089 – São Jorge – As Festas do Espírito Santo

Ermida do Cristo Rei, construída em 1933.

Estou a chegar a uma povoação chamada Beira.

Cheguei à terra chamada Beira. Esta senhora chama-se Maria da Boa-Hora Silva. Só lhe falta conhecer duas ilhas dos Açores: Flores e Corvo.

A Maria tem 3 gatos: a Anita e a Joana, as quais vai procurar em casa para mostrar-mas. Mas elas foram passear e já voltam, descobriu entretanto; a filha deixou a porta aberta, de trás, e elas escapuliram-se. A terceira gata, de coleira vermelha – que vai aparecer nas fotos abaixo – dorme com o cadelinha Nisa na garagem. A cadelinha Nisa ladrou imenso à minha aproximação. Está nas fotos em cima.

Levaram um quarto de hora a aparecer. Esta é a gatinha Anita. Já eu estava a ficar preocupada também. E se são atropeladas?, perguntei eu à Maria. Elas não vão para a estrada – respondeu-me. Até ao dia em que lhes apeteça ir!, disse eu. Ai não me diga isso que eu fico já aflita. Eu recuei: Não, se elas nunca vão para a estrada, não hão de ir agora.

A Maria pagou 90€ para esterilizar um dos seus gatos. Xiça. Eu já mandei esterilizar dois gatos silvestres em Lisboa, e o máximo que paguei foi 35€. Este ano tive a ajuda da Associação “Animais de Rua” e foram 15€. Não há associações de proteção animal aqui nos Açores?, perguntei à Maria. Sim, existem, respondeu-me. Mas aparentemente o seu gato não era abandonado, e a Maria teve de pagar tudo. A Maria contou-me também que o levou à ilha Terceira, de avião, e que pagou o bilhete do gatinho para ele ir com ela aos pés dela. Porque há muitas histórias de animais que morrem no porão dos aviões, de ataque cardíaco, com o medo, provavelmente.
A Maria viveu 7 anos na Califórnia. Tem 3 filhos: aquela menina que aparece nas fotos acima, com trissomia 21, outra filha que é enfermeira na ilha Terceira, e um filho que é bancário.
Vivia com o marido e davam-se muito bem, ele morreu de repente no ano passado. Um avc. E quase começou a chorar agora, com o desgosto. “Amava muito o meu marido e dávamo-nos tão bem”, repetiu.

Estive 25 minutos a conversar com a Maria, e agora é hora de prosseguir viagem. Mesmo ao lado da sua casa está esta ermida: Ermida de Nossa Senhora de Lurdes, construída em 1921.

– Titã. – E baixei a cabeça em sinal de cumprimento e respeito.
– Estás a divertir-te, Rute?
– Estou sim, Titã. Bastante.
– Ainda bem. Prossegue então.

Igreja de Sant’Ana. Foi reconstruída após o sismo de 1964, na sequência da sua quase completa destruição. É um dos mais antigos templos da ilha, apesar de não haver referências a este antes do século XVII. Foi elevada a paróquia em 1982. Possui uma torre sineira com relógio e frontão simples. Sobre a porta principal existe um óculo. O sino desta igreja foi adquirido pela junta da paróquia em 1871. A festa, de invocação a Santa Ana, realiza-se no último Domingo de Julho.¹
E as horas estão certas.

Império do Espírito Santo.

Conforme expliquei na crónica 86, “Império” é a denominação dada a um pequeno templo onde, entre o domingo de Páscoa e os domingos de Pentecostes ou da Trindade, se venera o Espírito Santo nos Açores. À volta dos Impérios desenvolvem-se durante vários dias as festividades do Espírito Santo.
Os primitivos edifícios do Espírito Santo eram efémeros, desmontando-se após a festividade. Os primeiros Impérios construídos em alvenaria de pedra datam do século XVIII e a sua originalidade tipológica, sem paralelo no continente, parece ter resultado da fixação em alvenaria das características das anteriores construções desmontáveis. Mas à sua definição tipológica e estilística não serão também alheias as influências orientais e a confluência de culturas e de gentes, bem como as correntes estilísticas prevalecentes aquando da construção da maioria dos Impérios. Apresentam grande profusão decorativa, revelando quase um “horror ao vazio”, com símbolos do Espírito Santo e, por vezes, alegorias às festas e ao bodo. Todos os elementos são sublinhados a policromia de cores vivas e exuberantes. No interior o Império apresenta espaço único, tendo na parede fundeira um altar ou um nicho rasgado para exposição dos símbolos do Espírito Santo: a coroa, assente numa salva, de prata, e o cetro.²

Perguntei a uma senhora que estava à porta – que virei daqui a pouco a saber que se chama Paula Amarante – o que há aqui dentro desta Casa Espírito Santo. E a Paula convidou-me a entrar.

