120 – Graciosa – Guadalupe & Tarde de Praia
São 14h26 e vou a caminho de Guadalupe.
E cheguei a Guadalupe. São 14h42.
A freguesia de Guadalupe ocupa a região central e noroeste da ilha Graciosa, correspondente aos solos mais férteis e aplanados da ilha. A riqueza dos terrenos levou a que Guadalupe se constituísse no centro de produção cerealífera e hortícola da ilha, com os terrenos a serem adquiridos pelas principais famílias de Santa Cruz da Graciosa. Pode-se assim afirmar que todas as grandes casas de Santa Cruz da Graciosa tiveram a sua raiz fundiária nos campos de Guadalupe. Com uma população que em meados do século XIX ultrapassou os 3 000 habitantes (hoje anda pelos mil habitantes), foi durante a maior parte da história da Graciosa a mais populosa freguesia da ilha.¹
Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe.
O nome da freguesia tem origem numa ermida construída nas proximidades da atual igreja, em meados do século XVI, para albergar uma imagem trazida do México por Domingos Pires da Covilhã, um dos primeiros povoadores da localidade. A paróquia foi constituída no ano de 1602, com a invocação de Nossa Senhora de Guadalupe.
Os primeiros alicerces da atual igreja de Guadalupe foram colocados a 15 de maio de 1713, sendo a primeira pedra benzida a 22 de maio daquele ano. Contudo, a igreja levou 43 anos a construir, e a primeira missa apenas foi celebrada em 1756. Esta inusitada demora deveu-se à grande crise sísmica de 1717, que provocou a destruição generalizada das casas da freguesia (e da vizinha freguesia da Luz), atrasando as obras e drenando recursos, já que os guadalupenses se viram a braços com a necessidade de reconstruir as suas casas.
A crise sísmica de 1717 deu origem a um voto popular, ainda hoje cumprido no dia 24 de Maio de cada ano, de realizar uma procissão, denominada a Procissão dos Abalos, com a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe. Esse voto deu origem a um feriado local, já que toda a ilha para na manhã do dia da procissão, que depois do terramoto de 1980 voltou a ganhar grande fervor popular.¹
Recordo o que expliquei na crónica 104 sobre este sismo de 1980: ocorreu dia 1 de janeiro e atingiu uma magnitude de 7,2 na escala de Richter. O epicentro localizou-se a cerca de 50 km de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, e causou elevados danos materiais nas ilhas Terceira e São Jorge, e danos menores na ilha Graciosa. Mais de 15.000 edifícios ficaram total ou parcialmente destruídos.²
E é altura de regressar a casa, na Praia, e almoçar. São quase 3 da tarde. As pilhas do meu GPS já acabaram. O GPS apagou-se na Baía da Caldeirinha, e desde então estou a usar uma aplicação no telemóvel, para contar os quilómetros. Tenho agora 25,8 km feitos.
Este é o caminho pedestre em direção à Praia, a localidade onde eu estou alojada no moinho.
Este é o percurso para bicicletas. Bastante diferente do pedestre. Vou arriscar o pedestre.
E aqui deu-se um episódio muito triste. Estão a ver aquele pombo ali à frente, na estrada? Pois de repente passa um carro a uma velocidade louca, rente a mim. Eu travei e fiquei a olhar. Isto não é normal, estamos no meio de uma povoação. E claro que atropelou o pombo, que ainda tentou voar, foram penas por todo o lado, e caiu no chão.
Se o pombo tivesse morrido logo, ainda vá. O pior foi ver o animal a arrastar-se pelo chão, em direção à berma da estrada. Eu fui a correr na sua direção. Arrastou-se e ficou caído no chão, com o bico aberto. Está em sofrimento, não deverá sobreviver.
Mas que gente é esta que acelera desta maneira no meio duma povoação? Se não ia a cem à hora, parecia. Um autêntico rali. Por acaso não me apanhou a mim. Por acaso não apanhou uma criança. Um cão. Um gato. Foi o desgraçado do pombo que agora está aqui a morrer lentamente.
O que faço? Fico aqui de braços cruzados a assistir a isto?
Ainda chamei uns trabalhadores das obras, no edifício em obras aqui em frente. Mas eles não quiseram saber.
