Amazónia Brasileira

091 - Palácio Rio Negro

O Palácio Rio Negro foi construído em 1903 para ser a residência de um rico exportador de borracha, o alemão Karl Waldemar Scholz que foi também Presidente da Associação Comercial do Amazonas e Cônsul da Áustria. Conhecido na época como Palacete Scholz, o prédio é um marco do período em que o Amazonas era um dos estados mais prósperos da União. O declínio do comércio da borracha devido ao desenvolvimento da sua produção no continente asiático, somado à eclosão da Primeira Guerra Mundial, que interrompeu a linha de navegação entre Manaus e Hamburgo, na Alemanha, prejudicou sobremaneira os negócios do comerciante alemão, que teve de hipotecar o imóvel. Arrematado em leilão por outro barão da borracha, Luiz da Silva Gomes, o prédio foi primeiramente alugado ao Estado do Amazonas. Em 1918, o Governador adquiriu o imóvel, que passou a denominar-se Palácio Rio Negro.
O Palácio Rio Negro serviu de sede do Governo e de residência dos governadores até 1959. A partir desta data, até 1995, foi utilizado apenas como sede de Governo.
Hoje é um espaço cultural, e em cada uma das salas é possível admirar mobiliário em estilo manuelino, português, inglês e império, além de belas peças de estilo oriental e Art Nouveau.

Bairro social, com casas oferecidas pelo Governo. Pedi expressamente ao guia Rodolpho que nos fosse mostrar essas casas, pelo que ele levou-nos de carro a esta zona. Existem condições a cumprir para ter direito à oferta de casa: durante dez anos não podem ser modificadas; as crianças têm de frequentar a escola e os adultos têm de qualificar-se para obter um emprego. Vimos ainda um anúncio na televisão brasileira, no hotel, acerca de um empréstimo de cinco mil reais (cerca de 1.800 euros) para mobilar a casa. Mas contou-nos o guia Rodolpho que esse empréstimo tem juros e as pessoas não têm consciência de quanto vão pagar.

O esquema de assistência social no Brasil é bastante significativo: existem várias “bolsas” atribuídas a indivíduos e famílias que sejam considerados carenciados. Os guias Gel e Taketomi falaram-nos delas, tal como o guia Rodolpho nos conta agora também. Existe a bolsa família, por exemplo, que abrange 16 milhões de brasileiros com renda familiar per capita inferior a R$ 70 mensais (cerca de 25 euros). Todos os meses o governo federal deposita uma quantia para as famílias que fazem parte do programa. O saque é feito com cartão magnético, emitido preferencialmente em nome da mulher. O valor repassado depende do tamanho da família, da idade dos seus membros e da sua renda. Há benefícios específicos para famílias com crianças, jovens até 17 anos, gestantes e mães que amamentam¹²⁴.

No Marajó, por exemplo, apontava-se para a existência de 35.670 famílias abaixo da linha de pobreza na região (cerca de 40% do total de famílias). Em maio de 2006, 85% das famílias pobres tinham acesso à “Bolsa Família”, representando um repasse mensal de R$ 2,25 milhões²².
Já na Comunidade Piscatória do Catalão, que visitámos após o Encontro das Águas, foi questionado sobre quais famílias recebiam o beneficio do governo bolsa família e o resultado foi que 78% recebiam¹¹⁶.

Existem outras bolsas, como a bolsa do presidiário e a bolsa do drogado, das quais falarei na próxima crónica.


¹²³ Oliveira, Albino (2011) “Palácio Rio Negro”. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Página consultada a 27 de Outubro de 2013,
<http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar../index.php?option=com_content&view=article&id=849%3Apalacio-rio-negro-manaus-am&catid=50%3Aletra-p&Itemid=1>.

¹²⁴ Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) (s.d.) “Bolsa Família”.  Página consultada a 27 de Outubro de 2013,
<http://www.mds.gov.br/bolsafamilia>.

²² Governo Federal, Grupo Executivo Interministerial (2007) “Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável para o Arquipélago do Marajó”. Brasília, Editora do Ministério da Saúde. Consultado a 16 de Agosto de 2013,
<http://www.sudam.gov.br/Adagenor/PRDA/Plano-Marajo/07_0035_FL.pdf>.

¹¹⁶ Fonseca, Jéssica e Batista, Selma (2010) “Estudo de Caso na Comunidade do Catalão: Turismo Alternativo como forma de Potencializar seus Atrativos” in  Revista Eletrónica Aboré – Publicação da Escola Superior de Artes e Turismo Manaus – Edição 05 Dez/2010. ISSN 1980-6930. Página consultada a 27 de outubro de 2013,
<http://www.revistas.uea.edu.br/old/abore/artigos/artigos_5/57.pdf>.

092 - Mercado da Fruta de Manaus

Visitar estes mercados é um ponto forte das viagens – para quem aprecia o estilo, claro. Eu então perco-me, e nesta foto já se vê um Filipe meio aborrecido por eu não os deixar manter o ritmo normal do passeio: têm de parar e estar constantemente a olhar para trás, à minha procura, e à espera que eu observe tudo durante meia hora, e mais a meia dúzia de fotos que vou tirando em cada ponto. Isto de andar com uma fotógrafa atrás (amadora que seja) não deve ser pêra doce, suponho eu.

Aproveitei para beber uma deliciosa água de coco. Para quem nunca bebeu, deixo a nota de que quase não sabe a nada, mas sob calor intenso, esforço físico e consequente desidratação, sabe maravilhosamente bem. Além do mais acalma o estômago. Ora veio mesmo a calhar. Lembro-me perfeitamente deste coco e quase que sinto o prazer de bebê-lo, ainda, ao ver a foto.

Mas voltando às bolsas sociais. Temos a bolsa do presidiário e a bolsa do drogado.

A bolsa do presidiário tem um valor mensal que deverá ser igual ou inferior R$ 971,78¹²⁵. A bolsa do drogado trata-se de um apoio mensal no valor de de R$ 1.350 para famílias de viciados em crack para pagamento de internamento em clínicas especializadas no tratamento. São as clínicas, e não os usuários ou familiares, que receberão essa verba, por meio de um cartão magnético fornecido pelo governo às famílias. A previsão é de que três mil dependentes sejam atendidos nessa primeira fase. O número deve crescer à medida que mais cidades sejam incluídas no programa¹²⁶. De facto esta não é propriamente uma bolsa, é mais um programa de reabilitação, mas é conhecida como bolsa drogado.

Todas estas medidas são de louvar, temos de concordar. O Brasil aposta na subida do nível de vida da sua população. Um governo que aposte no enriquecimento da sua população, dando-lhe mais acesso à saúde e à educação, é de louvar. Há sempre um “mas”, porém. A coisa pode não correr sempre bem, há quem fique de fora, e então a polémica espalha-se. Não é fácil satisfazer duzentos milhões de pessoas, a população atual do Brasil, e quem trabalha no duro um mês inteiro, passa privações, e vê outras famílias sem fazer nada, todo o dia no café e na conversa, e com um rendimento garantido – claro que traz polémica. Veja-se este website:

“Agora me digam se dá pra entender:
Quem não trabalha, ganha 852 reais e quem trabalha o mês inteiro ganha 658, fora os descontos.
Além disso, se um homem for preso porque matou um cara, a sua esposa recebe 900 reais por mês, porque o seu marido está preso e sem poder levar sustento pra casa, mas a esposa do assassinado não ganha nada. E morto tem condições de levar algum sustento? Que país é esse? Isso chama-se inversão de valores. A prova do crime de que não compensa trabalhar.”

Para ajudar à festa, foi inventada num blog a existência de outra bolsa: a bolsa prostituta, aprovada pelo Senado, que atribuia uma renda de R$ 2.000 às prostitutas em situação de abandono e de extrema pobreza em todo o país. “O objetivo da bolsa é dar a essas mulheres a possibilidade de terem uma vida mais digna, pois o dinheiro deve ser prioritariamente utilizado com prevenção de doenças”, explicou a senadora que aprovou a medida.

Ora nenhuma senadora nem nenhum senado aprovou bolsa nenhuma para prostitutas, mas o clima de insatisfação e incredulidade já era tal, que a notícia se espalhou como pólvora no Brasil, tornou-se verosímil, e até o nosso guia Rodolpho disse que sim, que havia uma bolsa prostituta. (Esta notícia saiu em Maio de 2013, nós estivemos no mês seguinte no Brasil). A senadora em causa respondeu publicamente e indicou que iria colocar a Polícia Federal no encalço deste bloguista, o qual prontamente se identificou, alegando que daria o seu nome completo e a sua localização para poupar trabalho à polícia, “pois considero que seria mais profícuo que ela – a Polícia Federal – dedique o seu tempo a vigiar as fronteiras e a tentar amenizar a entrada de cocaína que as FARC’s e a Bolívia enviam para o Brasil ao invés de correr atrás de mim”.

Uma autêntica telenovela brasileira, como as que chegam à nossa televisão em Portugal.


¹²⁵ Agência Eletrónica da Previdência Social (s.d.) “Auxílio-reclusão”. Ministério da Previdência Social. Página consultada a 2 de novembro de 2013,
<http://agencia.previdencia.gov.br/e-aps/servico/350>.

¹²⁶ Gazeta Online (2013) ”Governo vai dar ‘bolsa crack’ de R$ 1.350 para usuários se tratarem”, 8 de Maio. Página consultada a 2 de novembro de 2013,
<http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2013/05/noticias/brasil/1437577-governo-vai-dar–bolsa-crack–de-r-1-350-para-usuarios-se-tratarem.html>.

093 - Mercados dos Legumes e do Peixe

Passei, indo atrás do Filipe e do guia Rodolpho, e disparei o flash. Eles surpreenderam-se dentro da loja com o súbito relâmpago. Ainda por cima a foto não ficou bem, tive de voltar atrás para tirar outra. Desta vez o senhor viu-me e ainda teve tempo de sorrir e tudo, para a segunda foto.

Havaianas à venda no mercado de Manaus por oito reais. Cerca de três euros. Claro que comprámos um par de chinelos para cada um de nós, eu e o Filipe (uns rosa para mim, outros azuis para si) e ainda hoje me pergunto porque carga d’água não trouxemos um carregamento deles. Ficávamos com havainas para toda a vida… Estas havaianas rondam os quinze / vinte euros em Portugal. Acabámos por comprar mais um ou dois pares, adiante, porém mais caros, com desenhos, e enfim, mais turísticos. Fiquei a sonhar com estes, portanto, tão típicos, em pleno mercado de Manaus, simples e bons, como se quer.

094 - Nas Ruas de Manaus

A azáfama é completamente louca, o trânsito caótico, há muitas pessoas, muitas buzinas e muitos carros por todo o lado. Nós vamos passeando no meio desta balbúrdia, fazendo pequenas compras – os chinelos, bananas, água, e o Filipe algumas garrafas de cachaça para oferecer, que felizmente viajaram bem no avião e chegaram intactas a Lisboa. Esta cachaça não é para qualquer um, tem 40% de álcool e é daquelas que faz tossir os mais desprevenidos (eu…). Uma pessoa transforma-se num dragão a deitar labaredas.

095 - Chegada ao Hotel

Estádio em construção para o Mundial 2014, chamado “Arena da Amazónia”, o qual terá capacidade  para 65 mil pessoas.

Sambódromo.

Estação de recolha de lixo, e tirei esta foto pelos urubus no topo do edifício. Foi tirada à pressa de dentro do carro, em andamento, pelo que ficou desfocada, mas mesmo assim mantive-a. Com os nove urubus a posar para ela.

096 - Jantar & Produção de Cerveja no Brasil

Aproveitemos a cerveja do Filipe – Bohemia, a primeira cerveja do Brasil, conforme se pode ler no rótulo da garrafa, para falar da importância da produção de cerveja no país, porque nem só de peixes se vive. Visitámos recentemente o Museu da Cerveja, em Lisboa, sob sugestão de uma amiga apreciadora de cerveja, e eis que deparámos com a parte internacional do Museu, onde existe um capítulo (e uma vitrine) dedicada à cerveja brasileira, o qual reza assim:

“No Brasil a cerveja chegou em 1808, com a ida da família real portuguesa. A partir daí, com a abertura dos portos brasileiros a outros países, a cerveja expande-se, detendo então a Inglaterra o monopólio da importação. A produção local incrementa-se a partir de 1840 tendo a bebida alcançado projeção nos maiores centros urbanos. As primeiras cervejas eram conhecidas por Barbantes, devido ao facto de as rolhas serem presas por cordéis (barbantes). A partir da segunda metade do século XIX a produção cervejeira brasileira foi sempre crescendo. Hoje o Brasil é o quarto maior mercado cervejeiro do mundo. De entre as marcas de prestígio da indústria cervejeira brasileira, destaca-se a marca Bohemia que, tendo surgido em 1853, é a mais antiga do país”¹²⁸.

A cervejaria Bohemia foi fundada no Rio de Janeiro por um colono alemão, Henrique Kremer¹²⁹. Atualmente é detida pela Companhia de Bebidas das Américas (AmBev). A AmBev é a maior empresa da América Latina. Possui um valor de mercado de 120 biliões de dólares, e está à frente da Ecopetrol (119 biliões de dólares) e Petrobras (118 biliões) ¹³⁰’ ¹³¹.

