022 – A Caminho de Tutuala – as casas “Uma Lulik”

À esquerda, uma casa típica de Lospalos. Estas casas são sagradas e em tétum chamam-se “Uma Lulik”. Uma Lulik para o povo timorense é a casa sagrada dos seus avós, o lugar que os seus antepassados deixaram para as futuras gerações. É também o sítio onde se guardam as heranças tradicionais que eles deixaram. Representa a ligação entre os antecessores, os vivos, e a futura geração. Uma Lulik é o centro da decisão, onde as pessoas se juntam para enfrentar os problemas e tomar decisões, onde os anciãos se sentam, se unem, falam uns com os outros para discutir os problemas do presente. Mas também é lugar de celebração do ciclo ritual da vida das pessoas, onde se fazem as cerimónias tradicionais. Todas as famílias têm a sua Uma Lulik e por esta razão a casa sagrada é também por extensão uma herança que une todo o povo de Timor-Leste, um símbolo de unidade e de identidade¹.

Fiquemos com extratos – ligeiramente adaptados – dum estudo bastante detalhado elaborado na Universidade do Minho:
“Lulik” refere-se a algo sagrado na sociedade de Timor-Leste, “Uma” significa casa, por isso “Uma Lulik” significa casa sagrada. Dentro das casas sagradas realizam-se atividades para agradecer aos antepassados. A Uma Lulik tem estado presente em Timor-Leste ao longo de épocas, desde antes da chegada do povo português e da ocupação indonésia. É, portanto, uma estrutura tradicional, forte e enraizada nas tradições da sociedade de Timor-Leste, sendo referida na Constituição do país como uma riqueza da identidade da comunidade.
A “Uma Lulik” polvilha os diferentes territórios da ilha de Timor, de ocidente a oriente, do grande porto de Kupang às belíssimas praias de Tutuala.
Para além de serem um local de celebração dos antepassados, estes locais também podem ser habitados pela comunidade, ou seja, são um espaço divino e, igualmente, um espaço familiar e social (podendo ser também lugares de realização de atividades quotidianas).

Normalmente o processo da construção da casa sagrada estabelece-se em três fases: a primeira etapa é o momento de levar os materiais de construção da floresta; a segunda etapa é o tempo da construção; e a terceira etapa é o tempo de inauguração cerimonial.
A construção da Uma Lulik ou casa sagrada inicia-se com a cerimónia do ritual sacral com matanças de animais como galinhas, porcos e cabritos para iniciar o corte de madeira ou tronco que irá ser utilizado como coluna principal da Casa Sagrada. Trata-se de uma cerimónia sagrada para pedir licença aos espíritos dos antepassados dessa Uma Lulik.
No fim do corte de madeiras, os donos daquela casa ou Uma Lulik, continuam a matar os animais para alimentar os membros da família e a comunidade ou vizinhos que se juntaram para receber as madeiras no lugar onde se irá construir a casa sagrada. Esta cerimónia tem como principal objetivo agradecer aos deuses, dar-lhes uma oferenda, para obter a força divina para os que vão trabalhar durante a construção desta casa sagrada ou Uma Lulik.
Bernardo Ximenes, de 68 Anos, Suco de Afaloicai da Aldeia Lena, deixou o seu comentário sobre o início da construção da casa sagrada ou Uma Lulik:
“Antes de irem cortar as madeiras, o dono da casa sagrada precisa de obter todos os equipamentos como «catanas, machados» que vão ser usados para cortarem as madeiras”. O objetivo principal desta cerimónia é proteger os membros que vão cortar as madeiras, para que não aconteçam acidentes. Segundo a sua intervenção, antes de cortar a madeira é preciso oferecer um galo forte para matar. Trata-se de uma oferta aos deuses ou ao dono do terreno, para que cuidem das árvores ou plantas que vão cortar e estas não fiquem estragadas”.
Nas crenças tradicionais timorenses, cada lugar tem os seus donos ou deuses, considerando-se que os deuses são os proprietários da terra, mar, sol e lua. Neste contexto, nas áreas florestais, os que vão entrar naquele local, devem respeitar as disposições e os usos e costumes da tradição e por isso é necessário pedir uma licença como maneira de obedecer aos deuses.

