
A placa indica:
Reserva da Biosfera
TR3 Roça Infante
Rio da Ponte Grande
Este Rio abastece as comunidades do Terreiro Velho, Nova Estrela, e Santo Cristo. Aqui pode entrar no TR7 e descobrir a Cascata Oquê Pipi, uma das mais bonitas da região.
Em primeiro lugar eu não enveredei pelo TR7, pelo que não cheguei a ver a Cascata. Esta é aqui perto. O meu destino é mais longínquo: é o Infante, pelo TR3. Ou melhor, eu estou a seguir o GPS. Se coincidir com o TR3, ótimo.
Em segundo lugar, a palavra “Oque” significa “cascata” na língua natural do Príncipe, ou seja, o crioulo falado na ilha. Segundo me explicarão mais à frente, numa terra chamada “Oque Daniel”, lê-se “Ôque”. No entanto nesta placa o acento está no “e”. Pois não sei. Um principense disse-me que se lê como se o acento circunflexo estivesse no “O”. Já o Parque Natural “Obô” também é um sarilho. Em documentos antigos pertencentes ao próprio Parque Natural, chego a ver “Obô” escrito com acentos diferentes (com um til também) e em locais diferentes, ora no primeiro “O”, ora no segundo. Mas a forma correta de escrever, vejo no dicionário, é “Obô”. Deste não há dúvida. E os documentos novos do Parque já apresentam o acento correto. Só falta agora esclarecer este acento do “Ôque” ou “Oquê”. Uma coisa é um “ôque”, outra coisa é perguntar “o quê?”. É um ôque! É o quê? Um ôque, pá! 🙂
Em terceiro lugar, e mais importante: o que é isto da “Reserva da Biosfera”?
A UNESCO declarou em 2012 o Príncipe como Reserva da Biosfera mundial. Pode ler-se no website da ONU:
12 julho 2012
Decisão, tomada em Paris, coloca a região santomense na rede de áreas mundiais destacadas pelo seu valor ambiental para a humanidade.
A Ilha do Príncipe passou a fazer parte da Rede Mundial das Reservas da Biosfera, anunciou a Organização da ONU para Educação, Ciência e Cultura, Unesco.
Trata-se do primeiro sítio santomense a integrar a lista composta por 598 reservas de 117 países. Este ano, 20 novos sítios foram adicionados tendo sido pioneiros a ilha santomense e locais do Haiti e do Cazaquistão.
A Lista da Reserva da Biosfera foi instituída pela agência da ONU para abrigar uma rede de áreas mundiais que se destacam pelo seu valor ambiental para a humanidade. A Unesco considera que a Ilha do Príncipe pode ser considerada um modelo para promover o desenvolvimento do ecoturismo, além de servir de base para uma zona tampão terrestre e marinha mais ampla. Trata-se da mais antiga de três ilhas vulcânicas oceânicas no Golfo da Guiné, e a área coberta compreende toda a ilha de Príncipe, as suas ilhotas e as ilhas Tinhosas.
A dimensão da biodiversidade terrestre, os ecossistemas do mar e a importância da área para a reprodução de espécies marinhas como tartarugas, aves e cetáceos, são igualmente destacados pela Unesco¹.
Neste vídeo de 5’41’’ pode ser vista uma apresentação do Príncipe: Reserva Mundial da Biosfera da UNESCO. O vídeo está em português e legendado em inglês.
Bom, isto é surpreendentemente deserto. Haverá alguém aqui? Haverá alguma casa mais adiante? Mas que caminho é este que o GPS me indica?
Eu continuo em frente. Enquanto houver forças para pedalar, pedalo.
Esta esfoladela no pé, feita no ilhéu Bom Bom com a areia da praia, está a causar-me algum incómodo. Isto não passa duma esfoladela. Mas caminhar com a tira da sandália sempre a raspar nela… O penso do pé esquerdo ainda se mantém no lugar. Vê-se claramente nesta foto. O do pé direito saiu do lugar logo na subida de Santo Cristo (é assim que se chama a terra que dá o nome a esta subida). Aquele lenço de papel ali é a minha tentativa de afastar a tira da sandália da esfoladela. Basta não lhe tocar e já nem me lembro dela. Mas está bem, está. A sandália raspa ali sistematicamente.
Uma pequena cascata entre as pedras.