A Paula, que não quer aparecer nas fotos, é bancária em Velas, e também é diretora do Grupo Etnográfico da Beira, fundado em 1981, o qual tem como objetivo a fiel representação das danças e cantares dos usos e costumes das gentes de São Jorge, desde finais do século XVIII, até princípios do século XX.
Ninguém melhor para dar uma volta comigo por esta sala, mostrar-me as fotos na parede, e explicar-me o que são as Festas do Espírito Santo.

As festividades do Espírito Santo realizam-se 50 dias depois do domingo de Páscoa, e culminam no domingo de Pentecostes, dia em que desceu o Espírito Santo sobre os apóstolos e discípulos de Cristo.
A introdução do culto do Espírito Santo em Portugal com base nas ideias de Joaquim de Fiore (c. 1131 – 1202), abade cisterciense, que defendeu o milenarismo e o advento da idade do Espírito Santo, ainda divide a historiografia. Contudo, vários autores avançam que a explicação para a introdução do culto em Portugal e, sobretudo na região de Tomar e Castelo Branco, se deve à ação da Ordem do Templo, instalada no local desde o século XII e depois à sua sucessora, a Ordem de Cristo. A partir do continente, o culto do Espírito Santo irradiou para os Açores, mantendo-se ainda hoje bem vivo e com sentido de agregação comunitária muito forte. Também aí, o surgimento e a implantação do culto deve-se à Ordem de Cristo, a quem foram doadas as ilhas dos Açores por D. Afonso V e a quem, no ano seguinte, a 13 de março, o Papa Calisto III, concede a jurisdição espiritual de todas as ilhas.²

Este ano não haverão festas por causa da Covid-19, explica-me a Paula. Hoje fizeram comida e estão a vendê-la como forma de angariar fundos para arranjar o teto e o telhado da igreja.

Assim que acaba a Páscoa, entra-se em plena época do Espírito Santo.
Na sexta-feira, os bovinos são enfeitados e realiza-se a “procissão do vitelo”. Posteriormente, sacrificam-se os animais necessários para o bodo que o Imperador oferecerá no domingo aos convidados, retalha-se a carne para a sopa, o cozido e a alcatra do jantar e para os “quintões de esmola” a distribuir pelos pobres da freguesia. No sábado faz-se a distribuição de esmolas, compostas de carne, pão e vinho, benzidas pelo padre.²

Todos os anos é nomeado um Imperador, figura principal dos festejos, que organiza a coroação e se vê auxiliado por populares com posses, como são alguns lavradores, que engordam e doam os bezerros cuja carne é utilizada nas sopas e distribuída, juntamente com os bodos, porta a porta, pela irmandade. O Imperador, que também financia a festa, é, em geral, pessoa respeitada pela comunidade e benquista do povoado.
A coroa, o cetro e a orbe do Espírito Santo que repousam todo o ano nos Impérios, passam nesta altura para a casa do imperador, ficando, à sua guarda e da sua família, sobre um altar improvisado decorado com flores naturais ou de papel, em frente ao qual familiares, amigos e populares rezam diariamente o terço. A casa imperial tem uma bandeira hasteada junto à porta a assinalar a presença da divindade.³

As procissões eram tradicionalmente acompanhadas pelos foliões, encarregados de anunciar, dirigir e orientar todas as cerimónias, dançando e cantando jocosamente. Hoje, na maioria dos casos, os foliões foram substituídos pelas filarmónicas, limitando-se quase exclusivamente a acompanhar as coroações e mudanças e a dirigir a “função” em casa do Imperador. Nos festejos realizam-se ainda touradas à corda, bodos de leite, distribuição de massa sovada aos irmãos, “cantorias” improvisadas, atuações das filarmónicas e de grupos folclóricos.²
Nesta foto os foliões têm consigo pães gigantes, os quais representam o castelo da Rainha Santa Isabel (as torres) e o redondo representa o mundo, explica-me a Paula. Aparentemente as celebrações foram introduzidas em Portugal pela Rainha Santa Isabel, no século XIV, com as suas dádivas de comida aos pobres.

