027 – Matabicho e Partida para Lospalos
Começa hoje o oitavo dia da viagem. Às 5 e meia da manhã estou equipada e pronta para sair para um passeio de bicicleta. O pior é que a porta está fechada. Estou trancada na pousada, aparentemente. A senhora que vem cá cozinhar está noutro edifício em frente. O Valério está num terceiro edifício. E eu tenho os quartos do meu edifício todos só para mim. Sou a única hóspede. Efetivamente deram-me a escolher o quarto, à chegada: mostraram-me dois e disseram para eu escolher. E agora quero sair, noite cerrada, e a porta está fechada. Talvez consiga apanhar uma janela aberta, e escapulir-me por ela, o pior é a bicicleta.
Felizmente o Valério é tão madrugador como eu. Vi luz no seu edifício, e acabei por vê-lo a ele, à porta. Eu já na janela do meu quarto, no meio dos cortinados. A janela abre pouco, não consigo tirar a bicicleta por ali. Mas chamei o Valério, que veio explicar-me que tenho uma chave disponível numa porta do lado de trás da pousada. Quem diria. O Valério foi para o lado de trás do edifício, eu abri a porta com a chave que lá estava, na fechadura, e ajudou-me a sair com a bicicleta, nessa porta estreita. Adeus, vou dar um passeio por Tutuala. Vamos ver o que se passa por aqui, noite cerrada. Amanhece muito tarde, às seis e meia.
Agora é inverno e as crianças andam na escola. Têm férias em dezembro e janeiro. E hoje é sábado, mas têm escola.
O clima em Timor é sempre quente, todo o ano. Apenas varia a época das chuvas. Assim, entre Junho e Novembro é a época seca. Entre Dezembro e Maio é a época das chuvas. Claro que isto não é nenhuma regra, serve apenas para ficarmos com uma ideia.
Escola patrocinada (ou construída) pelo Rotary Club of Wagga Wagga, da Austrália. É o que diz nas letras pequenas ao lado do Rato Mickey.
De regresso à pousada. Não consegui tirar muitas fotos; a maior parte das que tirei ficaram desfocadas, porque a minha câmera não tem capacidade suficiente para fotos noturnas de qualidade. Tenho de ver se invisto numa nova. Mas já deu para ficarem com uma ideia, espero. Vi sair algumas motos com crianças que vão ser levadas à escola, ou pessoas que vão trabalhar. O rapaz sentado estava à espera de boleia, numa moto. Vi-o partir. Também vi uma rapariga dos seus 16 anos a fazer atletismo, equipada a rigor. Por esta é que eu não estava à espera. Uma atleta quase profissional, se é que não é profissional mesmo, a fazer atletismo, sozinha, às seis da manhã. E há muitos galos a cantar, um autêntico cantorio.
A belíssima paisagem da pousada de Tutuala. Recordo que esta zona pertence ao Parque Nacional Nino Konis Santana, já aqui apresentado na crónica 18. Citando a Wikipedia: “Para além do seu interesse natural, esta zona de Timor-Leste foi um dos baluartes do movimento de resistência e de luta pela independência do país, além de constituir um símbolo profundo mítico, cultural e histórico para o povo timorense. A região é habitada continuamente há mais de 40 000 anos, sendo muito rica do ponto de vista do património arqueológico, além de incluir locais evocativos da presença colonial portuguesa, e também do período da ocupação japonesa durante a II Guerra Mundial. As grutas de Ili-kere-kere, nas proximidades da praia de Tutuala, contêm pinturas rupestres, e nos depósitos calcários da gruta de Jerimalai foram encontrados restos arqueológicos com 42.000 anos de idade.¹ Nesta gruta foram encontrados um anzol, feito com uma concha, e restos de ossos que pertenceram a grandes peixes capturados, como o atum, revelando que os homens pré-históricos que viviam aqui possuíam habilidades marítimas avançadas, tal como a travessia do oceano até à Austrália, e consequente pesca de espécies que vivem longe da costa, nas profundezas do oceano².
