070 – Faial – Mergulho com os Tubarões

São 13h17. O Norberto – o Lobo do Mar, como é conhecido – dá-nos um briefing antes de partirmos. Ao centro, de costas, está o casal espanhol que mergulhou comigo de manhã. Também ao centro, a fazer o sinal com os dedos, está uma turista que também vai mergulhar; e à direita, sentado, está o Thomas, outro turista que veio igualmente mergulhar. Do lado esquerdo estão dois mergulhadores do Norberto: o João, que mergulhou comigo hoje de manhã, e uma mergulhadora – de São Tomé e Príncipe! – que está em layoff no seu país, pois é mergulhadora num resort na ilha do Príncipe, e então veio temporariamente para aqui. Ainda há um terceiro mergulhador, pertencente à equipa do Norberto, que tem uma câmara de filmar submarina. Está todo apetrechado para filmar. Creio que se vêem os seus chinelos, no canto à esquerda.
Comigo, seremos oito a mergulhar, portanto. O Norberto fica no barco.

Vamos mergulhar entre a ilha do Pico, à direita, e a ilha de São Jorge, em frente.

A ilha de São Jorge. Ainda avistámos a ilha Graciosa, mas a minha máquina fotográfica já não consegue apanhar.

Todos se equipam e eu aguardo pelo João para ajudar-me.

Já se vêem os tubarões a rodear o nosso barco. São tubarões azuis, os quais não atacam o humano. Supostamente. Pelo menos não têm esse hábito.

A primeira mergulhadora – de São Tomé e Príncipe – já lá vai. Cai de costas para trás, como eu irei fazer também. São 14h19.

A rapariga asiática também já lá vai.

E para grande surpresa minha, o Norberto mandou os mergulhadores todos para dentro de água e não deixou nenhum comigo. Até o João já está dentro de água. Será o Norberto a ajudar-me a equipar-me, portanto.
Mas o Norberto não larga o telefone. Faz e recebe chamadas sem parar. Eu a ver os tubarões a passar. Norberto! – chamei-o, já impaciente. Quero ir para dentro de água! – disse-lhe eu. E o Norberto largou imediatamente o telefone e veio ajudar-me.
Foi necessário pôr mais 2 quilos de chumbo à volta da minha cintura, pois esta manhã eu estava a flutuar excessivamente. Tinha sete, fiquei com nove. Sou a mais leve e mais pequena de todos, e sou a que tenho mais peso em cima. Os outros mergulhadores levam apenas 2 ou 3 kg de chumbos à volta da cintura. Eu levo 9. Mal consigo levantar o cinto dos chumbos, mas o Norberto quer que eu faça tudo sozinha e não deixou o João ajudar-me. Fiz-lhe notar isso, que sou a mais pequena e leve, e sou a que tenho mais peso, que me custa muito. A garrafa às costas andará pelos 15 kg. Eu peso 55 kg e estou a carregar com 24 kg. Custa-me imenso. Simplesmente não tenho forças e preciso de ajuda. E quero ir o mais rapidamente para dentro de água para voltar a ser leve. Dentro de água acabam-se os problemas. Dentro de água fico leve e tranquila.
Ora o Norberto equipou-me toda, e chegada a altura finalmente de eu ir para dentro de água… onde estão os óculos de mergulho?
Onde estão os óculos de mergulho, Rute?
Onde puseste os óculos de mergulho? – perguntou-me o Norberto.
Não me lembro.
Não sei dos óculos de mergulho.
Se o Norberto tivesse um chicote, ter-me-ia dado uma chicotada.

Entristeci. Como pudeste esquecer-te dos óculos de mergulho, Rute? E agora?
– Não há uns óculos extra de mergulho aqui no barco? – perguntei ao Norberto.
O Norberto revolveu tudo à procura dos meus – ou de outros óculos de mergulho. Tirou coletes impermeáveis para fora do armário, esvaziou tudo. Não há óculos extra de mergulho, aqui dentro do barco.
Então pegou num microfone, ou sei lá o que é aquilo, e chamou o outro barco que está perto de nós (enfim, o “perto” é relativo, nestas coisas do mar). Há outro barco, que eu o vejo, que comunica com o nosso. Avisam-se mutuamente sobre a presença de tubarões. Afinal de contas há um porção de turistas que pagaram para ver tubarões, é bom que eles apareçam.
O outro barco não está a responder.

Eu quero ir para dentro de água. Há tubarões por todo o lado, eu quero ir vê-los, quero nadar com eles.
O Norberto decidiu então chamar um dos seus mergulhadores para me emprestarem os seus óculos. O que vale é que tenho três mergulhadores, disse o Norberto, possesso com o meu atabalhoamento.

Enquanto o mergulhador vem e não vem, eu não quis perder mais tempo. Atirei-me para dentro de água mesmo sem óculos e sem botija de ar. Levei a minha máquina fotográfica dentro duma bolsa impermeável, a qual mostrei na crónica 61 de São Tomé e Príncipe. Tirei esta primeira foto. Meti a máquina debaixo de água e fotografei. Sem óculos de mergulho não vejo nada de jeito debaixo de água.