Este animal tem que morrer, não o vamos deixar na berma da estrada em agonia, sabe-se lá durante quanto tempo.
Peguei nele e tirei-o da estrada. Há uma bifurcação para a direita (vê-se duas fotos acima) e foi para aí que o levei. Pousei-o em cima da terra. Nesta casa, aquele velhote dormia à sombra do chapéu. Chamei-o. Mas ele não acordou nem por nada, se calhar já não ouve bem. Quem acabou por vir foram as duas senhoras da foto. Creio que será a filha, com os pais. Mas a senhora está muito ocupada a mandar mensagens. Não larga o telemóvel, não pára de escrever. Bom, é preciso acabar com o sofrimento deste animal, é preciso matá-lo rapidamente. “Eu não o mato” – disse-me a senhora do telemóvel. E continuou a mandar mensagens.
Pois, eu também não o mato.
E felizmente o pombo morreu. Acabou-se o sofrimento, pronto. Menos mal. Ficou resolvido. Terá ficado com os órgãos internos desfeitos, com a enorme pancada.
Por momentos ainda tive esperança que estes gatos cumprissem o seu papel de gatos e matassem o pombo. Mas nada. Eles nem se mexeram. Estes gatos já não caçam pássaros.
A senhora entretanto disse-me que aqui é hábito acelerarem desta maneira. Disse-o com muita tranquilidade. É normal, por aqui. Andam a toda a velocidade.
E ninguém faz nada? Até que morra uma criança? Um adulto? Eu? Se porventura um pai ou uma mãe lhes escapa a criança da mão, e ela corre… adeus. Porque há tresloucados nesta ilha a fazerem rali entre as casas. Lombas? Quais lombas. O que é isso? Está no dicionário? É coisa que não existe nem consta no dicionário, aqui, aparentemente. Todos sabem o que os tresloucados fazem aqui. Mas lombas… quais lombas. Multas então é para esquecer. Toda a gente sabe quem é aquele indivíduo, mas se calhar é ele quem manda nas lombas.
Entretanto passaram mais meia dúzia de carros a toda a velocidade, por aqui abaixo, ou por aqui acima. Já não à velocidade daquele tresloucado, mas com uma velocidade anormal para quem está a passar no meio de uma povoação rente às casas. Lembremo-nos que aqui nos Açores não existem passeios para peões. As pessoas abrem a porta de casa e estão na estrada de alcatrão. Eu vou no 3º dia aqui na ilha Graciosa, já corri as estradas todas, e nunca vi acelerar desta maneira, muito menos no centro duma povoação. É mesmo esta estrada que induz a isso, se calhar. É a subir e os carros aceleram, e a descer a mesma coisa, vão lançados.
Eu então fui subindo escondendo-me atrás do carros estacionados. Ora de um lado, ora de outro, na estrada. Antes de baterem em mim, terão que bater no carro estacionado. Tenho que sair desta pista de ralis o mais rapidamente possível.
Escola primária, no topo desta rua. Também não há lombas.
Bom, depois deste momento mau, felizmente o GPS manda-me sair da estrada. Respiro de alívio. A estrada está assinalada com a linha cor de laranja. Faltam 3,8 km para o meu destino, na Praia.
Porque optei por um caminho pedestre, não sabendo se é adequado para bicicletas, interpelei aquele senhor que ali vai. Perguntei-lhe se por aqui dá para ir até à Praia. Ele respondeu-me que sim, que em breve irá aparecer-me uma bifurcação e que eu deverei optar pelo caminho da esquerda. (O GPS dir-me-á isso também, certamente). Agradeci-lhe.
Ah que bom. Tenho que acalmar-me. Pelo meio da natureza é melhor.
Está bonito, este passeio para pedestres. É um trilho oficial da Graciosa, de acordo com os marcos de madeira, com as riscas pintadas. Foi arranjado recentemente.
Gradualmente fui-me acalmando.
Termina o agradável passeio pelo campo. Faltam 1,6 km para chegar.
São 16h01. Ainda vou dar uma volta aqui pela povoação da Praia. Tenho andado por toda a ilha e ainda não conheço a povoação onde eu estou alojada.