Jantamos hoje no hotel, eu surubim grelhado com arroz branco (no qual o empregado ter-se-á esquecido de tirar a forma do arroz, e eu tirei a foto com ela também…), legumes e banana pacovan, e o Filipe picanha virada à Paulista, ou seja, grelhada com arroz branco, mandioca frita, feijão tropeiro e ovo frito – como eles lhe chamam. Não é ovo estrelado, é ovo frito. O Filipe ainda comeu uma sopa antes, já não me recordo do quê, não anotei, comi um pouco também e estava muito boa, isso lembro-me.

Aproveito para dizer o que já referi em crónicas anteriores: todos estes pormenores recordo-me deles porque simplesmente escrevo-os. Ando com um pequeno bloco comigo, e uma caneta ou um lápis, onde vou anotando a informação. Já não me lembro o que jantei ontem, quanto mais o nome do peixe em Manaus.

O peixe. Este é o surubim, um peixe de couro, ou seja, sem escamas, encontrado na bacia do rio São Francisco, na bacia do Prata e na bacia do Amazonas. É noturno, pode alcançar mais de um metro de comprimento, e é muito apreciado para o consumo humano. É um  importante recurso pesqueiro devido à sua carne saborosa e ao seu grande porte – pode chegar aos 120 kg. Nas últimas décadas, fatores como a construção de barragens para geração de energia elétrica, sobrepesca, destruição de lagoas marginais, poluição dos corpos hídricos e introdução de peixes exóticos têm causado declínio evidente das populações deste peixe na natureza¹²⁷.

Surubim

Foto de Leandro Vitorino, Go Fly


¹²⁷ Carvalho, Daniel et al. “Diversidade Genética de Surubim (Pseudoplatystoma corruscans), Cachara (P. Fasciatum) e do seu Híbrido Interespecífico”. 1º Congresso Brasileiro de Produção de Peixes Nativos de Água Doce. Página consultada a 2 de novembro de 2013,
<http://www.cpao.embrapa.br/congressopeixe2007/TRABALHOS/GENETICA/GENET_03.pdf>

¹²⁸ Museu da Cerveja (s.d.) “A cerveja nos países que falam português”. Lisboa, Portugal.

¹²⁹ Bohemia (s.d.) “1853 – Nasce a Primeira Cervejaria do Brasil”. Página consultada a 2 de novembro de 2013,
<http://www.bohemia.com.br/site.php>.

¹³⁰ Wikipedia (s.d.) “AmBev”. Página consultada a 2 de novembro de 2013,
<http://pt.wikipedia.org/wiki/AmBev>.

¹³¹ Bôas, Bruno (2012) “Ambev passa Ecopetrol e vira maior empresa da América Latina”. O Globo – Economia. Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Página consultada a 2 de novembro de 2013,
<http://oglobo.globo.com/economia/ambev-passa-ecopetrol-vira-maior-empresa-da-america-latina-6851455>.

097 - Começa um Novo Dia

E começa com um grande pequeno-almoço, após percorrermos não sei quantos quilómetros nos infinitos corredores do hotel. Nunca tinha estado num hotel com corredores tão longos. Chegar à piscina ou aos restaurantes é uma verdadeira maratona. Na noite em que tive de voltar ao quarto para buscar um agasalho, devido ao ar condicionado do restaurante estar demasiado frio, despedi-me do Filipe dado que só voltaria daí a um quarto de hora.

098 - O Zoo do Hotel

Hoje de manhã vamos partir para outras bandas, vamos para outro hotel situado no interior da floresta. Vem um carro buscar-nos, e enquanto chega e não chega aproveitamos para passear dentro deste hotel, que é tão grande que possui um jardim zoológico. Que se calhar mais valia não possuir, não vejo necessidade de manter mais animais presos para gáudio dos humanos, se bem que o hotel se defenda dizendo que é um laboratório credenciado pelo IBAMA, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (do qual falei na crónica 67), e que aqui são tratados os animais resgatados de maus tratos, tanto na captura como na criação ilegal. Esperemos que sim, e que os soltem depois rapidamente.

O nosso já conhecido Macaco-de-Cheiro, que gostámos mais de ver pendurado nas árvores do que dentro desta gaiola. O da foto anterior julgo que seja o Zogue-Zogue, mas não tenho a certeza.

Ora este amigo que nos espreita anda à solta. Ele e outros tantos. Não faço ideia qual é a espécie, de facto ainda não tínhamos visto nenhum macaco branco com cabeça preta. Com que inveja devem os desgraçados que estão presos olhar para eles, todos contentes a saltar de árvore em árvore, ali mesmo em cima da sua cabeça.

A capivara ocorre por toda a América do Sul, exceto na Cordilheira dos Andes; vive em rios, lagos e pântanos; e é o maior roedor do mundo, pesando cerca de 60 kg e medindo até 1,35 m de comprimento e 60 cm de altura.

099 - Três Horas de Viagem

Partimos às nove da manhã, e o motorista que foi buscar-nos, do próprio hotel para onde vamos, foi-nos explicando algumas coisas, nomeadamente que só existe uma estrada que sai de Manaus, e a qual vai para a Venezuela. Nós percorremos agora outra estrada, um troço de 85 km que acaba numa cidade à frente.

Ponte do Rio Negro, inaugurada em outubro de 2011. Tem 3.595 metros, é a primeira ponte de grandes dimensões construída sobre um rio em solo amazónico. Por isso, ao lado do Teatro Amazonas, vem sendo considerada o maior e mais importante monumento arquitetónico do Estado do Amazonas. O empreendimento consumiu vinte mil toneladas de aço e mais de um milhão e meio de sacas de cimento, indica o portal do Governo. Com a quantidade de aço e cimento usados, é possível erguer três estádios do Maracanã. Para responder à alta demanda, foram implantadas duas centrais de produção de cimento, com produção total de 120 metros cúbicos por hora. Devido à acidez das águas do Rio Negro, foi adicionada pozolana (material silicioso) ao cimento empregado nas estacas e no tabuleiro, substância que ajuda a preservar da corrosão¹³².


¹³² Portal do Governo do Estado do Amazonas (2011) “Governo do Amazonas inaugura ponte Rio Negro, um marco para a integração da Região Metropolitana de Manaus”. Página consultada a 3 de novembro de 2013,
<http://www.amazonas.am.gov.br/2011/10/governo-do-amazonas-conclui-ponte-rio-negro-um-marco-para-a-integracao-da-regiao-metropolitana-de-manaus/>.

100 - Chegada ao Hotel - no Parque Nacional de Anavilhanas

Um pouco aturdidos após três de horas de carro, 110 quilómetros depois, eis que chegamos ao encantador hotel Anavilhanas, perfeitamente enquadrado na floresta amazónica, onde vamos passar três dias. O pequeno livro de apresentação do hotel indica: “Cercado de uma vasta extensão de floresta tropical intocada, livre de mosquitos, você irá experimentar o perfeito equilíbrio entre Natureza, conforto, aventura e tranquilidade”.

Parque Nacional de Anavilhanas

101 - Banhos na Piscina... e no Rio Negro

O Rio Negro possui água escura e ácida, e encontra-se entre os maiores rios do mundo em volume de água. Passam mais águas pelo seu leito do que em todos os rios da Europa. É o maior rio de águas pretas do mundo¹³³.
A água é ácida com um pH de 4,0 e apresenta uma coloração escura devido à drenagem de solos ricos em húmus. Nesta região da floresta tropical húmida, predominam estas águas negras. Há pouca carga de sedimentos na água do rio Negro, reflexo dos solos bastante erodidos da bacia de drenagem¹³⁴. Recordemos o Rio Solimões, com águas barrentas – o que acontece por transportar precisamente muitos sedimentos, ao contrário do Rio Negro.
As águas muito ácidas, quase esterilizadas, com um pH baixo, mantêm parasitas e populações bacterianas num ponto mínimo. Por esta razão, os rios negros têm as águas naturais mais limpas no mundo.
A química da água do Rio Negro também inibe a proliferação de larvas de insetos, de modo que a floresta ao redor do Rio Negro tende a ter menos mosquitos. Por outro lado, as florestas de águas negras são diferentes das florestas tropicais convencionais. A acidez da água limita o número de espécies de árvores que possam crescer na área perto do rio. A baixa diversidade de árvores é assim responsável por uma variedade menor de espécies de insetos¹³⁵.

Posto isto, é um absoluto privilégio tomar um banho no Rio Negro. É uma nova experiência. Um rio para nos banharmos, de águas puras.
É preciso é ganhar coragem.
Porque aqui existem jacarés, piranhas e anacondas.

Todavia, esta bicharada foge mais depressa de nós, humanos, do que nós deles, pelo que aqui à volta do hotel, com tanto movimento e ruídos humanos, não existe nada. Pelo menos disseram-nos isto – os próprios guias do hotel (vamos ser acompanhados por vários guias especializados, durante estes três dias). O Filipe ainda conseguiu dar um mergulho, logo à chegada ao hotel. Depois eu disse-lhe que estava a ver um jacaré a aproximar-se – mentira, claro – e ele fugiu espavorido. Eu ainda tentei descer as escadas que dão acesso à água, mas a partir do momento em que tenho as pernas dentro de água, e já não vejo os pés, comunica-me com os nervos e voltei a subir as escadas. Eu já via uma anaconda a subir à superfície a qualquer momento, para me agarrar as pernas e levar-me bem enrolada para o fundo.
Mas hei-de tomar vários banhos mais à frente, me aguarrrrdem.

Fomos então almoçar e demos início aos soberbos manjares que a cozinha deste hotel nos providenciou todos os dias – em todas as refeições. Tivemos pensão completa aqui, pelo que nos alimentámos exclusivamente no seu interior. Nem havia nada ao redor onde pudéssemos ir, estamos no meio da floresta, só de barco daria para ir a alguma povoação. Começamos hoje ao almoço com um buffet com dourada, costeletas, feijoada, arroz, farofas, e sei lá que mais. Como sobremesa uma mousse de limão e outra de chocolate negro e branco. A cozinha foi absolutamente espantosa e no final irei tirar uma foto à cozinheira dos doces, que me ia matando com o seu talento culinário. Foi com grande esforço e auto-controlo que não comi as travessas completas com os doces e deixei alguma coisa para os outros hóspedes.


¹³³ Fogaça, Jennifer (s.d.) “Por que o Rio Negro possui cor escura?”. Mundo Educação. Página consultada a 3 de novembro de 2013,
<http://www.mundoeducacao.com/quimica/por-que-rio-negro-possui-cor-escura.htm>.

¹³⁴ Plaskievicz, Alice e Cunha, Hillândia (2009) “Avaliação Química das Águas do Rio Negro na Amazónia Central”. 61ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progesso da Ciência. Página consultada a 3 de novembro de 2013,
<http://www.sbpcnet.org.br/livro/61ra/resumos/resumos/4129.htm>.

¹³⁵ Butler, Rhett (2008)“A Floresta Líquida”. Mongabay.com. Página consultada a 3 de novembro de 2013,
<http://pt.mongabay.com/rainforests/0602.htm>.

102 - Conhecendo o Arquipélago de Anavilhanas

Às 15 horas temos marcado um passeio de barco por Anavilhanas, o arquipélago fluvial situado no rio Negro, que abrange cerca de 400 ilhas. É um dos maiores arquipélagos fluviais do mundo, variando o número de ilhas de acordo com o nível de água do rio. A variação cíclica do nível da água pode oscilar em até 10 metros entre os períodos de vazante e enchente, sendo que o período de cheia vai de outubro a março e o de seca vai de abril a setembro.

Por serem banhadas por água pretas, as ilhas possuem um tipo de floresta conhecida como igapó. O igapó é caracterizado por apresentar solo encharcado e muito ácido com abundância de matéria orgânica em decomposição. A fisionomia da vegetação das ilhas varia conforme o tamanho das mesmas. As ilhas maiores têm árvores de aproximadamente 25 metros. As ilhas menores apresentam em geral vegetação de porte inferior que estão sujeitas a ficarem totalmente submersas durante a cheia¹³⁶.

O guia que nos acompanhou neste passeio explicou-nos que o rio Negro tem 23 km de largura, com ilhas e paranãs pelo meio. Os paranãs, explicou-nos, são os canais entre as ilhas. Nós estamos a 1,5 km entre terra firme (onde se encontra o hotel) e a ilha de Anavilhanas, do outro lado. Avistámos por esta altura um golfinho cinzento, ou mais conhecido ali por “boto”, e o guia contou-nos que também existem lontras e capivaras. Contou-nos igualmente que os botos e os jacarés destroem as redes dos pescadores, pelo que não são tão bem vindos para quem ali trabalha, como o são para nós, turistas. Disse-nos ainda que as piranhas do rio Solimões é que são perigosas; o ruído atrai-as. Para os outros peixes aparecerem é preciso silêncio. Existem igualmente jiboias nesta zona, que ficam nas árvores, e essas teremos o privilégio de avistar mais à frente. E conseguimos também já ver um pequenino jacaré, que não consegui fotografar, com menos de meio metro, em cima de um galho rasteiro à água. Sumiu-se mal nos aproximámos.

Lagarto chamado Calango-Verde. É inofensivo e ocorre a leste dos Andes, do Panamá ao norte da Argentina e em todo o Brasil. É terrícola, diurno, gosta de sol, e alimenta-se sobretudo de insetos¹³⁹.

