077 – Pico – No Topo de Pico, o Titã

Gente! São as primeiras pessoas que vejo! São 8h38 e ali é o marco 12. Já vem gente a descer, a esta hora?

É uma senhora com um guia de montanha. Quem quiser pode contratar um guia de montanha. Eu prefiro seguir sozinha. Quem acompanha estas crónicas ao longo dos anos, sabe isso. Este é um desafio meu. E é uma introspeção também. Um caminho de silêncio. Não quero conversar, não quero ouvir vozes. Eu tenho que saber enfrentar estas simples adversidades da vida com tranquilidade de espírito, conforme já comentei na crónica 60. Estou de férias, estou tranquila, posso ir-me embora quando quiser, ninguém me obriga a estar aqui. Se me cansar poderei regressar a casa, não faço questão de chegar ao topo.
Se não souber enfrentar estas pequenas adversidades, não saberei enfrentar nada na vida.
E eu já decidi que vou até ao topo. Isto está a dar-me uma pica desgraçada, é a verdade.

– Já chegaram ao topo e já estão a descer – disse-lhes eu, com admiração, quando passaram por mim.
– É mais ou menos isso – respondeu-me a senhora.
Fiquei intrigada com as suas palavras. Se calhar não lhe apeteceu chegar ao topo e decidiu regressar.
Vamos ver o que me espera.

Vêem-se 4 marcos nesta foto. E muita lava.

Estou a ser observada há algum tempo! Este melro segue-me. É melhor cumprimentá-lo.
– Olá passarinho. Estás a seguir-me?

– Estou a acompanhar a tua subida, Rute.
– Então porquê, passarinho?
– Quero ver se chegas lá acima.
– Estou decidida a chegar ao topo! – disse-lhe eu – Mas nem sempre estive. Agora é que estou mesmo determinada. Se cheguei aqui, também vou chegar lá acima.
– Ainda bem, Rute, fico contente. Pico – o Titã, aguarda por ti.
– Passarinho, é a terceira vez que me dizem isso. Pico, o Titã, aguarda por mim? Como assim? És seu mensageiro?
– Sou mensageiro de Pico, o Titã.
Olhei-o fixamente. Respirei fundo. Acabei de conhecer um mensageiro de Pico, o Titã. Que me acolhe neste preciso momento, já.
– Obrigada, passarinho. O mensageiro do Grande Senhor do Reino dos Pássaros, é mais magro. Tu és mais gordinho.

– Eu não sou gordo! – exclamou o melro, sentido.
– Oh passarinho, não, não foi isso que eu quis dizer! Tu és um melro lindo e saudável, bem alimentado.

– Prossegue o teu caminho, Rute. Pico, o Titã, quer falar contigo, mas só serás digna disso se chegares ao topo.

– Até já, passarinho. Obrigada, vou esforçar-me. Vive bem.

Lixo no chão. Como é possível que isto aconteça. Até poderia dar o benefício da dúvida, se calhar alguém deixou cair e nem deu conta. Pode acontecer, sim. Mas eu fui vendo isto várias vezes. Já são muitos acasos. Quem é que não pode o aguentar o papelinho no bolso até chegar à Casa da Montanha e deitá-lo então no caixote do lixo? A barbárie humana.

Entre os marcos 17 e 18 cruzei-me com este grupo a descer. Um deles, o guia, à frente, sempre ao telefone. A sua voz a ecoar pela montanha com assuntos de trabalho. Deve ser maravilhoso andar na natureza com alguém sempre a tratar de assuntos ao telefone. Eu prossigo em silêncio. Apenas pássaros. E adicionalmente vão todos equipados como se fossem subir o Evereste. O Deolindo subiu o Pico do Príncipe de chinelos de enfiar no dedo. Este Pico é uma brincadeira de crianças ao lado das florestas tropicais do Pico do Príncipe, conforme mostrei na crónica 31 de São Tomé e Príncipe. Aí eu não sobreviveria, simplesmente, se não tivesse um guia comigo. Ainda hoje lá estaria – em decomposição, por ter morrido.

Lá em cima, destacado contra o céu, está um marco. Certo. Vou a caminho.

E eis que cruzo com esta simpática família de Portalegre, mas que vive há muitos anos na ilha Terceira. Notei-lhes a pronúncia alentejana e perguntei. Dormiram sozinhos lá em cima, subiram ontem às 5 da tarde, levaram 4h30 e iam muito carregados, disseram-me.
Que fenomenal, dormiram lá em cima esta noite. Viram o nascer do sol e toda a paisagem à volta, com o céu limpo.
E quantos marcos são ao todo?, perguntei-lhes. São 45, responderam-me. Xii… 45 marcos?! Ainda só vou no 17!