Império do Espírito Santo de Nossa Senhora da Guia, fundado em 1912.
Numa foto abaixo irei mostrar a Ermida de Nossa Senhora da Guia, que se encontra ao lado deste Império.
As centenas de irmandades dispersas pelo arquipélago dos Açores e pelas comunidades açorianas da diáspora refletem fielmente o profundo significado e a abrangência que esta tradição centenária ocupa na vida dos açorianos e dos seus descendentes. Esta realidade está superiormente definida e expressa nesta frase de Vitorino Nemésio tirada do seu livro Mau Tempo no Canal – Obras Completas VIII, Lisboa, Imp. Nac., Casa da Moeda, 1994, página 173 “… As Festas do Espírito Santo enchem a primavera da vida de um movimento fantástico, como se homens e mulheres imitando os campos florissem”.
O culto ao Divino Espírito Santo é de tal modo emblemático da açorianidade que o Governo dos Açores o associou à celebração do Dia dos Açores e da Autonomia, visto tratar-se da manifestação pública que melhor define e identifica o povo dos Açores.³
Aqui na Vila da Praia – apenas na Vila da Praia – existem três Impérios do Espírito Santo, conforme se pode consultar no website criado pelo Governo Regional dos Açores, exclusivamente dedicado a esta matéria. Existe um segundo Império criado em 1895, e um terceiro em 1853.
Na crónica 89, na ilha de São Jorge, eu expliquei a tradição açoriana do Espírito Santo. Aqui na ilha Graciosa, segue o detalhe:
O Império do Espírito Santo de Nossa Senhora da Guia, da Vila da Praia, concelho de Santa Cruz, Graciosa, foi fundado no primeiro quartel do século XX, no ano de 1912.
Esta irmandade celebra a sua festa em honra do Divino na segunda-feira do Espírito Santo.
Nos domingos seguintes à Páscoa, e até ao dia de Pentecostes, o Espírito Santo vai para casa dos irmãos que foram comtemplados com as domingas sorteadas no ano anterior. Durante a semana é rezado o terço. No domingo, realiza-se o cortejo do Espírito Santo para a Igreja, onde é celebrada missa festiva de coroação.
Terminado este ato litúrgico, o préstito regressa a casa de onde saiu, seguindo, nesse mesmo dia, para outra família, onde permanecerá também por uma semana. Este ciclo repete-se até ao dia da festa.
Na segunda-feira de Pentecostes a comemoração deste culto ancestral é maior. Assim, os mordomos, os irmãos do império, as suas famílias e os convidados levam à Igreja os símbolos do Divino em cortejo acompanhado pela filarmónica. Ali é celebrada a missa de festa e são coroadas as crianças ou adultos.
Neste dia, procede-se à distribuição do bodo, oferta de rosquilhas aos irmãos. Da parte da tarde há arraial com concertos de filarmónica, bazar, tasca, arrematações e são expostas mesas com carne assada, vinho, sumos e petiscos para todos os presentes se servirem. Ainda neste dia à noite, no império, são tiradas as sortes/pelouros que ditarão quem serão os irmãos contemplados com as domingas do ano seguinte. Oportunamente, é nomeada a comissão responsável pela festa do próximo ano.⁴
Então porque não haveria ele de estacionar como todos os outros, alinhado ao passeio? Não perturba minimanente o trânsito. Em Lisboa faria sucesso.
O que é isto?
Mas o que é isto, a 200 ou 300 metros do meu moinho?!
Uma praia magnífica! Eu tenho andado por todo o lado, na ilha Graciosa, e ainda nem andei pela própria povoação onde estou alojada. Mas nunca é tarde! Vou já buscar o biquíni!
Passaram-se 19 minutos. Desde que tirei a foto anterior, até esta, passaram-se 19 minutos. Pedalei a toda a velocidade até ao moinho onde estou alojada, troquei de roupa, vesti o biquíni e pedalei novamente para aqui. Ainda meti um iogurte e uma banana pelas goelas abaixo, à pressa, porque à tarde costuma ficar nublado, e eu quero estar na praia com sol. São agora 16h27. Ainda não almocei, e o almoço vai ter que esperar. Tenho a minha vida toda pela frente, para almoçar. Mas só tenho esta tarde para gozar esta magnífica praia. Amanhã parto para Lisboa.