O Norberto inclina-se na tentativa de avistar algum dos seus mergulhadores e então chamá-lo para cima.

A caixa contém pedaços de peixe, para atrair os tubarões.

Este mergulho é feito a um máximo de cinco ou seis metros de profundidade, pois os tubarões andam à superfície. É suposto os mergulhadores ficarem agarrados a duas cordas, em cada ponta do barco. Esta é uma das cordas, à qual eu irei agarrar-me assim que tiver uns óculos.

Andam tubarões à minha volta e eu não os vejo. Estou cada vez mais triste. Estou dentro de água. A ilha do Pico está à direita, a ilha de São Jorge está à esquerda. Só me resta fotografar as ilhas, já que não consigo fotografar os tubarões. Eles andam aqui à volta das minhas pernas.

E eis que perco uma das barbatanas, enquanto estava dentro de água. Senti o pé muito leve. Olhei. Onde está a barbatana?
Rute, onde está a barbatana?
Isto é impossível. Esqueci-me dos óculos e agora perdi uma barbatana. Tudo me corre mal. Como é que a barbatana saiu do pé?! Estava mal apertada! Apertaste mal a barbatana, Rute!!

O Norberto só não me fuzilou viva, porque efetivamente não tem uma metralhadora no barco. Talvez tenha em casa. Eu estou dentro de água, e, à falta de melhor, a observá-lo. Sem óculos e sem barbatana. Voltei para dentro do barco.
Porém a barbatana é amarela florescente, e a mergulhadora de São Tomé e Príncipe viu-a, apanhou-a e veio trazê-la à superfície. O Norberto deu-lhe então imediatamente instruções para ser ela a guia do grupo e mandar o João para cima e dar-me os seus óculos. O João ficará no barco. Eu fico com os seus óculos. Ela orienta o grupo.

E finalmente mergulhei com botija de ar e óculos de mergulho. Finalmente mergulhei. Seriam umas 14h55. Perdi 35 minutos do mergulho. E em 35 minutos o Norberto resolveu a coisa. Quase que me matou, mas resolveu.

Mantive-me sempre agarrada à corda.

Um tubarão!!! Finalmente vejo um tubarão!!!

Vários tubarões! São vários! Entre os 2 metros e os 2,5 metros!

– O que estás aqui a fazer, Rute? Não pertences aqui, estes são os meus domínios.
A severidade e a agressivade do tubarão fizeram encolher-me.
– Eu sei, tubarão, quis ver-te no teu ambiente.
– Já viste. Volta para terra, onde pertences.
– Não tenho qualquer arma comigo, tubarão: facas, arpões, nada. Estou à tua mercê.
– Desaparece. Pico, o Titã, aguarda por ti.

E nadou na minha direção, sem parar. Ele vai chocar comigo. Ele vai chocar com a minha cara, vem mesmo direito a mim.
Pus em prática os ensinamentos que recebi em terra, para o caso disto acontecer: dei-lhe o flanco. Virei-me. Se chocares comigo, chocarás com o meu ombro.
Depois achei que o ombro não era suficiente, e virei-lhe as costas. Se chocares comigo, chocarás com as minhas costas. Se me morderes, morderás a minha nuca.
E esperei.
Uns segundos depois espreitei por cima do ombro.
Nada. Já se foi embora. Já não está aqui.

O Norberto atira pedaços de peixe à água, de forma a atrair os tubarões. São cinco ou seis, ao todo, à nossa volta, todos entre os dois metros e dois metros e meio. Eu preferia não estar tão perto dos pedaços de comida, mas pronto. Os tubarões ainda me confundem com uma lula e marcho também. O que é curioso é que tive de assinar um papel, antes de embarcar, em como isentava de toda e qualquer responsabilidade a empresa de mergulho, no caso de algo correr mal. Afinal de contas são animais. A gente não sabe bem o que pode passar-lhes pela cabeça. Eu de vez quando experimento comida nova, sabe-se lá se eles hoje decidem provar uma perninha minha?…
Bom, mas eu estive sempre tranquila dentro de água. Não senti qualquer sobressalto, nem quando o tubarão veio direito a mim e fez-me virar, por segurança. Respirei calmamente. Tive real prazer neste mergulho. Não senti frio.

São 16h. Vamos embora. O mergulho foi absolutamente espantoso. Tubarões por todo o lado. Grandes. Não atacaram, não fizeram mal nenhum.
Apenas eu fui tão desajeitada com o equipamento. Como pudeste esquecer-te dos óculos, Rute? Como pudeste perder uma barbatana? Nunca te esqueceste dos óculos da bicicleta, porque te esqueceste dos óculos de mergulho?

Senti-me desajeitada e feia.

A mergulhadora de São Tomé e Príncipe – que no meio desta agitação toda acabei por não ficar com o seu nome – foi buscar-me um casaco impermeável, obedecendo às instruções do Norberto, para eu não ter frio durante a viagem. Agradeci-lhe. E deu-me bolachas, para reconfortar-me. Agradeci-lhe também.