Foto retirada de Wikipedia

O guia falou-nos ainda da existência da onça-pintada, que nós conhecemos na Europa como jaguar. Nunca chegámos a avistar nenhuma durante toda a viagem pela Amazónia, mas ela existe precisamente aqui nas florestas tropicais da América do Sul e América Central, onde se dão as inundações periódicas. Existe por toda a bacia Amazónica. Contou-nos o guia que a onça é uma boa nadadora, nada rapidamente e vai para terra. É o terceiro maior felino do mundo, após o tigre e o leão, e o maior do continente americano. A forma corporal atarracada e robusta torna a onça capaz de nadar, rastejar e escalar. Possui a mordida mais forte de todos os felinos, duas vezes a força da mordida de um leão. Ela regularmente preda jacarés, veados, capivaras, antas, porcos-do-mato, papa-formigas e até mesmo anacondas. Entretanto, o felino pode comer qualquer pequena espécie que conseguir apanhar, como ratos, sapos, aves, peixes, preguiças, macacos e tartarugas. Em áreas mais povoadas ou com grande número de pecuaristas, a onça-pintada preda o gado doméstico, e muitas vezes parece ter uma preferência por esse tipo de presa (no Pantanal, foi constatado que até 31,7% de sua alimentação era constituída por bezerros de gado bovino).

A onça-pintada geralmente mata com uma mordida no pescoço, sufocando a presa, como é típico entre as panteras, mas às vezes ela mata com uma técnica única: ela morde diretamente através do crânio da presa entre os ouvidos, uma mordida fatal no cérebro (especialmente se for uma capivara). A mordida na cabeça é empregada em mamíferos, principalmente, ao passo que em répteis, como jacarés, a onça-pintada ataca o dorso do animal, acertando na coluna cervical¹³⁷.

As onças são animais solitários, apenas se juntando na altura do acasalamento. Após as crias nascerem, a fêmea não tolera mais a presença do macho. As crias nascem de olhos fechados e são completamente dependentes da mãe. Apenas abrem os olhos com duas semanas de idade. São alimentadas por esta até aos 5 ou 6 meses de idade, altura em que começam a caçar com a mãe. Dependem da mãe para proteção dos predadores, para se alimentarem, e para orientação e aprendizagem à medida em que crescem. Apenas cerca dos dois anos de idade se tornam independentes¹³⁸.

Ao contrário das outras espécies do género Panthera, a onça-pintada raramente ataca seres humanos. Muitos dos escassos casos reportados mostram que tratavam-se de animais velhos ou feridos, com dentes danificados. A natureza arredia e a inacessibilidade de seus habitats preferidos, torna a onça-pintada um animal difícil de ser avistado e de ser estudado¹³⁷.


¹³⁶ Magnusson, Dr. William “Arquipélago de Anavilhanas”. Programa de Pesquisa em Biodiversidade – PPBio, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazónia. Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://ppbio.inpa.gov.br/sitios/anavilhanas>.

¹³⁷  Wikipedia (s.d.) “Onça-Pintada” Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://pt.wikipedia.org/wiki/On%C3%A7a-pintada>.

¹³⁸ Nogueira, Jonathan (2009) “Panthera onca”, Animal Diversity Web, University of Michigan. Página consultada a 25 de Janeiro de 2014,
<http://animaldiversity.ummz.umich.edu/accounts/Panthera_onca/>.

¹³⁹ Vivaterra Répteis (s.d.) “Calango-Verde (Ameiva ameiva)”. Sociedade de Defesa, Pesquisa e Educação Ambiental, Rio de Janeiro. Página consultada a 12 de Janeiro de 2014,
<http://www.vivaterra.org.br/repteis.htm#calangoverde>.

103 - No Meio da Floresta Submersa

O guia Xico, que nos acompanhou neste primeiro passeio por Anavilhanas, contou-nos (após eu ter perguntado…) que teve uma experiência com uma sucuri – ou anaconda – com cerca de oito metros. Andou a caçar pacas à noite, uma espécie de roedores, e tinha quatro dentro do barco. Deitou-se a fumar, na frente do barco, quando ouviu algo cair à água. Pensou que fosse uma lontra. Focou a lanterna e viu a anaconda a fugir com uma das pacas. Levou apenas uma. Também viu noutra altura uma sucuri que devia ter comido um porco-espinho, pois parecia que tinha pêlos – mas eram os espinhos do animal espetados para fora da sua pele. Reiterou o que o guia Dido já nos tinha dito no Tapajós: que a banha da cobra cura tudo. A cobra não morre com os espinhos do porco-espinho.

A raiz da árvore vai até bem fundo, explicou-nos o guia Xico. Quando está tudo seco, sem água, estas raízes alimentam a árvore.
Depois o guia Xico cortou uma das raízes, soprou para dentro dela, como uma palhinha, e surgiram gotas de um líquido que pusemos na pele como repelente de insetos. Feito isto, tirou-lhe a casca com uma faca e fez uma corda. E ainda cortou pedaços do tamanho de um cigarro e contou-nos que deixando secar durante dois dias, daria para fumar. Quem sabe, sabe.

Cipó (planta trepadeira) chamada Ambé.

De regresso ao hotel, avistamos uma família de turistas (brasileiros, viemos a descobrir mais tarde, quando falámos com eles no dia seguinte) a banhar-se no rio Negro. A pequena cabana que se vê na foto é a entrada do nosso hotel, o qual está bem escondido no meio da floresta. Andam macacos por cima de nós e ainda vou conseguir fotografar um. Os turistas brasileiros não têm qualquer receio de tomar banho no rio, são várias crianças, vêm de São Paulo, e será o seu à-vontade que nos vai dar coragem no dia seguinte para começar a dar uns valentes mergulhos nas águas negras deste rio.

Paca

104 - Pôr-do-Sol em Anavilhanas

Torre de observação existente no hotel, que até nos faz respirar fundo perante aquela paisagem.

Hoje jantamos um pouco mais cedo dado que vamos ter um programa noturno. É com expetativa que o aguardamos: vamos fazer um passeio de barco, na escuridão do rio, para avistar jacarés e jiboias. Por enquanto perdemo-nos na doçaria do Anavilhanas. Aquele quindão, um pudim de coco, e aquela cocada de castanha do Brasil estavam simplesmente divinais. É preciso um grande auto-controlo para não exagerar nas doses. Venham já buscar-me e levem-me para o barco, por favor, tirem-me daqui.

Refrigerante de guaraná Baré, comercializado exclusivamente na Amazónia, e francamente bom. Repito o que disse numa outra crónica: estes guaranás não têm nada a ver com os que são comercializados nos nossos supermercados em Portugal. O Baré é produzido pela Companhia de Bebidas das Américas (AmBev), a maior empresa da América Latina, da qual já falei na crónica 96.

105 - Focagem Noturna de Jacarés & Jiboias

Partimos às oito da noite para este impressionante passeio noturno, onde avistámos uma série de animais, com grande surpresa nossa. Surpresa porque no meio da escuridão nunca imaginámos que fosse possível avistar tantos. O guia era experimentado, e usava uma lanterna com um foco potente, mas mesmo assim. Nunca saímos do barco, claro. Imaginem a nossa surpresa ao ver os olhinhos brilhantes de uma jiboia, enrolada no topo de uma palmeira, a olhar direito a nós. E ainda voltámos a ver outra, noutro local. O seu corpo meio acinzentado, meio acastanhado, enrolado. Explicou-nos o guia que é precisamente pelos olhos que ele as consegue ver. Não é pelo corpo, que passa despercebido numa árvore, mas sim pelo brilho dos olhos. Recordo a distinção que fiz nas crónicas da Austrália, um país onde existem muitas espécies venenosas, entre ofiofilia e ofiofobia. A atração pelas cobras é chamada de ofiofilia, a repulsão é chamada de ofiofobia. Eu encontro-me sem dúvida entre os ofiófilos, dado que tenho verdadeiro fascínio por estes animais, e foi com gosto que enrolei uma série de cobras à volta do pescoço, na Austrália. Há quem não goste de insetos, há quem não goste de aranhas, há quem não goste de cães e de gatos, e há quem não goste de cobras. Felizmente somos diferentes. Seria com bastante gosto também que iria tocar nestas jiboias se o bicho permitisse. A jiboia é um animal muito dócil; apesar de ter fama de animal perigoso não é peçonhenta e não consegue comer animais de grande porte, sendo inofensiva. É muito perseguida por caçadores e traficantes de animais, pois tem um valor comercial alto como animal de estimação¹⁴⁰. São bastante mais pequenas do que as anacondas, podendo chegar até aos quatro metros de comprimento e pesar mais de 45 kg. À semelhança das anacondas, são boas nadadoras e também são constritoras, ou seja, matam as presas – pássaros, macacos, ratos, lagartos, etc – apertando-as com o seu corpo. As jiboias existem na América Central e do Sul¹⁴¹ e foi sem dúvida um privilégio ver duas em plena Amazónia, no seu habitat natural. Deixo um vídeo da National Geographic intitulado “Rato versus Jiboia”.

Pássaro Bacurau, existente nas florestas do Brasil, e também no extremo sul dos Estados Unidos, México, toda a América Central e do Sul (exceto o Chile). Adapta-se também às cidades, já tendo sido observado nos telhados do Rio de Janeiro. É uma ave noturna exclusivamente insetívora. Parte do solo em voo curto para capturar o inseto e pousa imediatamente. É grande devorador de borboletas¹⁴². Não faz ninho, mas a fêmea põe dois ovos amarelo-avermelhados manchados de castanho bem camuflados diretamente sobre a terra. O casal revesa-se para chocá-los. Durante o dia fica pousado imóvel no chão. Os filhotes possuem uma camuflagem quase perfeita, pois possuem uma coloração muito semelhante à da folhagem seca do chão da mata e quando os pais abandonam o ninho, eles permanecem imóveis, sendo muito difícil visualizá-los¹⁴³. A sua vocalização pode ser ouvida aqui. (Clicar no triângulo antes do seu nome: “Bacurau”).

Pequenos jacarés. As mães e os pais estarão algures por perto, mas não se deixaram ver. Estes jacarés são da espécie Jacaretinga (conhecidos assim no Brasil por causa do seu dorso branco – “ting” significa “branco” em língua tupi¹⁴⁴) ou conhecido em Portugal por Jacaré-de-Óculos, porque tem uma lista entre os olhos que parece unir-lhe os olhos como um par de óculos. Podem eventualmente atingir três metros de comprimento, mas raramente excedem os dois metros e meio. Os juvenis alimentam-se de insetos, crustácios e caracóis, e os adultos também de peixes, anfíbios, répteis e pássaros aquáticos. Quando a comida é pouca, podem ainda canibalizar jacarés mais pequenos. Existem na América, desde o México, passando pela América Central, até à América do Sul¹⁴⁵.

Jiboia
Foto retirada da Wikipedia

Mucura Xixica

Vimos ainda outros animais, que não consegui de todo fotografar, na escuridão da noite, relativamente longe, apenas com uma lanterna apontada: o mucura xixica, um mamífero marsupial; uma preguiça; ainda vimos um jacaré com cerca de um metro e meio que se afundou rapidamente nas águas escuras, à nossa aproximação; e depois ouvimos um autêntico concerto noturno de sapos-cururus. O guia desligou o motor do barco e ficámos parados no escuro a ouvir. Pareciam castanholas, e reparámos depois, ao chegar ao hotel, que aí ainda se ouviam. Um verdadeiro concerto altamente barulhento. Recordo que a vocalização do sapo-cururu pode ser ouvida neste link (falei dele e vimos este sapo na crónica 51).


¹⁴⁰ Wikipedia (s.d.) “Jiboia-constritora” Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Jiboia-constritora>.

¹⁴¹ National Geographic  (s.d.) “Boa constrictor”. Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://animals.nationalgeographic.com/animals/reptiles/boa-constrictor/>.

¹⁴² Ambiente Brasil (s.d.) “Curiango (Nyctidromus albicollis)”. Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://ambientes.ambientebrasil.com.br/fauna/aves/curiango_(nyctidromus_albicollis).html>.

¹⁴³ WikiAves (s.d.) “Bacurau”. Página consultada a 6 de novembro de 2013
<http://www.wikiaves.com.br/bacurau>.

¹⁴⁴ Wikipedia (s.d.) “Jacaretinga”. Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Jacaretinga>.

¹⁴⁵ ARKive (s.d.) “Spectacled caiman (Caiman crocodilus)” Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://www.arkive.org/spectacled-caiman/caiman-crocodilus/>.

106 - Caminhada pela Floresta

Começamos com um pequeno banquete, ao pequeno almoço, para ganhar forças, e partimos de barco, desta vez na companhia de alguns hóspedes do hotel. O guia pediu que usássemos protetores nas pernas (foto abaixo) mas em breve eu e o Filipe aborrecer-nos-íamos de caminhar com eles e tirámo-los. Os animais fogem a sete pés de nós, e seguimos por trilhos, não exageremos. Ainda por cima eu nem as minhas sandálias semi-fechadas tenho (morreram no Marajó, conforme contei na crónica 39…) pelo que sigo de sandálias abertas, com os dedos à mostra.