No entanto esteve sempre sol. De vez em quando desaparecia atrás de uma nuvem, mas voltava logo, e fez sempre calor. Água morna.
E esta toalha é mesmo uma das minhas toalhas de banho, do moinho. Branco mais branco não há. Uma pessoa tem que ser prática e desenrascar-se!
Desta vez pus a máquina fotográfica dentro da bolsa. É preciso ter muito cuidado com a areia.
E aqui vou passar uma hora e um quarto, estendida ao sol.
Muito bom. Belo final de tarde na ilha Graciosa.
De regresso ao moinho. São quase 6 da tarde. À esquerda está o Império do Espírito Santo de Nossa Senhora da Guia, que já apresentei acima. E agora em frente está a Ermida de Nossa Senhora da Guia.
As escadas dão acesso ao restaurante. Há mais restaurantes em Vila da Praia, mas este fica mesmo ao lado do meu moinho, e tenho sido bem atendida, pelo que continuo a cá voltar.
Prato do dia: bifes de cebolada com puré de batata. E sopa de canja. Ai que delícia. Mas são 6 da tarde, já não há nada disto, era ao almoço. A cozinha está fechada. Vou despedir-me então dos belos hambúrgueres que aqui servem. Ao menos servem-me um hambúrguer, já não é mau. Recordo que na ilha do Pico, por exemplo, nem isso serviam, conforme contei na crónica 79. Ou na ilha Terceira, onde às duas da tarde mandaram-me embora, como contei na crónica 97.
Cá estão os manos Margarida e Mateus, que eu já apresentei na crónica 115. Agarrei na máquina e fotografei-os rapidamente, e nem dei conta que a foto ficou mal focada. Mas mantive-a, claro. Ficaram com o meu Facebook. A Margarida não sabe andar de bicicleta, mas o Mateus tem uma bicicleta grande, contou-me. Eu disse-lhe que qualquer dia ele poderá ir viajar de bicicleta também. O Mateus respondeu prontamente que para isso é preciso dinheiro. E perguntou-me onde é que eu arranjo dinheiro para viajar durante um mês. Eu respondi-lhe que ele tem que ir trabalhar e ganhar dinheiro. Mas antes tem que ir para a universidade. Se quiser ganhar dinheiro para ir de férias, tem de estudar e ir para a universidade.
O Mateus e a Margarida fixaram-me, pensativos. Vão para a praia agora. E vão sozinhos. Perguntaram-me se a praia estava boa. Sim, está lá muita gente e a água está morna.
Foram todos contentes.
Hambúrguer à casa, 4,5€.
Comprei aqui também outra garrafa de litro e meio de água, 1,20€.
Deitei-me às 23 horas a selecionar fotos e a tratar do seu backup.
Hoje fiz 33,3 km na bicicleta: 17,4 contados pelo GPS, mais 15,9 contados por uma aplicação no telemóvel, dado que as pilhas do GPS se acabaram entretanto. (Por falta de carregamento noturno, recordemos).
¹ “Freguesia de Guadalupe – História” (s.d.). Junta de Freguesia de Guadalupe. Página consultada a 8 março 2021,
<https://freguesiaguadalupe.com/historia/>
² “Sismo de 1 de janeiro de 1980 foi há 40 anos” (2020, 1 janeiro). IVAR – Instituto de Investigação em Vulcanologia e Avaliação de Riscos. Página consultada a 8 março 2021,
<http://www.ivar.azores.gov.pt/noticias/Paginas/20200101-40-anos-sismo-1980.aspx>
³ “História” (s.d.). Roteiro das Festas do Divino Espírito Santo – Açores / Comunidades. Governo dos Açores. Página consultada a 8 março 2021,
<http://roteirodesazores.com/historia/>
⁴ “Império do Espírito Santo de Nossa Senhora da Guia” (s.d.). Roteiro das Festas do Divino Espírito Santo – Açores / Comunidades. Governo dos Açores. Página consultada a 8 março 2021,
<http://roteirodesazores.com/festa/imperio-do-espirito-santo-de-nossa-senhora-da-guia/>