Pedimos a outro turista – de outro grupo – que ia a descer também, para tirar-nos esta foto. Enfim, esse turista considerou que o céu é mais importante do que as nossas pernas, e fotografou o que achou importante, efetivamente. Não tendo outra foto, mantive esta. Sobretudo porque esta simpática família, meio alentejana, meio terceirense, insistiu em dar-me água. Ofereceram-se para dar-me uma garrafa nova, de litro e meio, e levar a minha metade para baixo. Mas eu agradeci-lhes bastante e disse-lhes para encherem a minha garrafa um bocadinho apenas, não a quero completamente cheia para não andar carregada. Ficámos com o contacto uns dos outros, para quando eu for à ilha Terceira, talvez nos encontremos.
E por falar nisso, tenho que ligar à Livramento, a turista picarota que estava de férias na ilha do Corvo.

Lava. Tanta lava, vulcão, que tu expeliste.

Vão todos a descer. Ninguém a subir. Ou pelo menos ninguém me ultrapassou, e não vejo ninguém lá em baixo a subir. Este grupo que aqui vai, ele é daqui da ilha do Pico, mas a senhora – apoiada à mala dele – é do continente. Um dos rapazes é de São Miguel. Foi ele – o picaroto – que a meteu nesta aventura, contou-me, mas ela conseguiu e disse que eu vou conseguir também. Chegaram lá acima às 5h30 da manhã, ainda não dormiram hoje. Quiseram ver o nascer do sol. Que fenomenal também. São 10h agora. As pessoas empenham-se nestas aventuras.

Parecem-me ser zangões. São imensos. Zumbem à minha volta durante toda a subida.

A ilha do Faial.

Já houve ligeiras mudanças: a garrafa de água na mão passou para dentro da mochila, e o cabelo foi preso com um elástico. Passei a necessitar das duas mãos para agarrar-me às rochas. Eu subo como os macacos, com o rabo espetado e as mãos no chão.

Marco 36. São 45 marcos ao todo. Está quase.

Cheguei! São 11h!

Será que dá para subir àquele piquinho? Não, já chega, Rute.

Esta é a cratera do vulcão.

O que é isto?! Está gente no piquinho?! Três pessoas lá em cima?! Ai!… Dá para ir lá acima, afinal. Bem que me tinham dito. Mau. Se eles estão lá, eu também quero ir. Qual será o caminho? Eu não sei se alguma vez mais na minha vida voltarei à ilha do Pico, e se voltar, não me parece que vá subir isto tudo outra vez. Tenho que ir lá acima e completar agora o meu empreendimento.

Está assinalado também, afinal! Aqueles traços amarelo e vermelho. É por ali. Vou experimentar.

São 11h23. Cheguei ao topo. As três pessoas vão agora embora. Eles falam inglês. Parecem ser pai e filho, e têm um guia de montanha, que me cumprimentou em português – é o rapaz que tem a mochila maior às costas. E o rapaz ruivo exclamou, à minha chegada: “You went up alone, you are so lucky!”
Eu ri-me, mas nem percebi bem o que quis ele dizer. Sou tão sortuda por ter subido sozinha? Porquê, ele também queria ter-se aventurado sozinho? Não queria guias nem companhia, se calhar. Fica para a próxima, amigo. Um dia viajarás sozinho, se mantiveres essa opinião.

A ilha de São Jorge.

Levei 4h10 a subir.
Marca uma altitude de 2.340 metros, mas eu estou no ponto mais alto: a 2.351 metros de altitude. Haverá um erro de 11 metros no meu GPS. Será que está ligado a um satélite desatualizado? Ou o Pico está a afundar-se e ninguém sabe?…

Estou sentada no topo de um dos maiores vulcões ativos do Oceano Atlântico.
E nunca usei óculos de sol nesta viagem, mas aqui devia tê-los trazido. Eu mal consigo abrir os olhos, com tanta luz.