107 - Formigas Tapibá, Tarântulas e Trepadeiras

O guia mostra-nos como a resina da árvore pinga, tornando-se numa substância impermeável. Essa substância é usada para impermeabilizar barcos, por exemplo, ou para tochas.

Ninho de formigas Tapibá, que quando esmagadas, exalam um odor forte. Os índios esfregam-nas no corpo para esconder o seu odor humano, e assim conseguirem caçar nas florestas, sem os animais detetarem a sua presença.

Cipó chamado Apuiseiro. É uma planta trapadeira e parasita. Apuí significa na língua tupi “braço forte”. Enrola-se nas grandes árvores e sobe pelo seu caule até à copa, e nesse abraço torna-se num só vegetal,  alimentando-se da árvore mãe. Contou-nos o guia que era conhecida como “abraço da morte” ou “polvo vegetal”: os seus numerosos tentáculos envolvem a vítima e retiram-lhe a seiva até à exaustão.

Existe uma lenda entre os índios que conta a história do apuiseiro:

Conta-se que em tempos distantes, bem no começo da formação das tribos Apurinã e Tikunã, Tupã, o ente supremo que se manifesta no som dos trovões, mandou duas estrelas como presente, uma para cada tribo. Na tribo dos Apurinãs a estrela nasceu em Anaír. A índia Anaír era tão bela como a flor do ipê e os seus cabelos perfumados tinham o cheiro da flor do caju, corpo elegante e olhar negro, o seu andar tinha a leveza das garças, e toda a meiguice do beijaflor, que tem nas suas plumas as cores do arco-íris. Por seu turno, na tribo dos Tikunãs nasceu o índio Tunacã, guerreiro forte, valente e famoso pelas suas batalhas. Anaír enamorou-se de Tunacã e era correspondida. O casal vivia em grande romance, sem o consentimento das suas tribos, pois não era permitido o casamento com outra nação. Eles viviam separados pelas margens do Rio Javari onde as suas tribos reinavam. Mesmo na época das chuvas, o Rio Javari com as suas cheias e enchentes não impedia que eles se encontrassem e planeassem a sua união. Infelizmente o destino que dirigia a vida das duas estrelas Anaír e Tunacã fez com que o conselho da tribo dos Apurinãs escolhesse uma esposa para o filho do Marubixaba, porque a sua prometida acabava de falecer, vítima de uma febre fatal. O conselho decidiu que a noiva seria Anaír pela sua graça e beleza, e o casamento seria realizado na próxima lua. Anaír ficou alucinada e com o coração quebrado de dor, saiu às escondidas, e foi ao encontro do seu grande amor Tunacã, o qual já sabia da notícia pelos toques de tambores. O seu coração sangrava de dor e paixão, pois o seu grande amor ia casar-se com o futuro chefe da tribo Apurinã e nada podia impedir essa união. Sobre a luz do luar, na calada da noite, ouvia-se somente o coaxar dos sapos e das rãs, o zumbido dos insetos e ao longe o pio das aves noturnas. Eles abraçaram-se na angústia da separação. Nisto os grandes deuses e as ninfas dos rios tiveram pena dos jovens; e naquele momento trovões e relâmpagos cruzaram o espaço. Anaír e Tunacã entraram na piroga e foram levados pela correnteza do rio, a felicidade entrou no coração dos dois jovens que nada viam, e sentiam o seu amor que tudo superava. Tupã fez com que seus corpos fossem levados para o tronco de uma grande árvore e ali permanecessem em sono profundo, abraçados. Os seus braços entrelaçados, corações unidos, permaneceram assim até as suas almas chegarem aos pés de Tupã, que ordenou que os seus corpos fossem transformados numa haste e que entrelaçassem o tronco duma árvore e dela sugassem a seiva para seu sustento como vegetal, e que subissem ao galho mais alto e lá florissem, e que as suas flores e folhas, quem dela provar, ficaria cheio de encanto e embriagados de amor.

Transcorrem muitas e muitas luas, até que os índios da tribo Tupi, guiados pelos deuses, para que essa história de amor nunca fosse esquecida, os encontraram assim em forma de planta, e deram o nome de Apuí; quer dizer braços fortes na sua língua¹⁴⁶.

Mais uma amiguinha tarântula. Sobre as tarântulas remeto para a crónica 78.


¹⁴⁶ Associação Camilo Cienfuegos (2006) “A Lenda do Apuí”. Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://entidadecamilocienfuegos.blogspot.pt/search?q=apu%C3%AD>.

108 - A Comer Minhocas e a Nadar no Rio Negro

Estamos a ficar bravos, estamos a ficar selvagens.
De início pensámos que se tratava de um fruto, vimos o guia quebrar a casca e o Filipe engoliu o primeiro fruto – inteiro, sem mastigá-lo. Depois o guia explicou que sabia a coco e que era para mastigar. E vimos o fruto mexer-se na sua mão. Este fruto está vivo?
Não, é uma larva que vive dentro da casca dos frutos que apodreceram. E sabe a coco. O Filipe mastigou e engoliu. Eu dei-lhe umas dentaditas, pobre animal, sabia mesmo a coco, e deitei fora. É o chamado Tapuru, que pode ser servido cozido, em sopa ou cru.

Capitão do Mato
The CornellLab of Ornithology.jpg

Enquanto caminhamos distingue-se o canto de um pássaro – o Cricrió ou também conhecido por Capitão do Mato, o qual vive nas florestas tropicais e subtropicais da América Latina, e cujo canto é bem sonoro, pode ouvir-se a uma distância de quatrocentos metros¹⁴⁷. Não é em vão que o seu nome científico é “Lipaugus Vociferans”. O nome capitão-do-mato é uma alusão à pessoa responsável pela captura de escravos fugitivos, pois segundo a tradição oral, quando estes fugiam e entravam na mata os cricriós iniciavam a cantoria e eles eram localizados¹⁴⁸.
A sua vocalização pode ser ouvida aqui.


¹⁴⁷  Pareja, Jose et al. (s.d.) “Lipaugus vociferans”. Neotropical Birds, The Cornel Lab of Ornithology. Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://neotropical.birds.cornell.edu/portal/species/identification?p_p_spp=484396>.

¹⁴⁸ Wikiaves (s.d.) “Cricrió”. Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://www.wikiaves.com/cricrio>.

109 - Lazer no Hotel

Lazer até demais, se calhar, pois tive aqui um momento de alguma impaciência. Senti-me presa. Não quero estar na piscina. Quero voltar às florestas, quero navegar nos rios, quero conhecer as coisas.
Tive portanto aqui um momento complicado, recordo-me, à espera do almoço, e depois do almoço à espera da atividade seguinte. Vamos pescar piranhas hoje à tarde. Quero ir pescá-las já.
Bom, mas as coisas têm horas, os guias têm horas, e agora é o almoço. Não posso ir para lado nenhum porque estou no meio da floresta, só se agarrar num barco e fugir daqui.
Calma, Rute. Inspira-te no Filipe, descontraidíssimo a beber uma caipirinha de maracujá.

110 - A Maravilhosa Comida do Anavilhanas

As iguarias do Anavilhanas ainda me fazem crescer água na boca, só de ver as fotos. Ficaram-me dois hotéis na memória pela sua fantástica comida: este Anavilhanas, e outro em Kerala, no sul na Índia, o Spice Village. Estes dois hotéis destacaram-se, em tantos por todo o mundo, pela sua espantosa cozinha, quer nos pratos principais, quer na doçaria.
E partimos então para a nossa pescaria de piranhas, sozinhos com um guia.

111 - A Pescar Piranhas

O nosso guia deu-nos umas breves explicações sobre este animal. É carnívoro, tem fortes mandíbulas e dentes afiados. É um peixe fluvial existente na América Latina. Sendo carnívoro, o isco tem de ser carne. E a piranha é atraída pelo ruído, pelo que quanto mais falarmos, melhor.

Nesta foto o guia mostra-nos o efeito “agrafador”. A piranha que ele pescou deu uma dentada na folha e picotou-a. Ficou a forma dos seus dentinhos na folha cortada.  Foi automático, o bicho nem pensou duas vezes – ferrou os dentes e pronto. É um agrafador automático.

112 - Piranhas por Todo o Lado

Estamos numa área com cinco metros de profundidade. E pescámos várias espécies de piranhas: a prateada, a azul, a preta, a branca, a pacu. Ou melhor, eu apanhei uma, a prateada. O Filipe apanhou duas, uma pacu e outra que já nem sei. O guia apanhou as outras todas. Sim, porque isto de pescar tem a sua ciência. O procedimento é sempre o mesmo: espetar um bocado de carne no anzol, agitar a água com bastante ruído, com a ponta da cana, e depois atirar o anzol para longe. Elas vêm logo morder – as águas estão infestadas. Eu sentia a cana a ser puxada, e tinha então de puxá-la rapidamente. Qual quê. A carne desaparece e nada de piranha. Elas estão a rir-se de nós.
Todas as que apanhámos voltámos a deitá-las à água, pelo que deve ter sido um banquete para elas. Comiam os pedaços de carne e mesmo que fossem apanhadas voltavam à água para comer mais.

Piranha azul.

Piranha preta, a qual chega aos 3 kg.
Contou-nos o guia que a piranha do rio Solimões é mais agressiva (nós estamos no rio Negro).

Esta é a piranha pacu, de barriga mais arredondada. Ao que parece ambos os peixes – pacu e piranha – confundem-se quando são jovens.

113 - Até que uma delas Mordeu

O episódio foi caricato. O Filipe quis tirar o anzol da boca da piranha que tinha acabado de pescar. Disse-nos o guia que normalmente não deixa fazê-lo, mas o Filipe insistiu. Ora meteu o dedo dentro da boca da piranha. O que faz a piranha automaticamente? Já conhecemos o seu efeito agrafador. E agora foi a vez do Filipe senti-lo na pele.

Mas o melhor de tudo foi o que aconteceu a seguir. O Filipe assustou-se a atirou a piranha ao ar, que por um triz não caiu em cima de mim. Tinha de ser para o meu lado, não podia ser para o lado do guia, que já tem experiência nestas lides e teria ficado mais calmo. É que a piranha ficou aos saltos dentro do barco, entre mim e o Filipe. Ora nós estamos os três em pé, é aconselhável não abanar muito o barco, com tantas piranhas a nadar à nossa volta. É bom que ninguém caia à água. Gerou-se ali um momento de pânico, entre mim e o Filipe, com uma piranha aos saltos entre nós, e nós de calções e chinelos ou sandálias. O guia manteve-se calmo e ajudou a equilibrar o barco. Acudiu-nos e apanhou a piranha. Respirámos de alívio.

Afastado o susto – curiosamente o Filipe andava com pensos rápidos dentro da mochila, deu bastante jeito – afastado o susto, e após regressarmos ao hotel e comermos um delicioso lanche constituído por sumo de maracujá, bolo de limão, e umas bolinhas que me disseram chamar-se sucrilhos, umas doces, outras salgadas, rimo-nos à gargalhada com este episódio da piranha. O Filipe teve de andar uns dias com pensos no dedo, pois a mordidela ainda foi funda. O que vale é que era pequenina, senão ia o dedo todo. No dia seguinte brincou com o guia, dizendo que queria continuar a pescar piranhas, nem que tivesse de andar com todas as pontinhas dos dedos cheias de pensos. Nem toda a gente pode dizer que foi mordida por uma piranha em plena floresta amazónica, é a verdade. Diria mesmo que é um luxo. O mais perto que eu estive duma situação destas foi no sul da Índia, precisamente numa floresta, num passeio de canoa, onde descobri que estava a ser mordida nas costas por uma sanguessuga. Acontece.

Preguiça no topo da árvore. A foto abaixo foi tirada com zoom, é a mesma preguiça.

114 – Jantar

Peixe Aruanã, de água doce, que ocorre nas Bacias Amazónica e Araguaia-Tocantins, no norte do Brasil. Alcança um metro de comprimento, e pesa até 2,5 kg. O aruanã vive em águas calmas, na beira dos lagos, ao longos dos igapós ou dos capins aquáticos, sempre à espreita de insetos (principalmente besouros) e aranhas que caem na água. É provavelmente o maior peixe do mundo cuja dieta é constituída principalmente por insetos e aranhas. O aspeto mais característico do comportamento alimentar do aruanã é a habilidade de saltar fora de água e apanhar as presas ainda nos troncos, galhos e cipós. Um indivíduo adulto pode saltar mais de um metro fora de água. O aruanã reproduz-se durante a enchente, e os machos guardam os ovos e as larvas na boca¹⁴⁹.
Existem cinco espécies de aruanãs, sendo que duas delas ocorrem aqui na América Latina, e as restantes no sudeste asiático, Austrália e Nova Guiné¹⁵⁰.


¹⁴⁹ Ambiente Brasil (s.d.) “Aruanã – Osteoglossum bicirrhosum”. Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://ambientes.ambientebrasil.com.br/agua/pesca_esportiva_em_agua_doce/aruana_-_osteoglossum_bicirrhosum.html>.

¹⁵⁰ Fishbase (s.d.)“Family Osteoglossidae – Arowanas”. Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://www.fishbase.org/summary/FamilySummary.php?ID=38>.