Quando termina o processo da construção da casa sagrada, a comunidade faz uma festa ou ritual para agradecer todos os processos ao longo da construção. Durante o processo da construção é gasta muita energia, seja física ou não-física, ao longo dum espaço e tempo forçados para a construção; por isso, no final de toda a atividade é preciso recuperar as energias.

O modelo de governação da administração portuguesa não perturbou os usos e costumes na sociedade tradicional de Timor-Leste. A governação colonial aproveitou mesmo a hierarquia tradicional para o exercício do seu domínio. No período da administração portuguesa, o sistema da governação reconhecia a governação local, o poder da autoridade local para liderar os seus habitantes, através do “Dato ou Régulos”, numa ligação intermediária com o poder da administração central.
Nos 450 anos de presença portuguesa, o governo colonial tentou uma assimilação dos timorenses, eliminando os valores tradicionais antigos. Naquela altura, o governo colonial não tinha uma política de promoção das casas sagradas. Por outro lado, existiam os líderes da igreja (e alguns padres) que não concordavam com as atividades de construção das casas sagradas, considerando o povo e os clãs como ateus ou animistas, por manter uma ligação com os espíritos maus ou o diabo. Mas, em geral, a tradição das casas sagradas continuou, apesar da indiferença ou hostilidade dos estrangeiros que dominavam o território timorense.

A maioria das casas sagradas desapareceu com a guerra e durante a ocupação indonésia, devido à destruição da maior parte do território e das suas povoações. Os combates levaram ao abandono forçado de aldeias, por norma situadas em locais elevados, e à realocação de populações em zonas de concentração em áreas mais baixas ou junto a vias de comunicação. Assim, muitas casas tradicionais, no início da ocupação da Indonésia, foram incendiadas e abandonadas pelos seus habitantes, por razões de segurança, dado que estavam construídas em áreas montanhosas, as quais serviam de zona de operações militares do exército indonésio e das Falintil.  As casas sagradas (Uma Lulik) possuíam uma força divina para proteger os membros guerrilheiros das Falintil, contra as forças indonésias. Assim estes queriam destruir as casas sagradas. As culturas são queimadas com napalm, o mesmo acontecendo a centenas de aldeias, que desapareceram completamente do mapa. Perto de 90% das cabeças de gado são perdidas. É o tempo das campanhas de cerco e aniquilamento, dos bombardeamentos serrados. A razia foi completa e as bases de apoio da resistência foram destruídas.

Depois da consulta popular, feita no mês de agosto de 1999, Timor-Leste restabeleceu-se como um estado independente, e as populações começaram a reconstruir novas casas com os seus habituais rituais tradicionais.
No contexto cultural e religioso da sociedade tradicional timorense, a construção das casas sagradas é um momento especial e único para reunir a comunidade como uma família e uma sociedade. O evento da construção das casas sagradas é uma oportunidade para agradecer aos antepassados e também agradecer a Deus.
Nas zonas rurais tradicionais em Timor-Leste continua a preservar-se algumas atividades de elevado valor comunitário e simbólico: as cerimónias de colheitas do milho, arroz ou algumas cerimónias para agradecer a Deus através da fé tradicional. Estas atividades ou cerimónias ocorrem sempre dentro da casa sagrada, com o objetivo de relembrar os espíritos dos antepassados.
Por outro lado, a casa sagrada é um símbolo de respeito aos antepassados, e lugar de acolhimento para reunir os membros da família, por isso cada família tem a obrigação de construir novamente as casas sagradas que ficaram destruídas no tempo da ocupação indonésia. No quadro cultural tradicional, acredita-se que aqueles que não constroem a sua casa sagrada não respeitam os antepassados, e essa traição é uma maldição que merece castigo.

