115 – Graciosa – Caldeirinha, Regresso & Almoço Ajantarado
O meu caminho é aquela estrada lá em cima à esquerda! Em direção aos moinhos de vento. Vou ter que penar um bocado…
Cheguei! São 16h15.
Esta noite esqueci-me de carregar as pilhas do GPS, estão mesmo no fim, além de que têm centenas de vezes de utilização, é altura de substituí-las. São as pilhas que usei em Timor-Leste e em são Tomé e Príncipe. Muito têm elas durado. Mas desta viagem aos Açores já não irão passar.
E aqui está o Vulcão Caldeirinha, também conhecido por Caldeirinha de Pêro Botelho. Leio o seguinte no site do Geoparque Açores:
A Caldeirinha de Pêro Botelho corresponde à cratera do único spatter cone (ou “cone de salpicos de lava”) da ilha Graciosa. A base da cratera, de forma circular, dá passagem ao único algar vulcânico conhecido na ilha, com cerca de 37 metros de profundidade. Na base do algar, abre-se uma galeria sensivelmente NE-SO, com 24,6 x 7,4 m de dimensão, cujo fundo encontra-se coberto por blocos rochosos resultantes de derrocadas. Esta cavidade vulcânica foi explorada pela primeira vez em 1964, pela “Sociedade de Exploração Espeleológica- Os Montanheiros”. A descida ao algar deve ser efetuada apenas por espeleólogos experientes e com o material adequado! Uma caminhada à volta da cratera, e uma paragem no miradouro existente, permitem desfrutar de diversas perspetivas desta depressão e, ainda, contemplar a paisagem envolvente a este cone vulcânico, nomeadamente a Plataforma Noroeste da ilha, de natureza basáltica e que integra cerca de 55 cones de escórias. A Caldeirinha de Pêro Botelho é um geossítio prioritário de Geoparque Açores, de relevância regional e interesse científico, educacional e geoturístico.¹
Bom, e é hora de regressar a casa. São 8 km quase sempre a descer.
Vou fazer isto a toda a velocidade. Quero ir almoçar.
E depois de descer aquela encosta vertical, desde o Parque Eólico (onde uma placa indica “10% de inclinação”) e ir a toda a velocidade por ali afora, parei a bicicleta para tirar uma foto. Estava entretanto na zona onde fotografei o agricultor João, na crónica anterior. Já longe da Caldeirinha.
Lancei a mão às costas, como sempre faço, para agarrar na máquina fotográfica, que anda pendurada ao ombro.
Não há máquina fotográfica.
Onde está a máquina fotográfica?
Rute, onde está a máquina fotográfica?!?!?!
Por momentos ficou tudo negro à minha volta. Senti tonturas. Vi estrelas e mais passarinhos do que o normal, aqui em terras açorianas. O sangue gelou-me nas veias. Vou cair para o lado.
Esqueci-me da máquina fotográfica na Caldeirinha. Ficou em cima de um pequeno muro, onde eu a pousei enquanto fui à casa de banho. Claro que não há casa de banho nenhuma, é mesmo ao ar livre.
Não posso nunca largar a máquina. Já não é a primeira vez que acontece. Sempre que pouso a máquina, tenho de colocá-la à frente da bicicleta, para vê-la. Senão esqueço-me. Ao mesmo tempo tenho receio de não a ver e arrancar na bicicleta, pisando-a. Tenho que gerir esta situação da melhor forma. E agora tenho que voltar para trás e fazer aquela subida outra vez, e torcer para que ninguém a tenha levado.
Fui a toda a velocidade para trás. Com a adrenalina no máximo pus a mudança mais pesada e fui a toda a velocidade para trás, de volta à Caldeirinha.
Chama-se João Natal e foi a minha salvação. Anda com um amigo turista a mostrar-lhe a ilha. Perguntei-lhe se podia levar-me lá acima. A bicicleta fica aqui presa em baixo, com o cadeado.
E o João levou-me lá acima, no carro. Esperámos um pouco pelo seu amigo, que andava a passear a pé, e fomos então os três lá acima.
Esta subida é absolutamente infernal. Recordo que eu estou a andar de bicicleta desde as 7 da manhã, ou antes disso. Ainda não almocei. São 4 e tal da tarde. O esforço físico tem limites, mesmo com uma injeção de adrenalina considerável que me deu uma valente dose de energia. Mas fazer esta subida outra vez iria ser terrível. Foi uma sorte ter aparecido o João e ter-se disponibilizado para levar-me lá acima.
A máquina continuava exatamente no mesmo lugar. Não apareceu ninguém durante este tempo. Se tivessem chegado turistas entretanto, em princípio ainda lá estariam, pois passa-se normalmente algum tempo a dar a volta à Caldeirinha, e a apreciar a paisagem. São agora 16h54 e o João trouxe-me para baixo. A minha bicicleta está ali ao fundo encostada ao muro. Ficou com o cadeado posto.