Entrei nos domínios do Infante Dom Henrique. C.I.P. significa “Companhia da Ilha do Príncipe”. Mas ainda falta muito para chegar ao meu destino. São 7h45, tenho 11 km feitos, e faltam 6, diz o GPS.
A humidade, que já é elevada em todo o arquipélago de São Tomé e Príncipe (anda na ordem dos 80 ou 90%) aqui na floresta nem se fala. Se calhar calhava bem dar umas braçadas para afastar a água à minha volta.
Nesta foto vêem-se buracos de caranguejos. A água do mar está relativamente longe.
Mas alguém passou aqui no último ano? Estes caminhos estão cada vez mais cerrados. Não deve haver ninguém por aqui. Há muito tempo!
“PNP” significa Parque Natural do Príncipe.
Fui à volta com a bicicleta ao colo. A bicicleta está a deixar de transportar-me. Já sou eu que a transporto a ela. Tenho de começar a ponderar em deixá-la presa algures e seguir caminho a pé.
Faltam 4,5 km para o meu destino.
Rochas basálticas. A placa diz “Ao arrefecer, o basalto fragmenta-se formando colunas”. Na foto de baixo vê-se esta placa e as rochas basálticas. O basalto é uma rocha formada a partir do magma, ou seja, a massa de rocha em fusão existente debaixo da superfície da Terra. Daqui a uns dias irei detalhar este tema.
O melhor disto tudo é que vou constantemente a ouvir o restolhar de animais grandes, à minha volta. Bom, um humano não pode ser, não consegue andar neste emaranhado de floresta – teria de vir pela estrada. Eu bem que olho na direção do restolhar, entre os arbustos e as árvores, mas não vejo nada. Que animais são estes? Porcos selvagens? Cabras? Macacos? São grandes! Fazem tanto ou mais barulho do que eu. Isto não são lagartixas de dez centímetros. Quebram galhos na sua passagem e são rápidos. Mas aqui no Príncipe não há nada a temer, não há animais perigosos. Mil pequenos olhos observam-me, de certeza.
O grau de humidade é extremo. As pedras no chão têm musgo. Nem me atrevo a pedalar, vou a pé com a bicicleta pela mão. A borracha dos pneus em contacto com o musgo não surte bom resultado. Seria do tipo “esquis” – eu iria a esquiar por aqui afora.
Há muitas melgas. Eu tenho um bom repelente de insetos colocado há pouco tempo, mas à medida em que as ervas molhadas me roçam nas pernas, vão lavando o repelente. Os braços e a cara continuam protegidos, mas as pernas estão a deixar de ficar.
Paragem estratégica no meio da floresta cerrada para abastecer de combustível. São 8h25, tenho 12,6 km feitos. Tenho vindo a pé, a andar com a bicicleta pela mão, porque existem ravinas de ambos os lados do caminho. No chão empedrado e escorregadio é fácil cair. Não convém eu desaparecer numa dessa ravinas. Primeiro que me encontrassem…
Leve-leve. Estou a ir leve-leve. A ser picada cada vez mais pelas melgas. Tive de comer em pé, a mexer-me constantemente para ver se as melgas me largam as pernas.
Eu hei de chegar ao fim do meu percurso! Se a floresta não se fechar completamente, eu hei de chegar lá!
Decididamente, já não passa aqui ninguém há anos. A floresta torna-se cada vez mais inóspita. O seu peso aumenta sobre mim. Cada vez é mais cerrada, mais escura, cada vez mais húmida. As melgas são vorazes. E a ferida arde-me no pé.
Mas eu quero prosseguir, estou 100% decidida a prosseguir.
Estou mesmo a fazer o TR3. O meu GPS tem o TR3. Esta placa a apontar para cima significa: “Continua a seguir o TR3 e morrerás, e seguirás para o céu”. Que estimulante.
É desta que largo a bicicleta. Vou deixá-la aqui presa, encostada a esta árvore, com o cadeado posto. Se alguém a levar, terá de caminhar isto tudo com ela às costas, pois o cadeado não a deixa andar.
A placa indica o caminho para o antigo porto da Roça Infante. É preciso descer por um caminho estreito para chegar ao mar. Já o ouço. Mas estou preocupada com a bicicleta. Não posso ficar sem bicicleta no sexto dia de viagem.
