021 – Chegada a Lospalos – Almoço

O Valério à minha espera num cruzamento.

Se bem me recordo, aqui é algo ligado à companhia das águas.

São 10.15h da manhã, tenho 23 km feitos na bicicleta, e chegámos cedíssimo a Lospalos. Aqui há um bom restaurante, aparentemente não há mais nada de jeito até Tutuala, pelo que o Valério trouxe-me aqui para almoçar. Adicionalmente o Valério tem aqui a mãe e alguns irmãos, pelo que é natural que goste de aqui estar. O Valério tem mais nove irmãos, dois dos quais a trabalhar na Irlanda num restaurante, contou-me. São 225 km de Díli até aqui, seis horas de carro por estradas esburacadas. O Valério costuma vir cá passar o Natal. Como é tão cedo para almoçar, sugeri ao Valério que fôssemos visitar a sua mãe, coisa que lhe agradou, naturalmente. Foi o Valério à frente, na pickup, devagar, e eu a segui-lo na bicicleta. Vai a comitiva visitar a senhora.

O nome “Lospalos” parece espanhol, mas não tem nada a ver. A palavra Lospalos deriva da palavra “Lohoasupala“ em fataluco, a língua falada nesta região. O Valério, tendo nascido aqui, fala fataluco. Além do tétum. E também fala indonésio – foi a língua que aprendeu na escola. E arranha o português. Três línguas e meia, portanto. Então o Valério (com a ajuda posterior de outras pessoas que falam fataluco) explicou o significado de “Lohoasupala”. É que toda a gente indica que o nome deriva desta palavra em fataluco, mas ninguém explica o seu significado. Vou tentar ir mais longe, portanto. Explicaram-me o seguinte:

No fundo, “Lohoasupala“ são três palavras juntas:
1) Loho que quer dizer Laco, o animal que se alimenta dos melhores grãos de café e que dá origem ao famoso e bem caro café de laco;
2) Asu quer dizer pedra magnética, magnetismo ou que atrai;
3) Pala significa quintal, horta, sítio onde se cultiva tudo o que se possa comer.

Como Lospalos ainda é terra de muitos lacos, apesar do extermínio que existe, a tradução poderá ser algo como “terra fértil que atrai os lacos”.
Há aqui três palavras que podem levar-nos a várias interpretações: laco + atração + comida.
Dado terem sido várias pessoas a analisar e explicar a palavra “Lohoasupala“, há mais uma interpretação que não se limita ao laco mas a todo o animal selvagem que se alimenta da horta e de frutos. Ou seja, “horta ou terra que atrai os animais”.
Mas faz sentido: Lospalos é uma terra fértil, e naturalmente, quando há fruta ou vegetais, os animais aparecem logo. E devia ser o que acontecia muito quando faziam as hortas.

Interessante, heim?
Deixo uma nota adicional sobre o laco. Provavelmente já todos ouviram falar do café que é feito com excrementos de um animal. Pois é o amigo laco, que vive aqui em Timor, entre outras zonas do sul e sudeste da Ásia. Laco provavelmente será tétum. Em português é “civeta”. Um bicharoco felpudo, que come os frutos do café e expele os grãos sem os digerir. Os grãos vêm nas suas fezes apenas sem a película vermelha exterior. São limpos e depois torrados. Pelo que vejo na internet, este café custa cerca de 600€ o quilograma. Infelizmente não vi nenhum laco, nesta viagem, nem provei o café. Fica para a próxima.

Foto de Laco / Civeta:
https://en.wikipedia.org/wiki/Asian_palm_civet

Aqui mora a mãe do Valério, mas não está. Foi trabalhar e só chega à noite. Então vamos visitá-la ao trabalho, disse eu ao Valério. Afinal de contas são seis horas de viagem até aqui, de Díli, e o Valério só vê a família no Natal. Mas não, o Valério diz que é muito longe. Ainda cumprimentou uma irmã, na casa em frente, e regressámos ao restaurante.

A caminho do restaurante ainda visitei este mercado.

Eu esqueci-me de trazer uma caneta, nesta viagem. Uma caneta faz sempre falta, e fez-me falta logo no avião, na vinda, para preencher os papéis da imigração. Foi o meu vizinho francês quem me emprestou a sua caneta. Os apontamentos desta viagem, que tiro diariamente, agora ando a escrevê-los nas notas do telemóvel. E descobri que até gosto mais assim. Para quem acompanhou as crónicas da China, eu mostrei na crónica 128 o bloco de apontamentos onde fui escrevendo as notas, comprado à “Animais de Rua”, em Portugal. A certa altura o bloco esgotou-se, pelo que tive de começar a escrever nas costas de umas folhas A4. Bom, com esta história de esquecer-me da caneta, e passar a escrever no telemóvel, agora não tenho restrições de espaço. Além de que posso apagar e voltar a escrever, sem necessidade de riscar nada. Estas tecnologias são maravilhosas. Lá se vai a compra de blocos à Animais de Rua. Mas a razão desta história toda é que nesta praça, aqui nesta barraquinha, vi finalmente canetas à venda, e quis comprar uma. Há muitas canetas, de todas as cores e feitios. Escolhi uma e perguntei o preço. Dez cêntimos. E agora arranjar dez cêntimos. Continuo a ter só notas de vinte dólares, ainda não destroquei isto. Agora é uma boa altura, esta senhora pode dar-me troco. Mas ela nem esteve para isso, ofereceu-me a caneta. Leve-a, fez-me o gesto com autoridade. (Sim senhora!) E assim fiquei com uma caneta para o resto da viagem, oferecida por esta lojista timorense.