Em cada lugar por onde se passa respira-se um ambiente de festa – as ruas são revestidas de lâmpadas e bandeirinhas, as comissões e os seus ajudantes preparam as mesas para o jantar e, ao cair da noite, as pessoas caminham rumo ao império para tomar parte no terço e no animado serão.
Não há localidade açoriana que por estes dias não viva a festa do Divino: todos esforçam-se por prestar uma digna homenagem à divindade e têm gosto em reviver as nobres tradições que herdaram da família e da comunidade.
As festas do Espírito Santo fazem parte da alma dos Açorianos. Este culto secular potencia a vivência de atitudes e valores verdadeiramente humanistas e solidários, como seja a distribuição de alimentos pelos mais pobres, as refeições oferecidas a todas pessoas e o convívio entre vizinhos e amigos, sempre acompanhado pela música do momento e pelos tradicionais e saborosos petiscos.
Todavia, este ambiente festivo não se confina às nove parcelas do arquipélago Açoriano. Os nossos “heróis do mar” levaram para os seus países de acolhimento as festas em honra do Espírito Santo. Hoje este culto está presente em cada uma das comunidades açorianas presentes na América, no Canadá, no Brasil e noutras longínquas paragens. Em cada uma delas expressa-se a devoção ao Divino e transformam-se em vida os traços da nossa identidade cultural.⁴

Entretanto ofereceram-me arroz doce. São 12h33 e eu estou determinada a chegar ao Farol dos Rosais, pelo que o almoço irá tardar. Agradeci e aceitei. (Não fiquei com o nome desta senhora!)

Mas eu não vou comer isto tudo, vou apenas provar, pelo que pedi outro prato, apenas com duas ou três colheres de arroz doce. Assim não toco neste. Agora por causa do vírus não convém tocar em nada. Foi a senhora que me serviu noutro prato.

Estou de máscara, claro. Eu e a Paula andámos de máscara, dentro da sala, enquanto me ia explicando as fotos.

As cozinheiras! Lurdes e Margarida.

Sou um ajudante!, disse-me.

Não servem ossos, foram todos retirados.

A representação do ceptro.

O chafariz tem a data na parede de 1883.

Agradeci o tempo dispensado pela Paula a explicar-me tudo, despedi-me de todos e prossigo caminho.
Como despedida desta crónica deixo uma música do CD “Cantos Jorgenses” do Grupo Etnográfico da Beira:

  1. YouTube – Olhos Castanhos – versão 1 (com viola da terra);
  2. YouTube – Olhos Castanhos – versão 2 (com vozes e vários instrumentos);
  3. YouTube – Olhos Castanhos – versão 3 (não faz parte do Grupo Etnográfico da Beira, mas trata-se de uma adaptação muito bonita para clarinete e viola da terra, feita por Rafael Carvalho, pelo que a deixo aqui igualmente).

A viola da terra tem 12 cordas e é o mais típico instrumento musical do arquipélago dos Açores.⁵


¹ “Igreja de Sant’Ana” (s.d.) Secretaria Regional da Educação e Cultura, Governo dos Açores. Página consultada a 21 janeiro 2021,
<http://srec.azores.gov.pt/dre/sd/115152010600/nova/Site_AP12A/Construcoes/IgrejasErmidas/ISantaAna.htm>

² “Os Impérios do Espírito Santo na Ilha Terceira” (s.d.) SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitetónico”. Direção-Geral do Património Cultural. Página consultada a 21 janeiro 2021,
<http://www.monumentos.gov.pt/site/app_pagesuser/siparoute.aspx?id=2097b07d-4235-4031-8c9c-19f7d4e0ca45>

³ da Câmara, João Gago (2019, 14 maio) “O culto ao Divino Espírito Santo nos Açores”. Visão. Página consultada a 21 janeiro 2021,
<https://visao.sapo.pt/opiniao/a/paralelo-38/2019-05-14-o-culto-ao-divino-espirito-santo-nos-acores/>

⁴ Medeiros, Alexandre (s.d.) “Festa do Divino Espírito Santo: o dia que reúne todos os açorianos”. Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura. Página consultada a 21 janeiro 2021,
<https://www.snpcultura.org/vol_festa_Divino_Espirito_santo_o_dia_que_reune_acorianos.html>

⁵ “Viola da Terra” (s.d.) Centro Regional de Apoio ao Artesanato. Governo dos Açores. Página consultada a 21 janeiro 2021,
<http://artesanato.azores.gov.pt/artesanato/viola-da-terra/>

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