O reflexo do vidro não permite ver o João, no lugar do condutor, e no lugar do passageiro já vai o seu amigo turista, que fala inglês. Já na vinda para baixo, eu mais calma, com a máquina comigo, conversámos um pouco. O João é aqui da ilha Graciosa e sempre viveu aqui. É professor do 1º ciclo. Agradeci-lhe muito. Foi mesmo a minha salvação.
E agora sim, vou para casa. Comer um bife com batatas fritas.
Ao regressar a casa, o GPS mandou-me passar novamente pela casa da Maria (com quem me cruzei na crónica anterior), e aqui está ela de volta das suas belas couves. Eu ia a descer com alguma velocidade e travei em alguns metros, ao avistá-la. Então chegou lá? – perguntou-me a Maria. Cheguei sim senhora! E despedi-me e prossegui caminho. (Cheguei à Caldeirinha duas vezes até… Mas eu estou com pressa e não contei os detalhes à Maria).
Também passei na povoação de Pinheiro, em frente à casa do Ricardo, com quem me cruzei na crónica 110. Estava uma porção de gente no seu quintal, menos ele, pelo que não parei. Passei igualmente pelo rato que deixei em cima do muro. Estava cheio de moscas verdes, credo. Devia ser enterrado.
E aqui está o meu moinho.
São 17h32. O GPS marca 36,5 km, mas é preciso descontar os 600 metros da boleia do João, até à Caldeirinha, e depois outros 600 metros para baixo. Descontando 1,2 km, portanto, fica 35,3 km (a pé e de bicicleta). Repare-se que passei o mesmo tempo em movimento (5h24) que parada (5h22).
Estou neste momento a 14 metros de altitude. E atingi a velocidade máxima de 47 km/h. Dei-lhe bem. É a fome a picar-me.
Pedi bife com ovo estrelado e batatas fritas. Mas a senhora disse-me que só iria conseguir servir cerca das 18h30 porque não tinha alguns ingredientes, estava à espera do marido para ele ir no carro fazer as compras. O marido tinha saído do trabalho, tinha ido a casa tomar um duche e já vinha.
Então esperei aqui sentada. Fui fazendo o trabalho da seleção de fotos do dia – de ontem e de hoje. Estou atrasada neste trabalho, pelo que todo o tempo livre tem que ser aproveitado. Há que apagar as fotos que não interessam para fazer o backup para o telemóvel, e depois para a cloud esta noite.
São agora 18h26 e finalmente vou comer.
Bitoque de vaca, 8,5€.
A Margarida, com 8 anos, e o Mateus, com 11. São irmãos. Nasceram na ilha de São Miguel; a mãe veio trabalhar aqui para a ilha Graciosa há dois anos. É cozinheira aqui no restaurante. Eles gostavam mais de São Miguel, disseram-me. Moravam em Rabo de Peixe. Quiseram conhecer o interior do meu moinho, pelo que fui mostrar-lhes a casa. Disse-lhes que estava um pouco desarrumada. “Não faz mal“ – responderam-me educadamente. Ri-me.
E aqui está o João, o dono do moinho, que fez o favor de vir abrir a garrafa de vinho da Graciosa, oferta do alojamento. Antes que eu me vá embora, tenho que experimentar o vinho da Graciosa, e não estava a entender-me com o saca-rolhas. O João é graciosense, ou seja, nasceu na ilha Graciosa e sempre aqui viveu. É funcionário público, faltam-lhe 6 ou 7 anos para a reforma. O negócio com o moinho está sujeito a oscilações e incertezas, e agora em época de Covid-19 nem se fala. O emprego é uma estabilidade. Tem dois filhos, dois rapazes, um de 24 anos a terminar Biologia na universidade, no continente, e outro de 29 anos que é skipper militar, na GNR (Guarda Nacional Republicana). Um “skipper” é um patrão, neste caso um marinheiro profissional.
Eu não percebo nada de vinhos, confesso. Mas gostei bastante deste. Leio o seguinte na internet:
Nos Açores existem, nas ilhas Terceira, Graciosa e Pico, três regiões demarcadas para a produção de vinho, que comercializam cerca de duas dezenas de marcas de vinhos de mesa, licoroso e regional oficialmente reconhecidas.²
O IVV – Instituto da Vinha e do Vinho especifica:
A qualidade e o prestígio dos vinhos dos Açores são conhecidos de longa data, facto que levou a que fossem reconhecidas três Indicações de Proveniência Regulamentada (IPR): “Pico”, “Graciosa” e “Biscoitos”.