O escritor Raúl Brandão, no seu livro “As Ilhas Desconhecidas”, o qual citei na crónica 53 quando visitei o Ecomuseu do Corvo – livro que Raúl Brandão escreveu após a sua viagem pelas ilhas dos Açores, em 1924 – diz: “o mar cospe-nos salpicos”¹. E eu acrescento: o mar cospe-me salpicos com desdém. Salpica-me a cara com desdém.
E chorei.
Sou desajeitada nestas coisas do mar. Perdi uma barbatana, esqueci-me dos óculos; fico parada sem saber o que fazer, com toda a gente em grande azáfama à minha volta. Senti toda a minha fragilidade. O Norberto é um homem do mar, é conhecido como Lobo do Mar. Não tem paciência para uma mulher desajeitada com as coisas do mar. Tem a pele engelhada dos anos e do sol. Veleja com o seu barco pelo mundo inteiro. Domina o mar. Tem lá paciência para gente desajeitada.
Lágrimas – e salpicos desdenhosos do mar – cobriram-me a cara. De humilhação, por sentir toda a minha fraqueza, toda a minha debilidade. Como podes falhar desta maneira, Rute?
Estou totalmente fora do meu ambiente. Habituada a ser segura, confiante, dona do chão que piso, eis que aqui não há chão. Não sei o que piso. Não piso nada. Vacilo. Sou fraca.

Mas recuperei e concentrei-me: Rute, não vais chegar assim a terra. Vais parar de chorar. É absurdo. O mergulho correu bem. Foi espantoso. Se voltasse atrás no tempo, repeti-lo-ia sem hesitação. Estamos todos delirantes com tantos tubarões. Vais parar de chorar, ninguém pode ver isto. Não faz sentido. És desajeitada, ajeita-te. Desenvencilha-te, recupera a tua energia, estás a regressar a terra.

E as lágrimas pararam.

Mas ao chegar a terra, o Norberto perguntou-me se gostei, e quis que eu pagasse mais 25€ por me ter esquecido dos óculos e por não ter agradecido à mergulhadora que me trouxe a barbatana. “Nem um obrigado lhe disse” – comentou severamente.
No meio daquela atrapalhação, pelos vistos esqueci-me de agradecer à mergulhadora.
Eu já não vinha bem, e com isto foi o descalabro. Além de desajeitada e feia, agora sou malcriada.
E não parei mais de chorar. Peço desculpa se a atrapalhei, disse eu à mergulhadora de São Tomé e Príncipe, a chorar baba e ranho. “A mim não me atrapalhou nada!”, respondeu-me prontamente. “Também não é preciso chorar!” – acrescentou.
Mas já era tarde demais.

Tirei o equipamento, fui-me embora e recusei-me a pagar mais. Já tinha pago os 180€ à hora de almoço. Em circunstâncias normais, se eu estivesse no meu estado normal – forte, no meu ambiente – eu teria respondido imediatamente: Oh senhor, vá dar uma curva. O preço estava acordado e pago. Agora lembrou-se de pedir mais dinheiro? Nem houve despesas nenhumas extra, não foi nenhum barco levar-me os óculos, não houve gastos de gasolina. Se quer trabalhar apenas com profissionais, abra uma empresa científica, não uma empresa de turismo e recreação. Lidar com turistas implica esquecimentos, atrasos, atrapalhações. Afinal de contas eu estou de férias, estou aqui para divertir-me. Não para levar tareia.

Mas não estando no meu estado normal, estando já fragilizada, sem a minha energia vital no devido lugar, nem respondi nada. Entrei em casa com o ranho e as lágrimas a caírem. Uma das funcionárias estava a lavar as escadas com uma esfregona, e o ranho caiu-me do nariz, pelo que teve de passar a esfregona novamente. Também não sei de onde vem tanto ranho. Tenho uma fábrica de ranho e não sabia. De onde vem tanto ranho, afinal? Vou ficar desidratada, com tantas lágrimas e ranho.
Recordo-me de ter pensado na Covid-19. A minha preocupação foi para a Covid-19: não é boa onda espirrar ou ter ranho nesta fase do campeonato. As pessoas ainda se assustam.

Às 16h30 estava no quarto. Tomei um banho quente, lanchei. Aos poucos tudo irá passar. Vou recuperar a minha energia terrestre.

Quando a Ana – a dona do alojamento – chegou, às 20h15,  para entregar-me o pequeno-almoço, já nem deu conta de nada, com certeza.
Já está a passar.


* Deixo a nota final de que algumas fotos debaixo de água foram tiradas pelo Thomas. Umas são minhas, outras são suas. Felizmente encontrei-o na manhã seguinte, ia ele tomar o pequeno-almoço no café, e eu esperava o meu táxi na rua; e o Thomas passou-me as suas fotos através de bluetooth, entre telemóveis.

¹ Brandão, Raúl (1926) “As Ilhas Desconhecidas”, p. 3. Projeto Vercial, 2002.

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