115 - A Caminho dos Botos Cor-de-Rosa

Começa um novo dia, e desta vez experimento uma iguaria típica da Amazónia: panqueca de tapioca com queijo coalhado. Foi a Maria, uma das empregadas do hotel, que veio em meu socorro. Eu olhava para tudo, mas sem saber como se come, e ela explicou-me que a panqueca se faz na tostadeira, e o queijo se coloca ao lado, não em cima da panqueca como eu ainda comecei a fazer após ela me ter explicado a história da tostadeira. É saboroso, claro. A panqueca de tapioca quase não sabe a nada, e é um pouco áspera. A Maria explicou-me ainda que também pode colocar-se um pouco de tucumã, fruto de uma palmeira. Mostrei pedaços de tumucã no pequeno-almoço da crónica 106.

Cará cozido,  um tubérculo, do qual comi uma rodela. Sabe a batata-doce cozida.

Cará

Partimos então às oito e meia da manhã, de barco, para visitar um centro com um flutuante onde cuidam de botos cor-de-rosa.

O piso central do barco está livre para serem colocadas redes, onde os passageiros descansam ou dormem durante a viagem. Aliás, no piso do meio conseguem-se vislumbrar-se duas.

116 - Os Botos Cor-de-Rosa

O boto é um golfinho que vive apenas em ambientes fluviais. Possui uma grande distribuição dentro da bacia amazónica e ocorre em cerca de seis países da América do Sul: Colômbia, Bolívia, Brasil, Venezuela, Peru e Equador. Dentre os golfinhos de rios, o boto é o maior deles podendo atingir nos machos cerca de 2,55 metros de comprimento e um peso de 200 kg, e para as fêmeas 2,25 metros de comprimento e 150 kg de peso.

Os botos possuem o corpo muito flexível devido ao facto de viverem em ambientes fluviais, onde precisam de ser ágeis para se desviarem de obstáculos e para capturar as presas¹⁵¹. A grande flexibilidade do pescoço e do corpo deve-se à não fusão das suas vértebras cervicais. Esta característica permite que eles nadem em locais de menor profundidade e em ambientes de floresta alagada. As nadadeiras peitorais são grandes e podem realizar movimentos para trás com facilidade, o que ajuda o boto a movimentar-se no meio de raízes e troncos de árvores caídos.

A variação da sua coloração corporal está, aparentemente, associada à idade. Os neonatos e juvenis possuem coloração cinza-escuro e tornam-se mais claros ao longo do crescimento. Os adultos são mais rosados devido à despigmentação da superfície do corpo que é causada por abrasão e cicatrizes. Os machos adultos são mais rosados do que as fêmeas já que apresentam muitas cicatrizes, nomeadamente devido ao comportamento agressivo com outros machos. Algumas fêmeas adultas podem também ter coloração predominantemente rosa, mas a maioria é cinza-claro no dorso e rosada ventralmente.

Os indivíduos desta espécie normalmente são solitários, mas grandes agregações podem ocorrer especialmente em áreas de alimentação e durante o período reprodutivo. Apesar dessas agregações, os botos não formam grupos sociais estáveis  e associação mais estável ocorre entre mãe e filho.

De acordo com a portaria brasileira 117, de 1996, é crime o molestamento e a captura intencional de cetáceos, assim como a utilização de embarcações para interferir no seu deslocamento e na coesão de grupo. Todavia, apesar de estar protegido por lei, o boto é alvo de maus tratos e caça intencional em várias regiões. O boto tem sido morto por pescadores para ser usado como isca na pesca da piracatinga (um peixe necrófago), ou morto por ser considerado um animal que prejudica a pesca. O facto de ser um animal fluvial torna-o ameaçado já que ocorre em áreas de elevada ocupação humana, e por conseguinte os conflitos e pressão antrópicos sobre os recursos naturais são mais intensos. O desmatamento e o uso de terra para fins agropecuários provocam o assoreamento dos rios, e com isso diminuem as populações de invertebrados aquáticos e peixes  e, consequentemente, a viabilidade das presas para os botos. Além disso, a poluição causada por atividades de mineração, indústria e esgotos domésticos e ainda o tráfego de barcos acentuado diminuem a qualidade dos habitats dos golfinhos de rio¹⁵².

Antes de terminar esta crónica sobre o boto cor-de-rosa, fica a curiosidade de que existe uma lenda sobre ele, a qual reza que ele sai do rio e transforma-se num jovem elegante e belo, bom dançarino, muito bem vestido, todo de branco. Usa sempre um chapéu para ocultar um orifício no alto da cabeça, feito para o boto respirar. A tradição amazónica diz que o boto carrega uma espada presa ao cinto, mas que, no fim da madrugada, quando é chegada a hora de ele voltar ao leito do rio, é possível observar que todos os seus acessórios são, na verdade, outros habitantes do rio. A espada é um poraquê (peixe-elétrico), o chapéu é uma raia e, finalmente, o cinto e os sapatos são outros dois diferentes tipos de peixes. Este desconhecido e atraente rapaz conquista com facilidade a mais bela e desacompanhada jovem que cruzar o seu caminho e, em seguida, depois de dançar com ela toda a noite, a seduz e a guia até ao fundo do rio, onde a engravida e a abandona. Por isso, as jovens eram alertadas para terem cuidado com os galanteios de homens muito bonitos durante as festas, tudo para evitar serem seduzidas pelo infalível boto. Assim sendo, na região norte do Brasil, quando as pessoas desejam justificar a geração de um filho fora do casamento, ou um filho do qual não se conhece o pai, é comum ouvir que a criança é filha do boto¹⁵³.

Fica a nota ainda de que neste centro que visitámos hoje, os botos não estão presos. Eles vão e vêm sempre que querem. Estão livres.


¹⁵¹ Garcia, José (s.d.) “Boto cor-de-rosa”. InfoEscola. Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://www.infoescola.com/mamiferos/boto-cor-de-rosa/>.

¹⁵² Araújo, Claryana (2010) “Distribuição e Estimativas Populacionais do Boto no Médio Rio Araguaia”. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazónia. Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://tede.inpa.gov.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=553>.

¹⁵³ Pacievitch, Thais “A Lenda do Boto”. InfoEscola. Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://www.infoescola.com/folclore/a-lenda-do-boto/>.

117 - Visita à Fundação Almerinda Malaquias

Passeamos agora por Novo Airão, a cidade principal da área onde nos encontramos. Visitamos a Fundação Almerinda Malaquias, uma organização não-governamental brasileira, sem fins lucrativos, políticos ou religiosos, que visa, entre outras coisas, promover a formação profissional, preservar o meio ambiente, promover e desenvolver a venda de produtos acabados no mercado local, nacional e internacional, prestar assistência educacional gratuitamente a menores e adolescentes carentes, bem como prestar assistência de saúde gratuitamente para pessoas necessitadas. O seu website indica: “Nós julgamos que cada ser humano tem o direito de aproveitar, ter a disponibilidade de usufruir da tecnologia que o ser humano conseguiu desenvolver através dos anos. Mas nós entendemos também que cada ser humano tem o direito de recusar o desenvolvimento tecnológico para manter a sua cultura intacta. Nestas últimas décadas, uma revolução geral disseminou-se nos lugares mais remotos da grande floresta, transformando a maior parte das populações em sociedade sempre mais consumidora. A imagem bucólica da comunidade autónoma na beira do igarapé já faz parte do passado. Conscientes destas mudanças, estamos aqui na Amazónia para ajudar a população a enfrentar o mundo atual”.

A Fundação tem o nome da índia Almerinda, mãe de um dos fundadores, e Malaquias, o pai, que juntos lutaram para dar aos filhos uma boa educação e o amor pela terra amazónica¹⁵⁴.


¹⁵⁴ Fundação Almerinda Malaquias (s.d.) “Quem somos”. Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://www.fam-na-am.com.br/paginas_br/quem_somos.php>.

118 - Artesanato Local

Nas oficinas da Fundação Almerinda Malaquias transformam-se os resíduos de madeira em pequenas peças de artesanato. Os resíduos de madeira são provenientes de estaleiros navais, madeira caída naturalmente, resíduos abandonados pelos madeireiros, às vezes doações de proprietários ou do IBAMA (sobre o IBAMA, ver crónica 67). Hoje, o programa formou mais de 200 artesãos profissionais¹⁵⁴.

Visitámos depois a loja dos Waimiri Atroari, uma etnia de índios com aldeias inteiras dizimadas durante o colonialismo. As suas terras eram pródigas em produtos de grande importância comercial para a época, atraindo, assim, a cobiça de colonizadores pioneiros. Já no século XX, continuaram a existir conflitos, nomeadamente para construção de estradas, instalação de empresas mineradoras ou alagamento dos seus territórios por barragens hidroelétricas. Só mais recentemente, na década de 1980, foi finalmente demarcada uma área territorial para os Waimiri Atroari, com financiamento das Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A., com 2,5 milhões de hectares, e posteriormente, em 1988, foi implantado do Programa Waimiri Atroari, com ações múltiplas nas áreas de administração, saúde, educação, meio ambiente, apoio à produção, documentação e memória. O objetivo é que os Waimiri Atroari possam preservar dinamicamente a sua autonomia cultural através da inserção social – o que, infelizmente, não ocorre com a maioria dos povos indígenas no Brasil.

Decorridos mais de vinte anos de execução do programa, os Waimiri Atroari desfrutam hoje de melhores condições de vida, tanto se comparados com as demais etnias existentes no Brasil. Toda a comunidade indígena desfruta de atendimento médico que lhe assegura uma cobertura vacinal de cem por cento; de serviço de vigilância epidemiológica ao redor de toda a sua terra; de controle de doenças preveníveis – como malária, infeções respiratórias, diarreias, verminoses e dermatoses. Estes procedimentos propiciaram uma significativa diminuição do seu índice de mortalidade¹⁵⁵. Os Waimiri Atroari têm acesso a educação escolar diferenciada, onde eles mesmos pensam e conduzem o processo de escolarização¹⁵⁶. A demografia dos Waimiri Atroari, que, em 1987 era de 374 pessoas, em 2007 já ia em 1232. O número de aldeias aumentou para dezanove. Em nenhuma delas há registo de casos de alcoolismo nem de outras mazelas causadas por desajustes sociais. O custo de manutenção de todo este quadro de saúde é de apenas 471,28 dólares per capita, ao ano¹⁵⁵.


¹⁵⁴ Fundação Almerinda Malaquias (s.d.) “Quem somos”. Página consultada a 6 de novembro de 2013,
<http://www.fam-na-am.com.br/paginas_br/quem_somos.php>.

¹⁵⁵ Wikipedia (s.d.) “Uaimiris-atroaris”. Página consultada a 7 de novembro de 2013,
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Uaimiris-atroaris>.

¹⁵⁶ Do Vale, Maria Carmen (2002) “Os atuais Waimiri Atroari” Povos Indígenas no Brasil, Instituto Socioambiental (ISA). Página consultada a 7 de novembro de 2013,
<http://pib.socioambiental.org/pt/povo/waimiri-atroari/702>.

119 - Novo Airão

Atenção que a água não está suja. Estamos no rio Negro, a água é naturalmente desta cor.

Regressamos ao hotel e eu começo a perder o medo de banhar-me nas suas águas cor de tijolo. Anacondas, jacarés e piranhas, aqui estou eu.

Curiosamente descobrimos depois, após regressar a Lisboa, e através de um rapaz amazonense – mais precisamente do Estado da Rondónia –  o qual vive há seis anos em Portugal, enquanto nos instalava em casa uns móveis que comprámos (ele não fazia ideia que nós tínhamos estado poucos meses antes na Amazónia, calhou em conversa ele dizer que era amazonense, e claro que lhe dissemos depois que tínhamos lá estado), contou-nos que existe um animal ainda mais temido do que estes: um peixe chamado Candiru. Contou-nos que é um peixe minúsculo, com a forma de uma enguia, e que deteta a presença de alguém através da urina, sobretudo, penetrando então na uretra do homem e alojando-se ali dentro, sem possibilidade de sair, dado que abre as nadadeiras, as quais têm a forma de um chapéu de chuva. Não consegue recuar, e muito certamente não o deseja sequer, pois passa a viver dentro do corpo como um parasita, alimentando-se do sangue e do tecido do hospedeiro. Das duas uma: ou se é operado para extrair o bicho, ou morre-se. Contou-nos também que foi encontrado uma vez um cadáver de um homem, afogado, cujo ventre tinha pequenos orifícios e se mexia. Havia movimento dentro da barriga. Constatou-se que se tratava do peixe candiru – vários – que estavam alojados no cadáver, alimentando-se dele. Procurando na internet informação sobre este peixinho tão agradável que se mete pelos orifícios das pessoas (não só a uretra do homem, mas também na mulher, e também no ânus), descobre-se muita informação sobre ele, de facto, e é mesmo um dos animais mais temidos na região. Se bem que o candiru exista apenas no Rio Amazonas e no Rio Madeira, não se dá bem com as águas ácidas do rio Negro. Mas também será uma questão de manter todos os orifícios bem tapados, diria, não?…

120 - Os Macacos Andam Aí

Hora de almoço. Hora de perdição.
Desta vez experimentámos o peixe chamado Matrinxã, o qual vimos na crónica 60 na caixa com gelo. É bom, mas tem muitas espinhas. Este peixe, cujo nome científico é Brycon Amazonicus, existe no rio Amazonas e seus tributários. Vai até aos 46 centímetros de comprimento e alimenta-se de plantas, moluscos, insetos e outros peixes¹⁵⁷. O matrinxã tem alta agressividade face aos outros da mesma espécie, bem como territorialidade. Este comportamento agressivo tem início na fase larval, sendo que entre 30 e 36h após eclosão as larvas já apresentam canibalismo intenso¹⁵⁸.