Voltei para trás para prender a bicicleta a uma árvore que vi no caminho. É suficientemente estreita para pôr o cadeado à sua volta e da bicicleta. Sim, porque há uma multidão de gente nesta floresta, tudo a querer levar-me a bicicleta.
Hoje – ao rever estas fotos, sobretudo esta da bicicleta presa a uma árvore no meio duma floresta cerrada e deserta – não consigo deixar de soltar uma gargalhada. Só se os macacos soubessem pedalar é que a bicicleta desapareceria, mas eu não estava a ver bem a coisa. Sozinha numa floresta inóspita. Eu não sabia que o caminho do GPS afinal era uma floresta e não qualquer outro caminho igual aos que tenho seguido até agora. Afinal de contas toda a ilha do Príncipe é floresta. Imaginava lá que aqui era tão cerrado e deserto. Tão puro, tão fascinante.
Mas a natureza é cruel e eu percebi claramente que não sobreviveria muito tempo sozinha aqui dentro. Não tenho formação, não tenho experiência. Só a tarefa de pôr o cadeado na bicicleta revelou-se de um sofrimento atroz, pois as melgas devoraram-me viva. Tive de parar para prender a bicicleta – sempre a mexer-me – mas estas melgas são vampiros autênticos. Uma pessoa deixa de raciocinar devidamente. Eu teria de ter trazido o spray comigo e ir renovando amiúde. Ou então trazer calças. Nos braços e na cara não me picam – o repelente mantém o seu efeito. É só nas pernas, onde o repelente foi lavado pelos arbustos a roçarem-me nas pernas.
Fiz um pouco do caminho a descer em direção ao porto.
Cheguei perto do mar e voltei para trás. Não cheguei ao porto. É demasiado a descer, tenho receio de escorregar, de magoar-me, e ninguém sabe que estou aqui.
Falta 1 km para o meu destino. Tenho de caminhar 1 km até lá chegar, e depois voltar esse quilómetro para trás, até chegar novamente aqui. A bicicleta está a umas dezenas de metros atrás de mim.
E aqui desisti. Não aguento mais as picadas das melgas e o ardor no pé. Já seria penoso fazer estes 2 km a pé. Já chega, Rute. Estás de férias, estás aqui para divertir-te, não para sofrer. Volta para trás e tens ainda muito que caminhar e pedalar.
Voltei contrariada. Imensamente contrariada. Nunca me tinha acontecido, não chegar ao meu destino planeado. Ainda por cima ficar a um quilómetro dele é ridículo. Um quilómetro, Rute? Não fazes um quilómetro? Ou dois, com o regresso… se as feridas aguentaram até aqui, aguentarão mais dois quilómetros. Não?
Não.
São 9h05, tenho 14 km feitos.
Ambos os pensos caíram com a transpiração, e com o calor e a humidade da floresta. Ora aqui estou eu, numa floresta quente e húmida, a transpirar por todos os poros – há algum adesivo que aguente isto? Têm de ser pensos de combate.
Esta breve incursão pela floresta, nuns miseráveis dez quilómetros ida e volta, foram dos momentos mais marcantes nesta viagem. Percebi claramente a minha pequenez. Rapidamente eu morreria aqui dentro. Todo o meu conhecimento, ciência, cultura, tecnologia, de nada me valeriam contra a selvagem e implacável floresta. Não saberia o que comer, não saberia o que beber. Sozinha aqui dentro morreria em pouco tempo. Todo o esplendor duma floresta grande, viçosa, densa, bravia. Autoritária. Morrerás, Rute.
Mas ela – a floresta – empurrou-me para trás. Deixou-me voltar e ainda me empurrou. “Sai daqui, ínfima criatura” – soprou-me ao ouvido.
E manteve os seus caminhos abertos para eu voltar sã e salva.
Cercopithecus mona
Fui sendo acompanhada pelos macacos, que vislumbrei por três vezes no meu regresso. Para lá só os ouvi, supostamente, e no regresso vi-os três vezes. Festejam a minha partida, se calhar. Vi os primeiros dois ou três a saltarem nos galhos das árvores, teriam uns 30 ou 40 cm, castanhos escuros. E vi outro grande, sentado na estrada, com uns 60 cm, que nem me via. Outro macaco deu um berro a avisá-lo, ele olhou na direção dele, depois na minha, e fugiu. Fantástico, foi avisado.