O dono do restaurante é português e gosta de futebol, está visto. O menu está em português. Têm costeletas de borrego, mas está esgotado. Pedi então bitoque. Comer um bitoque em Timor-Leste, um prato tipicamente português, com ovo a cavalo e tudo, é um luxo.
Perguntei se há wifi no restaurante, o empregado disse que sim. Experimentei, no entanto não funciona. Chamei-o e perguntei-lhe o que passa, e então ele respondeu que o patrão foi a Díli. Muito bem, quando o patrão vai a Díli, leva o wifi com ele. A internet em Timor é algo dramático, apercebo-me. O Relatório de Desenvolvimento Humano de Timor-Leste de 2018, elaborado no âmbito do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), revela que apenas 21% da população possui computador em casa; 27% possui internet em casa; 34% da população usa internet. A maior parte das subscrições de internet são móveis: 65% (ou seja, a ligação à internet é feita através de um modem wireless, smartphone, tablet ou outro dispositivo móvel). Apenas 0,1% tem internet por cabo. Portanto apenas 34% da população usa internet, e praticamente sempre através do smartphone. Estou tramada. Claro que o patrão levou o wifi com ele. Eu tenho internet no telemóvel, com o cartão da Timor Telecom, no entanto não tenho internet no telemóvel do trabalho. Normalmente ligo-me aos wifi’s que existem, ou então dou-lhe internet através de hotspot do meu telemóvel (timorense, neste caso). Ora há uma restrição qualquer que não me permite fazer hotspot. Diz que tenho de contactar o “carrier”. Fico portanto dependente do wifi. Mas qual wifi? Não há wifi em lado nenhum. Estou no sexto dia da viagem e ainda não consegui ter internet no telemóvel do trabalho. Por esta altura já devem todos pensar que fui raptada ou morta. Se a coisa continuar assim, terei de copiar os números para o telemóvel timorense e começarei a enviar mensagens desse. Mas enfim, qualquer pessoa pode agarrar num telemóvel, com um número qualquer, e dizer que sou eu. Convém comunicar do meu próprio telemóvel. Pelo menos um sms ao Diretor já enviei, informando que está tudo bem e que não tenho internet. Por sms continuo disponível, mas as tarifas são caríssimas. Cinco euros por minuto, nas chamadas, e um euro e tal os sms.

Aqui estou eu, às 11 da manhã, a comer um bitoque. Às 9.30h já eu estava a perguntar pela lata de salsichas ao Valério. O pequeno almoço hoje foi fraco, pelos vistos. Andamos com latas de comida, se bem se recordarão da crónica 4, dos preparativos em Díli. Mas o Valério disse-me que estávamos quase a chegar ao restaurante, e de facto chegámos 45 minutos depois, pelo que me aguentei sem as salsichas às 9 e meia da manhã. O meu bitoque veio com salada, coisa que não posso comer na Ásia. Legumes crus, molhados com água da torneira, é diarreia ou gastroenterite certas, pelo que pedi um prato para retirar a salada, e limpei o meu prato com um guardanapo, para não ficarem vestígios da água. O bife está bastante tenro, foi martelado antes, e tem uma especiaria que me é estranha. Comi tudo com ketchup. Este almoço às 11 da manhã soube-me bem, rodeada de cães a darem-me lambidelas nas pernas.

Este hotel tem uma série de cães “protégées”. São pelo menos uns cinco. Andam todos felizes, gordos e contentes livremente pelas instalações do hotel, que tem um jardim. Também podem sair para a rua, o portão está sempre aberto. O da direita nasceu com os dentes de fora e os olhos tortos, mas este cão – aliás, esta cadela, porque é uma cadela – tem uma vivacidade e uma alegria extremas. Levei tanta lambidela nas pernas, tanta narizada, e a empoleirar-se nas minhas pernas, e eu a fugir e a enxotá-la, e ela sempre ali à espera de comida, gordíssima… Levei um bocadinho do bife, que sobrou, mas garantidamente não foi para estes sortudos. Guardei os bocados de carne em guardanapos, o melhor que pude, tentando não engordurar a minha bolsa de cintura, e vou levá-los comigo para outro cão menos sortudo, daqueles esqueléticos, que encontrar pelo caminho, na bicicleta.


¹ “Timor-Leste National Human Development Report 2018”, página 88, Table 5.1, ICT Access Statistics, Timor-Leste, 2016. United Nations Development Programme. Página consultada a 2 Outubro 2018,
<http://www.tl.undp.org/content/dam/timorleste/docs/reports/HDR/2018NHDR/TL-NHDR-2018.web.pdf>

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