Dado que as legendas quase não se vêem:  à esquerda temos o lagarto recheado com calabresa (“lagarto” no Brasil corresponde ao “pojadouro” em Portugal), e à direita batata assada com creme de tucumã. Provei tudo, claro. Delicioso, como sempre. A mousse de tapioca parecia arroz doce, uma delícia também. A cocada de castanha do Brasil já conhecíamos. Tudo uma tentação…

Matrinxã
Fonte: Fishbase, Picture by M. Landines

Subimos depois à torre de observação do hotel para observar os esquivos macacos. Estes já os conhecemos, são os macacos de cheiro. Não deram conta no início que estávamos ali, calados, agachados, escondidos atrás das traves de madeira, mas em breve detetaram o nosso odor, com certeza, e talvez os nossos movimentos, pelo que este pôs-se a espreitar atentamente a ver quem estava ali.

O macaco está ao centro.


¹⁵⁷ Froese, Rainer e Bailly, Nicolas (s.d.) “Brycon amazonicus”. Fishbase. Página consultada a 14 de novembro de 2013,
<http://www.fishbase.org/summary/52992>

¹⁵⁸ Wolkers, Carla (2010) “Controlo Neuroendócrino do Comportamento Agressivo de Juvenis de Matrinxã (Brycon amazonicus)”. Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação em Aquicultura, do Centro de Aquicultura da UNESP – Universidade Estadual de São Paulo” Página consultada a 14 de novembro de 2013,
<http://www.caunesp.unesp.br/publicacoes/dissertacoes_teses/dissertacoes/Dissertacao%20Carla%20Patricia%20Bejo%20Wolkers.pdf>

121 - Visita à Comunidade Tiririca

Desta vez somos acompanhados pelo guia Xico, que nos explica que esta comunidade – o nome dado às aldeias aqui na Amazónia – tem cerca de quinze famílias e quarenta pessoas. O website “Informações do Brasil” diz que tem o dobro das pessoas¹⁵⁹. Bom, não sabemos. A comunidade tem uma escola para os primeiros anos, e nos anos letivos seguintes vem um barco buscar as crianças para Novo Airão. Às 17h, contou-nos, são trazidas de volta. Contou-nos ainda que aqui se fabricam espetos de churrasco, os quais são vendidos na quantidade de mil por cinco reais (cerca de 1,80 euros ao câmbio que usamos nesta altura). Mil espetos de madeira – daqueles que fazemos espetadas – por 1,80€…

As crianças estão a comer coco.


¹⁵⁹ Informações do Brasil (s.d.) “Comunidade Tiririca, Novo Airão “ Página consultada a 14 de novembro de 2013,
<http://informacoesdobrasil.com.br/rua/am/novo-airao/comunidade-tiririca+231>.

122 - Comunidade Tiririca II

Vimos muito poucas pessoas, estariam a trabalhar, com certeza. Além das crianças e de uma velhota (devia tê-la fotografado, mas deu-me um ataque de timidez e não tive tempo para reação…) vimos uns três homens a jogar snooker numa mesa que se encontrava debaixo de um telheiro.

Esta foto foi tirada à socapa (deixaram a janela aberta…)

Fruto vermelho que já vimos ao entrar na floresta do Tapajós (crónica 75): o urucum, usado pelos índios para se pintarem.

Este papagaio imita gargalhadas, mas sempre sem parar, quase que nos ensurdece. Só parou estes segundos enquanto eu lhe dava a bolacha.

Chegados ao hotel tínhamos uns maravilhosos queques de chocolate com o interior de coco, à nossa espera para o lanche, bem como um jarro com sumo de cajú. E maçãs também. Acho que aqueles queques de chocolate e coco foram os melhores queques que alguma vez comi. Não cheguei a fotografar. Esta noite vou espreitar para dentro da cozinha e vou fotografar as cozinheiras – nomeadamente a doceira responsável por estas perdições.

123 - As Cozinheiras do Anavilhanas

Esta noite temos pescada, lombos de frango, bolo gelado de coco e mousse de maracujá. Neste hotel faz-se uma terapia de relaxamento e de comida, está visto. Na vê-se a doceira, que se chama Maria, e na foto abaixo vêem-se as cozinheiras de todos estes pitéus. Cortei-lhes os pés com a pressa, eu com a cabeça metida na pequena janela que deixa ver a cozinha. Esta fica junto às nossas mesas, pelo que foi fácil eu aproximar-me, meter a cabeça, e perguntar sobretudo pela doceira, já que os doces são a minha perdição. A Maria não queria vir, estava envergonhada.

Pulseira que comprei na Comunidade Tiririca, feita de sementes que crescem na região (não fiquei com o nome…). Tive a infeliz ideia de mergulhar na piscina do hotel, em Manaus, com ela posta. Ora as sementes incharam, a ponto se eu nem conseguir tirar a pulseira. E depois quando secaram, a casca das sementes caiu. Que pena, lá se foi a pulseira.

124 - O Nascer do Sol na Amazónia

Ver nascer o sol causa sempre deslumbramento, seja onde for. Na Amazónia então é de tirar o fôlego. Às cinco da manhã foram bater-nos à porta do quarto, para terem a certeza que acordávamos. Tínhamos confirmado na véspera que queríamos ir. Cinco da manhã, noite cerrada. Partimos de barco com outros dois hóspedes do hotel, vindos de São Paulo, e navegámos até ao Lago da Raia, pertencente ao arquipélago de Anavilhanas. Os botos apareceram e fizeram-nos companhia.
Respira-se tranquilidade.

125 - Cinco Araras

Que espetáculo estonteante, respirar este ar puro – respirar este silêncio também – ver o sol brilhar cada vez mais, e ver cinco lindas araras levantar voo em cima da nossa cabeça. Disse-nos o guia que cada arara destas pode ser vendida por dez mil dólares. Vão cinquenta mil dólares a voar. De facto encontro informação na internet que uma arara pode chegar aos trinta mil dólares, nunca imaginei. Coitado do bicho, quanto mais vale, pior é para ele. Voem, voem, desapareçam, escondam-se no meio da floresta, ararazinhas.
Vimos ainda um gavião no topo de uma árvore, e ouvimos um tucano, disse-nos o guia, mas não conseguimos avistá-lo.

Pão de Açaí. Ainda faltava esta, experimentar pão de açaí. Quentinho com manteiga foi uma delícia (para não variar…)

Suco de abacaxi; suco de açaí; e suco de caju.

126 – Canoagem

São oito da manhã e partimos agora para um passeio de canoa. Já parece meio-dia, hoje as aventuras começaram bem cedo. Este é um dos momentos que gostámos mais nesta nossa viagem à Amazónia: a possibilidade de governarmos sozinhos uma canoa, pelo meio de um igapó. Quando as águas baixarem completamente, lá para Setembro, se estivéssemos aqui, com os pés no chão, olharíamos para o topo das árvores e diríamos: remámos ali em cima. Nós estamos a remar na copa das árvores.

127 – A Remar Sozinhos num Igapó

Recordo o significado de “igapó”: são florestas inundadas, cuja vegetação está adaptada a terrenos alagadiços. As árvores estão vivas e bem de saúde, apesar de apenas ver-se parte da sua copa. Metade do ano as florestas estão alagadas, na outra metade estão a descoberto. É típico da Amazónia. O igapó é caracterizado por apresentar solo encharcado e muito ácido com abundância de matéria orgânica em decomposição.

Desta vez acompanharam-se dois casais, um com vintes e tais anos, de Madrid, outro com cerca de sessenta, do Rio de Janeiro. E ambos uma nulidade autêntica a remar. Resultado: em lugar de seguirem o guia, que ia à frente, iam contra as árvores. Remavam para todo o lado, menos para onde deviam, e o guia teve de voltar atrás várias vezes para desembaraçá-los dos ramos das árvores. Ficavam presos nos ramos das árvores, é verdade. É uma situação interessante: remar uma canoa e ficar preso na copa das árvores. Não é para todos, temos de concordar. Parece um filme do género “fantástico”, navegar no ar. Foi outra situação caricata que vivemos, e nesta foto vê-se o Filipe a rir com tudo isto. Eu a ficar cada vez mais impaciente, desejando de navegar por ali afora sem parar, nós dois perfeitamente coordenados com os remos; e os outros dois casais cada qual a remar para seu lado e a irem de encontro a tudo, nos canais estreitos do igapó. Daqui a pouco chocam com um ninho de formigas Tachi e já vão ver se remam ou não… O Filipe ria à gargalhada. Quando vimos então o casal mais velho a ir em sentido contrário, foi o fim da picada. O caminho é para aqui, amigos. Não conseguem virar. Ela rema para um lado, ele para outro.

Curiosamente este casal mais velho depois disse que nós somos portugueses, que temos sangue de navegadores, e que até aqui se manifesta. É verdade, a gente nasceu para isto. Nuestros hermanos é que se espalharam, pois eles também foram grandes navegadores. Já perderam os genes.

128 - Arco e Flecha

Regressados ao hotel, o restolhar dos macacos por cima das nossas cabeças é bem audível. É um bando enorme, anda por aqui a apanhar os frutos das árvores. Extremamente difíceis de fotografar, pois são pequenos e escondem-se no meio da folhagem.

Divertimo-nos agora a praticar arco e flecha – não a acertar nos macacos, credo, mas nos alvos colocados especificamente para os hóspedes do hotel se entreterem.

Escabeche de tucunaré e galinha ao tucupi. (Vale a pena eu voltar a dizer “comida maravilhosa”, ou já não é preciso, já estão todos convencidos?…)

129 - Um Cessna 209 vem buscar-nos

Chegou a hora de abalarmos do Anavilhanas. É hora agora de regressarmos a Manaus, onde ainda nos esperam algumas atividades. A viagem aproxima-se do fim, porém uma das maiores aventuras ainda me espera, a mim particularmente: subir uma árvore gigante. Em breve.

Para já temos duas hipóteses: ou fazemos a viagem de regresso na carrinha do Anavilhanas, novamente – e são três secantes horas de viagem, lentas, que até ficamos a ver estrelas, ou contratamos um avião para vir buscar-nos e a viagem é feita em trinta e cinco minutos. Em menos de uma hora estaremos a apanhar banhos de sol na piscina do hotel Tropical em Manaus. O avião pára mesmo no porto privado do hotel. Confesso que eu não estava para aí virada dado que seria uma despesa extra, não prevista, e considerável. Mas o Filipe quer andar num Cessna 209. Bom, eu também nunca andei num avião tão pequeno, e ainda por cima sobre a espetacular paisagem da Amazónia. Ainda tentámos dividir o avião com o outro casal do Rio de Janeiro, o mais velho, que parte no mesmo dia que nós (teria de ser um avião de quatro lugares, então) mas eles não quiseram.
Ok, vamos nós então num de dois lugares.

130 - Vamos Levantar Voo

É uma experiência interessante, andar num mosquito destes, com as bagagens atrás das costas. (Isto pode connosco e com as bagagens?…)

O piloto é extremamente simpático, divertido com a nossa própria excitação de andar num aviãozito tão pequeno. Chama-se Jaí e contou-nos que tem duas filhas, uma com quinze anos, outra com treze. A mais velha quer ser piloto como o pai, já a de treze anos é mais dada às artes, compõe música e toca piano.

O Filipe vai atrás, sentado ao meu lado – nós três a conversarmos através dos auscultadores – mas o piloto Jaí perguntou se algum de nós queria passar para a frente, e o Filipe aceitou (em pleno voo andou pendurado nos bancos). Na próxima crónica veremos o Filipe a pilotar o avião. Eu quero subir às árvores gigantes (em breve…), o Filipe quer pilotar aviões.

131 - A Magnífica Paisagem Amazónica

O piloto Jaí ri-se, divertido, e pôs as mãos no ar, deixando o Filipe a pilotar o avião, para grande alegria deste. Este voo fez-me lembrar o filme África Minha, com o Robert Redford e a Meryl Streep, e cuja imagem icónica são eles precisamente a voar – sobre África – num aviãozinho pequeno. Agora somos nós, mas desta vez sobre as aquáticas paisagens amazónicas. Valeu mesmo a pena, foi um ponto forte desta viagem.

132 - Em Manaus - Tarde de Lazer no Hotel

Às três da tarde estávamos na piscina, e às seis nada melhor do que fazer uma massagem relaxante no hotel, de uma hora cada um de nós. O Filipe num gabinete, eu noutro.
Íamos morrendo, todavia, estamos todos entorpecidos. As massagistas sabiam o que faziam, mas eu ainda estive prestes a soltar um grito, algumas vezes, com a dor provocada pela massagem. Porém saímos de lá frescos que nem uma alface (ou duas alfaces…) sem qualquer tipo de dor, e muitíssimo mais relaxados.