O IPR “Pico” é um vinho licoroso branco, produzido na Ilha com o mesmo nome a partir de uvas cultivadas em terrenos pedregosos; a área de vinha é muito reduzida e as parcelas são cercadas de pedra solta a que dão o nome de “currais”, cuja finalidade é de proteger as plantas da ação dos ventos.
Na Ilha Graciosa produz-se o IPR “Graciosa”, vinho branco resultante de videiras cultivadas também em “currais”.
O prestigiado vinho licoroso branco “Biscoitos” é produzido na Ilha da Terceira. Esta designação “Biscoitos” deve-se ao facto de o solo ser muito pedregoso de cor escura, semelhante ao biscoito que, na época dos descobrimentos, os navegadores utilizavam como pão.³
O Instituto da Vinha e do Vinho indica:
DOP “Graciosa”: A área geográfica correspondente à IPR (Indicação de Proveniência Regulamentada) “Graciosa” abrange, no concelho de Santa Cruz, as freguesias de Santa Cruz, Guadalupe, Praia e Luz, em áreas de altitude igual ou inferior a 150 m.
Castas Brancas: Verdelho, Arinto (Pedernã), Terrantez, Malvasia Fina e Fernão Pires (Maria Gomes).
Vinhos brancos de grande qualidade, leves, frescos, secos e bastante frutados.⁴
Esta é a notícia publicada em setembro de 2020 na Ambitur, uma revista especializada em turismo. Passo a transcrever, para se ler melhor:
Foi em 1962 que a Adega Cooperativa Agrícola da Ilha Graciosa colheu vinho pela primeira vez, depois de ter criado os seus primeiros estatutos quatro anos antes. De lá para cá o crescimento tem sido notório, resultando da vontade e necessidade dos produtores da Graciosa organizarem a venda dos seus produtos através de uma entidade que garantisse igualmente a qualidade de toda a produção que é entregue.
João Picanço, presidente da Adega Cooperativa, recorda que ao início “só recebia vinhos brancos, verdelhos, arintos e terrantez. Depois, com a necessidade dos sócios, começou a receber vinhos tintos, de cheiro e outros”.
Além do vinho, que se encontra nas castas naturais da ilha em verdelho, arinto ou terrantez, chegando sobretudo de Santa Cruz e de Guadalupe, a Adega Cooperativa da Ilha Graciosa quis criar novos estatutos que lhe permitissem trabalhar com outros produtos. E assim começa a trabalhar com a meloa, o alho, a compota de uva e de meloa.
João Picanço não tem dúvidas porém que o ex-libris da Adega é o vinho Pedras Brancas, feito de verdelho, arinto e boal, com uma categoria DOP e um dos vinhos com maior frescura devido à sua acidez, perfeito para acompanhar mariscos, peixes e queijo. Mas destaca também o vinho tinto e o vinho rosé “Alma da Nossa Ilha”.
É verdade que, ao longo do tempo, se introduziram algumas máquinas no processo de plantio, recolha e entrega, mas o presidente da Adega garante que o cerne do trabalho advém dos conhecimentos partilhados, “uma combinação perfeita a que se junta o selo Marca Açores”. E, neste momento, todos os produtos comercializados pela Adega Cooperativa têm o selo Marca Açores, um reconhecimento que o produto é original e “uma mais-valia para um produto da terra”.
O futuro da Adega Cooperativa da Ilha Graciosa passa, necessariamente, pela diversificação de produtos. Tendo por base produtos como o alho da Graciosa, conhecido pela casca rosa e sabor intenso, ou a meloa de casca rugosa e doce, a Adega pondera, por exemplo, ter pasta de alho e o mel da Graciosa. Sempre com a qualidade dos Açores.⁵
Esta questão do alho é muito interessante – e importante. Permitam-me aproveitar esta crónica para fazer um desvio do vinho para o alho. Esta notícia é de maio de 2020:
O Secretário Regional da Agricultura e Florestas revelou que o alho da Graciosa passa a integrar a lista de produtos nacionais protegidos como Indicação Geográfica (IG), enquanto a Comissão Europeia está a analisar o pedido de certificação como Indicação Geográfica Protegida (IGP), com claros benefícios em termos da valorização e garantias de qualidade do produto.
“Estão reunidas todas as condições para que a Comissão Europeia aprove o pedido açoriano, considerando a homogeneidade, as caraterísticas e a identidade própria do alho da Graciosa”, considerou João Ponte, frisando que os regimes de qualidade existentes na União Europeia constituem, por si só, uma garantia muito importante da qualidade do produto, da sua genuinidade, acarretando maior notoriedade e novas oportunidades de negócio.