Infelizmente não visitei estas grutas, nem sequer sei se estão acessíveis ao público. Pelo que vi na internet não são de fácil acesso. Deixo uma imagem retirada dum documento da Unesco, com uma das pinturas rupestres encontradas em Tutuala. Quem quiser mais informações sobre esta matéria, pode consultar mais detalhadamente o link da Unesco abaixo.
Transcrevendo o documento da Unesco, nas palavras de Cecília Assis, Diretora-Geral da Cultura em Timor-Leste:
“O Parque Nacional Nino Konis Santana, em Timor-Leste, é notável pelo seu património natural e cultural. O Parque é digno de nota pelo seu rico habitat ecológico, flora e fauna, biodiversidade marinha e pela particularidade da sua paisagem.
O parque também contém uma das concentrações mais ricas e diversificadas de arte rupestre no sudeste da Ásia. Esta arte rupestre tem um valor arqueológico e também sagrado. O Parque tem um significado nacional e internacional, e poderá também contribuir para o desenvolvimento do turismo no país.
Nos últimos anos, além de criar uma nova lei para proteger a sua herança cultural e ratificar as Convenções da UNESCO de 1972 e 2003, o Governo de Timor-Leste também investiu em formação, trabalhando com a UNESCO e outras organizações internacionais para criar oportunidades de formar os seus funcionários.
Durante a última década e meia, o Departamento do Património Cultural tem mapeado ativamente expressões do património tangível e intangível em todo o país, apoiando a reconstrução de casas sagradas (a icónica Uma Lulik, em torno da qual toda a vida em Timor gira) [para mais detalhes sobre a “Uma Lulik” consultar a crónica 22], protegendo os edifícios históricos do seu passado colonial português, estabelecendo e gerindo uma base de dados nacional de bens culturais e promovendo as tradições e legados do país nas escolas e na comunidade, através de campanhas de sensibilização e da publicação de livros e outros materiais promocionais.
Os desafios para salvaguardar e proteger o património cultural de Timor-Leste, no entanto, ainda são múltiplos. Apesar do recente progresso, o Setor Cultural do Governo carece de pessoal qualificado suficiente em áreas técnicas relevantes, como arqueologia, arquitetura, antropologia e estudos de património cultural, e o orçamento existente é claramente insuficiente para documentar, investigar e administrar adequadamente o património cultural do país.
O Programa do Governo para os próximos cinco anos (2017-2022) visa dar continuidade ao processo de salvaguarda e promoção do património cultural de Timor-Leste, tornando a Cultura um elemento transversal em todas as áreas do governo. Só neste papel pode este sector contribuir para um sentimento crescente de pertença e identidade nacional de todos os timorenses, contribuindo para o desenvolvimento económico e equilíbrio social do país”³.
Às 7 temos o pequeno almoço, ou em tétum: “matabicho”. O Valério deu-me o seu ovo cozido, pelo que comi dois ovos. Desde as 5.30h que ando a passear na bicicleta, às 7 até já podem dar-me um bitoque outra vez, como na crónica 21.
Bagagens prontas e arrumadas na pickup. Agora a caminho de Lospalos, na bicicleta.
¹ “Parque Nacional Nino Konis Santana” (s.d.). Wikipedia. Página consultada a 11 Outubro 2018,
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Parque_Nacional_Nino_Konis_Santana>
² Choi, Charles Q. (2011, 24 Novembro), “World’s Oldest Fish Hooks Show Early Humans Fished Deep Sea”. Live Science. Página consultada a 11 Outubro 2018,
<https://www.livescience.com/17186-oldest-fish-hooks-early-humans.html>
³ “Protecting the Rock Art of Tutuala” (2017), United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO). Foto da arte rupestre na página 16. Texto de Cecília Assis nas páginas 20 e 21. Documento consultado a 11 Outubro 2018,
<http://unesdoc.unesco.org/images/0026/002646/264602m.pdf>