133 – Pássaros... e Manifs no Brasil

O nosso amigo Bem-Te-Vi (tivemos um encontro imediato de terceiro grau com ele, na crónica 52, onde metade do meu bolo desapareceu) e mais outra espécie que não sei qual é. Estamos na piscina do hotel; o Filipe entretém-se com o seu ebook, eu dou migalhas de bolachas aos pássaros e fotografo-os. Ao jantar, dentro do hotel, vimos na televisão os conturbados acontecimentos que ocorrem então no Brasil. As imagens deixaram-nos boquiabertos. Manifestações gigantescas no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e outras cidades, por vezes repletas de violência. Faz-se história no Brasil e é importante referir o contexto em que nos encontramos, nesta viagem de 2013.

Reza assim o jornal Expresso:

“Os cariocas não gostam de dias nublados, mas na quinta-feira, quando uma frente fria entrava no Rio de Janeiro e cobria de nuvens a estátua do Redentor, 300 mil pessoas manifestaram-se na avenida Presidente Vargas. Traziam exigências múltiplas, mais alegria do que queixumes, e a suspeita de que algo pode mudar ainda que não saibam bem o quê. O detonador dos protestos é, porém, bastante concreto: o aumento dos bilhetes de autocarro, do qual 11 cidades já desistiram.

Julia Michaels, jornalista americana com décadas de Rio e dedicada aos assuntos da cidade, encontrou-se com o filho na Praça Tiradentes, antes da manifestação, certa da singularidade do momento: “É o fio que está descosendo o tecido. É uma wake up call. Eles querem um Brasil moderno. São eloquentes, bem equipados, informados”.

Gabriel, o filho de 23 anos, chegou atrasado e pronto a fotografar o evento. Ele é o Brasil moderno referido pela mãe: “Sou designer, trabalho numa start up, já tinha saído à rua quando foi para aprovar a “Ficha Limpa” [lei que impede a eleição de políticos com mandatos revogados ou condenados em tribunal]”. Moderno significa mais envolvido, exigente e pouco convencido pela narrativa de êxito do Brasil dos megaeventos internacionais.

A grande maioria dos manifestantes era jovem, incluindo alunos de liceu e faculdade. Com as cores da bandeira pintadas na cara, manipulavam smartphones e levantavam cartazes: “Somos os filhos da revolução, o futuro da nação”; “Evolução da consciência”; “Não se acomode com o que incomoda”.

O facebook é quase monotemático no Brasil – só se fala dos protestos – e permitiu a participação maciça na manifestação. Mas lá estavam os apelos escritos nos braços e ecoados nos gritos: “Vem pra rua!” Uma rapariga erguia uma cartolina: “Larga o Candy Crush [jogo do Facebook] e vem pra rua”. Julia Michaels contou que, ao recordar à responsável por uma plataforma de ativismo político na internet, de 24 anos, o estado do país há duas décadas, e o muito que mudou, frisando que nem tudo funciona com a velocidade de um download, ela respondeu: “Isso não me interessa. Estou aqui, agora, e quero mudanças agora”.

Na manifestação, Ricardo Mendonça, 21 anos, estudante de enfermagem, disse que viaja espremido no autocarro para a faculdade e que faltam medicamentos nos centros de saúde. Anderson Soares, estudante de História de 27 anos, garantia que os abusos de poder e a corrupção depredam o país e pedia “mais transparência nos gastos públicos”. Kyomara, 19 anos, relatou a sua epopeia entre hospitais até lhe darem um medicamento errado. As queixas variam mas a aflição com o status quo parece a mesma.

Os mais cínicos dizem que o Brasil é o país do futuro… e será sempre. Os manifestantes discordam, mas não acreditam no Brasil da Copa do Mundo para inglês ver. O fulgor económico dos últimos anos já não esconde os problemas antigos nem a ideia, expressa num cartaz, de que os políticos continuam a “sambar na cara do povo”.

Julia acredita que a dormência acabou: “Ninguém esperava isto, sempre houve a ideia de que nada muda. Eles quebraram o paradigma. Já mudaram o preço da passagem. Isso dá força para quererem mais”. De volta casa, leu no telefone um post da filha, que vive em Nova Iorque: “Dói não poder estar no Brasil e lutar pelo meu país.” Orgulhosa, clicou no like.” ¹⁶⁰

“Alguns autarcas já baixaram o preço dos bilhetes – casos de São Paulo e Rio de Janeiro – , mas o motivo de fundo da mobilização ia mais além.” (…) “o anúncio de aumentos foi a gota de água para muita gente, farta da corrupção generalizada, da alta criminalidade, de maus transportes ou do baixo investimento na saúde e na educação. A dureza da repressão policial inicial só gerou mais indignação.
O povo brasileiro sabe que é dos que mais impostos pagam e menos retorno obtêm. Exige serviços públicos coerentes com a pressão tributária. O Brasil está dividido entre cidadãos médios asfixiados por impostos e uma enorme porção da população sustentada por programas sociais.
O brasileiro médio sente-se enganado. Apoiou a luta contra a pobreza e foi solidário mas, por muito dinheiro que se envie para lugares com menos recursos, parece que nunca é suficiente, devido à corrupção. A política do PT criou uma bolha de cidadãos pouco interessados noutra coisa que não o subsídio.

A classe média torna-se média-baixa e pobre. A juventude, que enfrenta duros obstáculos para aceder ao ensino superior, vê-se sem futuro. E os idosos, depois de pagarem impostos durante décadas, vêem-se obrigados a recorrer a serviços de saúde privados, pagos, devido à fraquíssima qualidade dos terríveis centros de saúde estatais. Foi isto que fez o povo sair à rua.

Os brasileiros circulam por estradas cheias de buracos, com materiais de terceira categoria e portagens de primeira. Sabem que imperam as “luvas”. Escondem-se em casas de muros altos e cercas elétricas para se sentirem protegidos. Desconfiam da polícia, corrupta, e dos políticos que a ignoram. A corrupção alastrou e impregnou a pele do cidadão…)” ¹⁶¹.

“A loucura dos estádios

O Brasil gosta mais de futebol do que das estatísticas, sobretudo quando estas revelam coisas que apetece ocultar. Há emprego, mas prefere-se o trabalhador estrangeiro ou o típico trabalho mal pago ao balcão das lojas, com dezenas de empregados à caça de comissões.
Há ensino universitário, mas sem vagas suficientes. Há transportes públicos, mas escassos e a abarrotar. O avião não é barato, num país quase do tamanho da Europa, porque não há concorrência. Até a gasolina, num país produtor de petróleo, custa tanto como naqueles onde se importam combustíveis. Como se diz aqui, no Brasil produz-se muito, mas o melhor é exportado, ficando para consumo interno duas coisas: o que não tem saída lá fora e os impostos.
Os gastos com o Mundial de Futebol e com o Jogos Olímpicos, com as obras quatro vezes mais caras do que o orçamentado e nas quais será preciso investir mais dentro de meses – devido ao uso de materiais de baixa qualidade e mão de obra pouco qualificada – , foram outro dos rastilhos da revolta.(…)” ¹⁶¹


¹⁶⁰ Gonçalves, Hugo (2013) “Trezentos mil rejeitam políticos que “sambam na cara do povo”. Primeiro Caderno do Jornal Expresso , 22 de Junho, pp. 25.

¹⁶¹ Sendra, David (2013) “Classe média desespera por mudanças”. Primeiro Caderno do Jornal Expresso , 22 de Junho, pp. 24

134 - Não Podemos Escalar esta Árvore

Hoje espera-me um grande dia: vou escalar uma árvore da Amazónia. Digo que me espera a mim um grande dia porque o Filipe não é amigo destas andanças e não estava por aí além entusiasmado. Ele gosta mais de pilotar aviões, nestas coisas de alturas.
Veio uma empresa especializada em escaladas de árvores buscar-nos ao hotel e partimos em lancha rápida pelo rio Negro em direção ao Tupé, onde existe a Comunidade Tucana, constituída por índios com três etnias, segundo nos contou o Ederson, da empresa de escaladas. Aqui assistiremos a uma sessão de danças e música, também.

Árvore Amapazeiro, que supostamente nós íamos subir.

É uma árvore muito importante na Amazónia; possui um tronco volumoso, chega a atingir cerca de um metro de diâmetro na base, e tem casca espessa. Do tronco do Amapazeiro é retirado o látex de amapá, ou leite de amapá, como é localmente conhecido, muito rico em nutrientes e usado para fins medicinais. Existem várias espécies de Amapazeiros, uns que possuiem o leite mais amargo e outros com o gosto mais suave. A sabedoria popular dos nativos da floresta mostra que este líquido pode ser usado como remédio para várias doenças. É cicatrizante, fortificante, expectorante. Combate até tuberculose e outras doenças respiratórias. O leite do Amapá pode também ser usado para fazer mingau para as crianças¹⁶².

O látex do amapá amargoso é um dos produtos florestais mais importantes no mercado de Belém, mas um desconhecido oficialmente. O amapá amargoso é uma espécie arbórea que ocorre na Amazónia brasileira, nas Guianas, no Suriname e na Venezuela. Árvores adultas da espécie atingem 20 metros de altura (raramente, 35 metros). Além do látex branco utilizado como substância medicinal, a espécie produz também madeira de qualidade.

Num estudo efetuado, revelou-se que os órgãos oficiais responsáveis pela gestão do setor florestal não têm estatísticas sobre o mercado dos produtos florestais não madeireiros para a ampla maioria das espécies negociadas, no entanto há centenas de espécies vegetais vendidas para diversos fins, em feiras, ervanárias, supermercados, farmácias, e nas ruas da cidade. Os destinos principais dos produtos são o mercado de Ver-o-Peso e as ervanárias. Entrevistas realizadas em ambos os locais revelaram que a grande maioria dos consumidores (74%) utiliza o látex do amapá para tratar doenças relacionadas com as vias respiratórias. Os dados sobre o volume deste látex comercializado nos anos 2005, 2007 e 2009 revelam que o mercado para o produto na região de Belém é superior a 8.000 litros por ano. Apesar do produto ser consumido também por pessoas de classe média alta, é notório que o nicho de mercado é a classe de baixa renda e pouca escolaridade, que, em geral, vive nos bairros da periferia da cidade e optam pelo produto por representar uma alternativa de baixo custo para cuidar de sua saúde¹⁶³.

Bom, e afinal não podemos escalar este amapazeiro porque caiu uma árvore ao seu lado. O nosso instrutor Ederson explicou-nos que teria de fazer um relatório para a entidade oficial que supervisiona as florestas a relatar o sucedido. Tudo é observado por satélite, e são feitas inspeções periódicas à atividades destas empresas de ecoturismo e  escaladas. Enfim, tudo isto é novo para nós, ficámos surpreendidos com a situação e com tão grande controlo, mas eles é que mandam. Não podemos escalar este amapazeiro. Vamos então procurar outra árvore.


¹⁶² Portal Achei Macapá (2013) “Amapazeiro”. Página consultada a 24 de Novembro de 2013,
<http://www.acheimacapa.com.br/todo-amapa/8/amapazeiro>.

¹⁶³ Silva, Murilo et al. “Látex de amapá (Parahancornia fasciculata (Poir) Benoist, Apocynaceae): remédio e renda na floresta e na cidade”. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum. [online]. 2011, vol.6, n.2, pp. 287-305. ISSN 1981-8122. Página consultada a 24 de Novembro de 2013,
<http://www.acheimacapa.com.br/todo-amapa/8/amapazeiro>.

135 - Danças na Comunidade Tucana

Aqui visitámos a Comunidade Tucana, constituída por índios com três etnias, segundo nos contou o Ederson, da empresa de escaladas. São cerca de cinquenta famílias, duzentas pessoas. Trabalham no turismo, artesanato, trilhos; outros têm bolsas para estudar fora e vêm ao fim de semana a casa. Explicou-nos que 20% das bolsas amazonas é destinada aos índios, e os que não são puramente índios também têm direito. Quando chegámos, bem cedo, ao atracar a lancha avistámos a alguns metros algumas mulheres índias a tomar banho no rio. Pelo menos da cintura para cima encontravam-se nuas. Recolheram-se assim que chegámos.

Foi um dos raros contactos que tivemos com índios, nesta viagem à Amazónia, com grande pena nossa. Não é assim tão fácil ter um contacto “natural” com índios. Além de ser perigoso para a sua saúde, pois os brancos estrangeiros trazem doenças consigo, como uma simples gripe, que pode exterminar uma população inteira de índios. Algumas comunidades estão perfeitamente isoladas no interior da floresta. Esta comunidade, felizmente, como fonte de rendimento deixa-nos ver algumas das suas tradições. Estão abertos ao turismo, portanto. Estão às portas de Manaus, a maior cidade da Amazónia, e já estão mais habituados ao rodopio de pessoas.

136 - Nas Ruas de Manaus

Vamos então em busca de outra árvore para escalar. Não pode ser uma árvore qualquer, há equipamento próprio que leva o seu teu tempo a instalar, pelo que a empresa que nos acompanha – contratada ainda em Portugal, à agência de viagens que nos organizou este programa – leva-nos para outra árvore que se encontra razoavelmente longe, ainda, e que já tem esse equipamento instalado. Regressámos na lancha a Manaus, e dirigimo-nos agora de carro para a outra ponta da cidade, onde vamos subir a uma árvore chamada Samaúma. Eu entretenho-me a tirar fotos a tudo, da janela do carro. Contou-nos o Ederson que saiu uma lei que proíbe dar nomes a ruas de pessoas ainda vivas, pelo que mudaram os nomes de uma série de ruas no Brasil, inclusive a da sua casa. Isto gerou grande confusão, como é natural, e ele próprio, contou-nos, esquece-se frequentemente do novo nome da sua rua, e continua a usar o antigo.