Depois da restauração da independência de Timor-Leste no dia 20 de Maio de 2002, houve uma normalização política e social, e iniciaram-se vários programas para o desenvolvimento socioeconómico e sociocultural, incluindo a reconstrução das casas sagradas, vistas como património cultural.

A sociedade timorense atravessa uma fase de grandes transformações, que vão constituir desafios à continuidade das suas tradições, nomeadamente a construção destas casas. A questão é saber que sentido as gerações seguintes vão dar a estas práticas tradicionais e se a globalização vai ser um limite ou vai potenciar a tradição das famílias na construção da Uma Lulik. Durante a ocupação indonésia, muitos líderes tradicionais morreram no conflito, e assim deixou de haver uma orientação de continuidade para as novas gerações. Por isso, as novas gerações perderam em grande parte a oportunidade de receber as heranças culturais materiais e imateriais das gerações mais velhas².

De acordo com o Plano Estratégico de Desenvolvimento 2011-2030 (citando): “Timor-Leste é muito rico em formas arquitetónicas, que fazem parte da cultura e identidade da nossa Nação. É importante preservar o nosso património arquitetónico, em especial as Uma Lulik – as casas sagradas, em torno das quais revolve grande parte da vida comunitária. Foram já restauradas casas sagradas em quatro distritos: Lautém, Oecussi, Bobonaro e Ainaro. Será importante considerar formas e conceitos arquitetónicos tradicionais, aquando da construção de novas infra-estruturas. As comunidades espalhadas pelo País, serão ajudadas no restauro e preservação da rica diversidade de formas de arquitetura tradicional em Timor-Leste. Será desenvolvida uma Lei sobre Património Cultural para proteger, preservar e melhorar o património cultural. A médio prazo, uma instituição apropriada de ensino superior, em Timor-Leste, oferecerá uma licenciatura em arquitetura”³.

Este Plano Estratégico foi desenvolvido em 2011. Agora, em 2018, fui investigar por curiosidade se já existem licenciaturas em arquitetura, em Timor-Leste. Após consultar várias pessoas, e depois de verificar na internet, a UNPAZ tem um departamento de Arquitetura. Portanto há um curso de Arquitetura, mas ouvi dizer que o ensino é predominantemente em língua indonésia.

Ainda sobre as Uma Lulik, no link abaixo (fonte nº 1) era suposto estar um filme documentário, feito por um timorense, sobre estas casas sagradas. Mas o filme desapareceu. Aparentemente esteve disponível, mas agora não se consegue fazer o download.

Um cemitério antigo, também na foto de baixo. O Valério parou aqui estrategicamente, na pickup, e esperou por mim. Almoçou também. Levou uma cuvete com o almoço encomendado no restaurante. Afinal de contas o Valério não tem vontade de almoçar às 11 da manhã, como eu.

Tenho 59 km na bicicleta, até agora. São duas e pouco da tarde. Estamos prestes a chegar a Tutuala, e a estrada não parece, mas é muito má. Passo para a pickup, já chega por hoje.


¹ “Apresentação do Exmo. Senhor Presidente do Parlamento Nacional de Timor-Leste”. UmaLulik, Futuro da Tradição. Um filme documentário do Parlamento Nacional de Timor-Leste sobre as casas sagradas de Timor-Leste” (2011). Página consultada a 3 Outubro 2018,
<http://www.umalulik.com/apresenta.htm>

² Correia, Januário de (2013, Outubro),  “Construção de Casas Sagradas (UMA LULIK) na sociedade Timorense: uma perspetiva sobre o desenvolvimento e o turismo comunitário no distrito de Baucau”. Dissertação de Mestrado, Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. Página consultada a 3 Outubro 2018,
<http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/29291/1/Janu%C3%A1rio%20de%20Correia.pdf>

³ “Plano Estratégico de desenvolvimento 2011-2030”, pág 79. República Democrática de Timor-Leste. Página consultada a 3 Outubro 2018,
<http://timor-leste.gov.tl/wp-content/uploads/2012/02/Plano-Estrategico-de-Desenvolvimento_PT1.pdf>

<< >>