Além do Alho da Graciosa IGP, os Açores têm também em fase de registo a certificação da Manteiga DOP, estando em fase de avaliação a Banana dos Açores.⁶
Ora uma IGP – Indicação Geográfica Protegida, é o seguinte:
É um nome geográfico ou equiparado que designa e identifica um produto originário desse local ou região, que possui uma determinada qualidade, reputação ou outras características que podem ser essencialmente atribuídas à sua origem geográfica e que, em relação ao qual pelo menos uma das fases de produção tem lugar na área geográfica delimitada.⁷
E entretanto a Comissão Europeia já aprovou o pedido de certificação!
Descrição: O Alho da Graciosa da espécie Allium sativum L., produzido exclusivamente na ilha Graciosa, tem como principais características:
– Textura firme e macia;
– Sabor de intensidade alta, muito agradável que deixa um gosto residual pouco persistente;
– Cheiro de intensidade média-baixa (sem ser esmagado);
– Diâmetro da cabeça superior a 3 cm;
– Cor das túnicas dos dentes: rosa avermelhado;
– Apresenta valores elevados de Zinco (superior a 7 mg/Kg), Ferro (superior a 8mg/kg); Magnésio (superior a 170 mg/kg) e Alicina (superior a 3500 mg/kg).
Método de produção: Para a produção do Alho da Graciosa são selecionados terrenos com boa exposição solar e abrigados de ventos fortes dominantes. O terreno é preparado no início do Outono e são selecionados os melhores alhos das cultivares da ilha Graciosa, isto é, cabeças sãs, isentas de pragas e doenças, com os dentes exteriores maiores e de cor rosa avermelhada. A plantação é realizada, sobretudo, nos meses de dezembro e janeiro. A colheita é realizada quando a folhagem está seca, o que costuma ocorrer durante o mês de junho. As plantas ficam a secar, expostas ao sol, dois ou três dias, quando as condições climáticas o permitem. Podem também ser secas em molhos (plantas inteiras com os bolbos entrelaçadas) num local coberto.
Características particulares: O Alho da Graciosa é muito utilizado na gastronomia Açoriana e da ilha Graciosa, pois além do sabor e aroma inconfundível, é utilizado como conservante alimentar, devido à concentração de alicina.
História: O alho implementou-se com sucesso na ilha Graciosa, desde a chegada dos primeiros povoadores no início do século XV, devido às condições edafoclimáticas propícias ao seu cultivo. De geração em geração, o Alho da Graciosa tem sido melhorado, pois os produtores guardam, para propagação, os melhores exemplares e aqueles que preservam as principais características, como a cor e o tamanho. Desde o início do povoamento, o regime das chuvas e a fertilidade dos solos revelaram-se favoráveis à cultura de produtos horto frutícolas, sendo o alho produzido pelos habitantes da ilha. A Graciosa sempre foi conhecida como a “Terra do Alho”, figurando este produto, em destaque, no brasão da freguesia de São Mateus.⁸
(Fim de citação).
Bom, o meu bitoque, hoje, certamente foi temperado com alho da Graciosa! Por isso estava tão bom 🙂
¹ “Caldeirinha de Pêro Botelho” (s.d.). Geoparque Açores. Página consultada a 1 março 2021,
<https://www.azoresgeopark.com/geoparque_acores/geossitios.php?id_geositio=17>
² “O vinho nos Açores…” (s.d.). Wine in Azores. Página consultada a 1 março 2021,
<https://www.wineinazores.com/acores/vinho_nos_acores.php>
³ “Açores” (s.d.) Instituto da Vinha e do Vinho. Página consultada a 1 março 2021,
<https://www.ivv.gov.pt/np4/280/>
⁴ “DOP “Graciosa” (s.d.) Instituto da Vinha e do Vinho. Página consultada a 1 março 2021,
<https://www.ivv.gov.pt/np4/288/np4/1029.html>
⁵ “Adega Cooperativa Agrícola da Ilha Graciosa – Vinhos de Qualidade com o Selo Marca Açores”. Revista Ambitur, setembro de 2020. Edição 331. Lisboa, ATM – Edições e Publicidade, Lda.
⁶ “Governo dos Açores revela que Alho da Graciosa passa a estar protegido como Indicação Geográfica”. Página de Facebook de Adega Cooperativa Agrícola da Ilha Graciosa. Consultada a 1 março 2021,
<https://www.facebook.com/adegacooperativagricola/posts/3089673474386890>
⁷ “IGP – Indicação Geográfica Protegida” (s.d.). Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural. Página consultada a 1 março 2021,
<https://tradicional.dgadr.gov.pt/pt/produtos-por-regime-de-qualidade/igp-indicacao-geografica-protegida>
⁸ “Alho da Graciosa IGP” (s.d.). Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural. Página consultada a 1 março 2021,
<https://tradicional.dgadr.gov.pt/pt/cat/horticolas-e-cereais/1072-alho-da-graciosa-igp>