137 - Escalada de uma Samaúma

Chegados ao local (bastante ermo, depois de quase meia hora a conduzir) eis que olhamos para cima, para ver o topo desta linda árvore chamada Samaúma. Diz a Wikipedia que “os indígenas da Amazónia consideram-na a “mãe-das-árvores”. É conhecida como “Árvore da Vida” ou a “escada do céu”. O seu diâmetro de porte belo e majestoso unido às sapopembas (raízes), muitas vezes formam verdadeiros compartimentos, transformados em habitações pelos indígenas. Ao sobrevoar a região amazónica, qualquer um, mesmo sem conhecer a árvore, é capaz de a identificar e captar a sua energia. A sua altura, porte e beleza destacam-se na imensidão da flora amazónica” ¹⁶⁴.

A espécie ocorre em toda a Bacia Amazónica, sendo também encontrada nas Filipinas, Tailândia, África equatorial, Índia e nas Américas Central e do Sul. É uma espécie estritamente tropical, suscetível ao frio e incapaz de produzir sementes em locais onde a temperatura noturna atinge 20ºC na época da floração. A samaúma pode atingir cinquenta metros de altura e dois metros de diâmetro. A pluma que envolve as suas sementes é denominada “kapok” e é muito empregada na indústria para confeção de bóias e salva-vidas, para enchimento de colchões e travesseiros e como isolante térmico. Das sementes extrai-se um óleo comestível que também pode ser utilizado para iluminação e fabrico de sabão e lubrificantes, sendo eficaz contra ferrugens. Da casca e das raízes obtém-se atividade moderada contra dois tipos de bactérias (Bacillus subtilis e Staphylococcus aureus) e dois fungos (Aspergillus niger e Candida albicans). A sumaúma também funciona como adstringente e diurético. O chá da casca é usado no tratamento da malária; a seiva é utilizada contra a conjuntivite. E as raízes expostas nas margens dos rios, quando cortadas, fornecem água potável de boa qualidade. A madeira da sumaúma, por ser leve e macia, pode ser utilizada na construção de embarcações, caixas, brinquedos e barris. É também uma das espécies mais utilizadas na produção de painéis compensados, na Amazónia Brasileira, apresentando alto valor comercial. Efetivamente, devido às propriedades da sua madeira, a samaúma foi bastante explorada ao longo dos anos para fabrico de laminados e compensados, ficando cada vez mais difícil encontrar indivíduos com tamanho necessário para exploração nas áreas próximas às indústrias madeireiras. A forte demanda é exclusivamente atendida por florestas primárias em áreas de várzea, por meio do extrativismo, o que pode, a curto prazo, ameaçar a espécie de extinção, em particular no Estado do Amazonas¹⁶⁵.

Sementes da Samaúma
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¹⁶⁴ Wikipedia (s.d.) “Mafumeira”. Página consultada a 24 de Novembro de 2013,
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Mafumeira>.

¹⁶⁵ Souza, Cintia et al. (2005) “Sumaúma (Ceiba pentandra (L.) Gaerth”. Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa.  Documentos  41. ISSN 1517-3135. Página consultada a 24 de Novembro de 2013,
<http://www.infoteca.cnptia.embrapa.br/bitstream/doc/678416/4/Doc41.pdf>.

138 - No Topo de uma Árvore Amazónica

Que sensação. Que alta sensação.
O Filipe não quis subir, nunca gostou destas andanças e após experimentar um pouco, decidiu mesmo que não queria subir. Disse que não tinha sangue de macaco para andar empoleirado nas árvores.
Eu, (que pelos vistos tenho sangue de macaca, há que agradecer o elogio ao Filipe), tratei de ir subindo rapidamente, obedecendo rigorosamente às instruções do instrutor Ederson. Esticar as pernas, alongar o cabo, encolher as pernas, e encurtar então o cabo com as mãos, em movimentos ritmados. É cansativo, apesar das roldanas para aliviar o esforço. Quando cheguei lá acima o instrutor perguntou-me se eu queria uma barra de chocolate ou beber água. Bebi água apenas, estou bem. Contou-me que a pessoa mais velha que subiu com ele foi uma senhora de 74 anos, a qual levou hora e meia. Nos homens foi um senhor com 80 anos, e o elemento mais novo foi uma criança com 7 anos. Eu levei trinta minutos. Levava a máquina fotográfica comigo numa bolsa à cintura, fornecida pela própria empresa. (Quando o instrutor me perguntou se eu queria levá-la, respondi-lhe que eu e a máquina fotográfica somos inseparáveis).

139 - Descida e Almoço Tardio

A operação da descida é mais delicada do que a da subida, sobretudo a parte em que temos de tirar os pés do tronco e deixar-nos cair, a baloiçar pendurados na corda. Nada que me desagrade, muito pelo contrário, atirei-me e fiquei a baloiçar, e ainda dei uns gritos a festejar a proeza. Sinto-me uma autêntica Tarzan pendurada na samaúma. Quando a corda começou a parar (e eu a parar de baloiçar) iniciámos então a descida, desta vez à força de braços e de uma peça com dentes, que prende a corda. O instrutor ensinou-me os nomes todos, mas esqueci-me deles.

Deixaram-nos depois no centro de Manaus, junto ao Teatro Amazonas, eram duas da tarde, e almoçámos numa pizzaria aí mesmo. O Filipe entreve-se com parte de um jogo de futebol que transmitiam na televisão, enquanto comia uma pizza – portuguesa! E o azeite em cima da mesa é português também (diz “Algés” – se bem me recordo era o importador).

140 - A Praia de Manaus

Hoje é o nosso último dia de viagem. Amanhã de manhã temos o voo de regresso a Lisboa. Aproveitamos estes últimos momentos para conhecer a praia de Manaus, junto ao hotel, onde o taxista nos deixou. Eu levava o biquíni na mochila e por um real troquei de roupa nos balneários que se vêem numa das fotos abaixo.

Esta praia tem uma regra curiosíssima, e que nunca tinha visto em nenhuma outra parte do mundo: tem um horário de funcionamento. Nos dias úteis abre às nove da manhã, aos fins de semana e feriados abre às oito. E em ambos fecha às cinco da tarde. E atenção que são horários para cumprir. Na última foto abaixo, para nosso grande espanto, vêem-se dois guardas a dirigirem-se a um banhista que não saía da água, ao bater as dezassete horas. Teve de sair, todas as pessoas têm de abandonar a praia. O Filipe foi falar com um dos guardas para saber o motivo. Explicaram-lhe que já houve aqui incidentes com jacarés e pessoas embriagadas. Esta é boa. A malta vem para aqui bebida, ficando particularmente vulnerável a afogamentos e também a ataques de jacarés, que raramente aparecem por aqui, mas que de facto já apareceram, sobretudo à noite. Enfim, eu diria talvez que estamos numa zona chique de Manaus, de certeza que a população local quer sossego e nada de desacatos.

141 - Viagem de Regresso, Adeus Amazónia

Chegou a hora de abalar. Acordámos às quatro e um quarto da manhã, e foram buscar-nos às cinco, ao hotel, para apanharmos o voo das 6.50h para São Paulo. Esta é a parte difícil das viagens: o transporte ida e volta de uns países para os outros. Respiramos fundo, pacientemente: não há alternativa. Temos um voo de três horas e meia até São Paulo, e temos depois um voo para Lisboa às 17.10h. Viremos então no avião Bartolomeu de Gusmão, da TAP.

Hoje às 17 horas há uma manifestação em Manaus. O motorista que nos levou, um rapaz da agência de viagens local bastante simpático, ia-nos contando que havia receios da manifestação tornar-se violenta, mas que as pessoas diziam que se isso acontecesse sentar-se-iam no chão. Apenas ficariam de pé os violentos, imediatamente identificados assim. Explicou-nos o que já falámos na crónica 133, que a manifestação é contra a corrupção e contra o aumento das tarifas dos ónibus, como eles chamam aos autocarros, e ainda contra a lei que impede a investigação dos políticos. A vinda da Copa está a despoletar protestos, acrescentou, há muito dinheiro gasto em estádios. Em Manaus, por exemplo, só reformaram o aeroporto e construíram um novo estádio. Foram prometidas infraestruturas como hospitais, mas nada foi feito.

Claro que as escolas e o comércio fecham à tarde, preparando-se para o que aí vem. Houve a participação de cerca de sessenta mil pessoas, e de facto nem tudo correu bem, como se pode ler nas notícias: “Cinco policiais ficaram feridos durante o confronto com vândalos que atearam fogo em um ônibus na Avenida Brasil, em frente à Prefeitura de Manaus. No confronto, policiais usaram balas de borracha e bombas de gás lacrimogéneo para dispersar os manifestantes, o que fez muitas pessoas passarem mal. Algumas até desmaiaram por conta da dificuldade em respirar. De acordo com o chefe do Comando de Policiamento Especializado, “Temos a certeza de que as pessoas que praticaram esses atos de vandalismo não eram manifestantes, eram criminosos tentando se aproveitar do movimento”, afirmou ele. O professor David Quintelo, do Instituto Federal do Amazonas, foi atingido por uma bala de borracha nas costas e lamentou a ação policial. “Eles deveriam ter identificado quem estava atirando as pedras, e não disparar aleatoriamente”, afirmou o professor.¹⁶⁶

Ainda de acordo com ele, ninguém foi preso, nem pela destruição do ónibus. Cerca de 300 policiais atuaram na dispersão, sempre utilizando balas de borracha e bombas de gás lacrimogéneo. Os próprios moradores apagaram o fogo de barricadas, que eram feitas ao longo da Avenida Brasil e limpavam a frente das casas. “Quem estava dentro de casa, só conseguia ver as chamas e muitas explosões. Foi um cenário de guerra, nunca pensamos viver isso”, disse a dona de casa Marisa Lima”¹⁶⁷.


¹⁶⁶ Pereira, Camila (2013) “Confronto deixa cinco policiais feridos e manifestantes passam mal com gás lacrimogêneo”. D24AM. Notícias/Amazonas,  20 de Junho.  Página consultada a 24 de Novembro de 2013,
<http://www.d24am.com/noticias/amazonas/confronto-deixa-cinco-policiais-feridos-e-manifestantes-passam-mal-c de Junho.om-gas-lacrimogeneo/89337>.

¹⁶⁷ Pereira, Camila (2013) “Manifestantes incendeiam ônibus na Avenida Brasil, em frente à Prefeitura”. D24AM. Notícias/Amazonas,  20 de Junho.  Página consultada a 24 de Novembro de 2013,
<http://www.d24am.com/noticias/amazonas/manifestantes-incendeiam-onibus-na-avenida-brasil-em-frente-a-prefeitura/89316>.

142 – Epílogo

Durante cerca de uma semana, imediatamente após termos regressado, sonhei todos os dias com rios ziguezagueantes pelo meio das florestas. A sua imagem ficou marcada na mente: tanta água, tantas florestas verdes, numa vastidão extraordinária. A imagem dos rios serpenteando acompanhou-me durante algum tempo, até finalmente embrenhar-me na rotina do dia-a-dia lisboeta.

O que será feito desta imensidão perante os impulsos económicos, e perante a pressão demográfica. Florestas e animais, tantos milhares de animais à nossa mercê. O Brasil detém 26% da superfície de florestas tropicais do mundo¹⁶⁸ e a Amazónia em particular é a maior floresta preservada do planeta – com extensão de mais de 5 milhões de quilómetros quadrados, onde vivem cerca de 25% das espécies animais e vegetais da terra¹⁶⁹. Darwin, quando aqui chegou, em 1832, ao passar por uma série de maçadores passos no sentido de obter passaporte, escreveu no seu diário que a perspetiva de ver florestas selvagens ocupadas por belíssimos pássaros, macacos e preguiças, lagoas e capivaras, e jacarés – só essa perspetiva levava todo e qualquer naturalista a lamber o pó dos pés de um brasileiro¹⁷⁰.

Foi uma viagem linda e tranquila, sempre tendo presente a apreensão pelo futuro desta floresta líquida.


¹⁶⁸ Sousa, Prof. Agostinho e Ferreira Rinaldo (s.d.) “Estrutura e Dinâmica de uma Floresta Secundária de Transição, Rio Vermelho e Serra Azul de Minas, MG”. Departamento de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Viçosa. Página consultada a 24 de outubro de 2013
<ftp://www.ufv.br/def/disciplinas/ENF344/MANEJOFLORESTASNATIVAS/RinaldoCaraciolo/Apostila-Caraciolo.pdf>.

¹⁶⁹ Bentes, Rosineide (2005) “A intervenção do ambientalismo internacional na Amazônia”. Revista Estudos Avançados [online] vol.19, n.54, pp. 225-240. ISSN 0103-4014.Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Página consultada a 16 de setembro de 2013
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142005000200013&script=sci_arttext>.

¹⁷⁰ Darwin’s Beagle Diary (1831-1836), Rookmaaker, Kees ed. [English Heritage 88202366]. Darwin Online. Página consultada a 30 de novembro de 2013
<http://darwin-online.org.uk/content/frameset?viewtype=text&itemID=EHBeagleDiary&keywords=brazil&pageseq=800