E nisto, uma voz poderosa ecoou pela vastidão ao redor da enorme montanha.
– Bem vinda, Rute.
Levantei-me com um sobressalto. E imediatamente pousei um joelho no chão e baixei a cabeça, em sinal de reverência. Usei o nome que o Grande Senhor do Reino dos Pássaros me ensinou na crónica 62, e que o tubarão usou também na crónica 70; (e ainda o melro, hoje, durante a subida):
– Titã.
– Levanta-te, Rute.
– Obrigada por me acolheres e tratares bem, Titã.
– Senta-te. Irás aprender uma lição.
– Uma lição, Titã? – e voltei a sentar-me nas pedras.
– O Grande Senhor anulou o teu mergulho na sua ilha do Corvo, Rute, porque eu propus-lhes antes um mergulho comigo, com tubarões. Foi acordado e decidido entre nós. “A Rute irá mergulhar em águas do Pico, e nadará com tubarões, como prémio pela sua perseverança”. A tua contrariedade momentânea, ao perderes um mergulho no Corvo, iria ser compensada em breve.
Eu mantenho-me em silêncio. Ouço com atenção. Não tenho palavras para o espanto que me assola.
– As tuas palavras de desdém para com o Mar alteraram os planos, porém. Ofendeste o Mar. Ele recebeu-te e tu ofendeste-o.
– Como assim, Titã?
– Como foi o teu primeiro mergulho na ilha do Faial?, relembra as tuas palavras.
O meu primeiro mergulho na ilha do Faial? Foi pequeno, pensei. Correu bem.
– Relembra as tuas palavras – repetiu Pico, o Titã.
– “Tudo cinzento e castanho. De vez em quando lá passa uma sardinha”.
– O Mar é vasto, poderoso e imenso. Azul. As tuas palavras foram proferidas com desdém. E ele cuspiu-te salpicos de desdém também.
Fiquei estarrecida.
– E como castigo tirou-te os óculos de mergulho da vista e da memória. “Não farás o segundo e tão desejado mergulho”, decidiu o Mar.
Respirei fundo. Agora percebi.
– No entanto a situação resolveu-se, Titã.
– Agradece ao tubarão.
– Ao tubarão? Como assim, Titã? Ele foi tão duro comigo.
– Conversei com o Mar. E este deu então instruções ao seu mensageiro tubarão para tirar-te uma barbatana. O tubarão veio de longe, de outra ilha, tu contaste o tempo, Rute, sabes quanto durou. Ele nadou a toda a velocidade na tua direção para cumprir as instruções do Mar: tirar-te uma barbatana.
– Tirar-me uma barbatana, Titã? Mas isso prejudicou-me.
– Pensa bem. O que aconteceu a seguir?
– Veio uma mergulhadora à superfície trazer-ma.
– O que estava o Lobo do Mar a tentar fazer, nessa altura, inclinado sobre o barco?
– Procurava um dos mergulhadores, debaixo de água, para então dar-lhes instruções sobre passarem-me uns óculos de mergulho.
E fez-se luz no meu espírito. O facto de eu ter perdido a barbatana, fez com que uma mergulhadora viesse à superfície trazer-ma, resolvendo então a questão dos óculos. Tudo engendrado pelo Titã e pelo Mar.
– O tubarão puxou-te a barbatana e tu nem deste conta, Rute.
– Eu estava dentro de água, rodeada de tubarões, e não conseguia ver nada, Titã. Não senti nada.
– Ainda hoje lá estarias, a chapinhar na superfície, em vez de estares dentro do Mar – do qual desdenhaste.

Pousei novamente o joelho no chão e baixei a cabeça, em sinal de respeito.
– Obrigada, Titã. Obrigada pelo mergulho nas tuas águas. Foi lindo e espantoso. Obrigada ao mensageiro tubarão, que veio de longe para cumprir as ordens do Mar. E peço perdão ao Mar pelo meu desdém. Não voltarei a desdenhar. O Mar é vasto, poderoso e imenso. Azul. – repeti as palavras ensinadas pelo Titã.
– Aprendeste então a lição. Segue a tua viagem, Rute.  Chegaste aqui acima, onde eu te aguardava. Desce agora e prossegue o teu empreendimento.

Perante toda esta vastidão, despedi-me:
– Obrigada por me acolheres e tratares bem, Titã.

Levantei-me. Respirei fundo. Por isso o Grande Senhor, do Reino dos Pássaros, me disse que Pico – o Titã, aguardava por mim. Já tinham combinado o mergulho. E por isso o tubarão me disse que Pico, o Titã, aguardava por mim. Queria colocar as coisas em ordem. Pico, o Titã, deu-me uma lição de vida. Não voltarei a desdenhar. A natureza é vasta e imensa. Eu – ínfimo bípede humano – tenho que saber respeitá-la. E tenho que saber usufruir e tirar prazer das mais pequenas coisas.

Estas fotos tirei-as no avião, na crónica 30, quando viajava entre as ilhas de São Miguel e Flores.
Passei nesse dia pelo imponente Titã.

Pico, o Titã.

<< >>