A espécie existente em São Tomé e Príncipe é a Cercopithecus mona. Mas vendo fotos deste macaco na internet, com barbas brancas e peito branco, não me lembro de ter visto nada disto. Eu vi-os todos castanhos. E o grande, de 60 cm, olhou diretamente para mim. Eu sinceramente não me lembro de ver barbas brancas nenhumas, mas pronto.
Foto retirada de Mamíferos do Mundo.
Lagartixa do Príncipe (Trachylepis principensis)
Já a apresentei na crónica 16. É endémica, ou seja, só existe aqui na ilha do Príncipe. Em mais lado nenhum do mundo! E ainda por cima já a vi duas vezes!
Cortei-lhe a cauda na foto, mas foi o melhor que consegui. Tive de ser rápida – apontar e disparar – pois ela fugiu logo. Mexem-se a toda a velocidade, estas lindas lagartixas.
Estes raios de sol que ela apanha agradam-lhe a ela e agradam-me a mim. A lagartixa até vem com uma gota de água nas costas. Eu parece que venho das cavernas escuras e húmidas. Toda molhada também. Parece que esteve a chover, mas não, venho encharcada de humidade e suor. À medida em que vou regressando à civilização, a floresta começa a abrir e começam a aparecer estes raios de sol. É a lagartixa a apanhar sol, e eu também ali estaria estendida se houvesse espaço para mim. As duas secar ao sol, eu e a lagartixa.
Entretanto aproveitei a pausa e o vislumbre do sol para beber um gel enérgetico, que trouxe comigo na bolsa da cintura.
Ah pois é. Cá está o restolhar de animais grandes que eu ouço. Há porcos-do-mato no arquipélago, introduzidos pelos colonos, e também lagaias (introduzidas para combater os roedores que destruíam as plantações). Mas esta pegada não parece ser dum porco. Não sei.
Lagaia (Civettictis civetta)
Também conhecida por civeta africana. O seu peso varia entre 7 a 20 Kg. É um animal essencialmente noturno; o seu habitat natural são as florestas tropicais, vive solitário e passa o dia em buracos cavados no solo ou nas tocas que foram abandonadas por outros animais. Caça pequenos mamíferos (como ratos), serpentes, sapos, insetos e aves. A sua pelagem bela e farta muitas vezes custa-lhe a vida. É bastante procurada por isso, e pela suposta qualidade da sua carne, pelo que está em extinção em São Tomé e Príncipe².
Foto retirada da Wikipedia.
Esta foto foi tirada a uns 500 metros da entrada do Parque. Um casal que me pareceu serem alemães. São turistas do Sundy, soube mais tarde ao ver o seu jipe parado na entrada do Parque. Vão à Cascata, explicou-me em inglês o guia branco, à esquerda. São agora 10h05.
Fruta-pão que caiu das árvores, coberta de mosquitos. Parece cola e agarra-se bastante aos pneus da bicicleta, tenho que evitá-la.
E minutos depois vejo novamente um macaco. Cá para mim eles estariam ainda a dormir quando eu passei para lá.
Cá estou eu, novamente na entrada do Parque. São 10h15. Não estou muito animada, pois não. Fiquei a 1 km do meu destino. Morri na praia. Esta foto tirei-a com a câmera no chão, em cima duma pedra. Mas aqui apareceu um homem que se identificou como sendo guia do Parque e tirou-me duas ou três fotos, que não as aproveitei porque esta ficou melhor. Perguntou-me se eu fui à Cascata. (A cascata… onde é que ficou a cascata…) Fui um bocadinho mais para lá, respondi-lhe. Disse-me que se paga 5€ para entrar no Parque e que é necessário entrar com um guia. Bom, não sei nada disso, não está escrito em lado nenhum. Nem sequer está barrada a entrada. Disse-me então que vão colocar um posto aqui.
¹ “Ilha do Príncipe inscrita na lista das Reservas da Biosfera da Unesco” (2012, 12 Julho). ONU News. Página consultada a 22 de Setembro 2019,
<https://news.un.org/pt/story/2012/07/1409971-ilha-do-principe-inscrita-na-lista-das-reservas-da-biosfera-da-unesco>
² “A Importância das Lagaias” (2010, 20 Março). Blog Salve as Lagaias. Página consultada a 22 Setembro 2019,
<http://salveaslagaias.blogspot.com/2010/03/importancia-das-lagaias.html>