062 – Corvo – Morro dos Homens

– Eu vi-te ali naqueles caminhos, Rute, no outro dia. Tu ias por ali.
– Sim, mas agora vou em frente, passarinho. Vou ao Morro dos Homens.
– Então estás quase, Rute. Estás na reta final.
– Obrigada, passarinho.

Começa a complicação. Buracos das patas das vacas. Os pés metem-se por eles, em má posição. Caminho com cuidado e de olhos postos no chão. E as turfeiras começam a dar sinal de vida.

Uma das lagoas artificiais que abastece a ilha do Corvo. São duas. O Pedro diz que a água da vila vem daqui, e que é tratada lá em baixo. Terá sido isto que me fez dores de estômago? Não estarei habituada, com certeza. Em todas as minhas viagens o meu estômago queixa-se sempre da água. Agora encho os cantis com água mineral. A água da fonte, ontem, que o Pedro me deu (na crónica 56), fez-me bem. Não voltei a ter dores.

Estas fofuras brancas. É uma linda fofura branca. Parece espuma. E uma bela rasteira.
Vou à volta sempre que posso.

Xiii… o pesadelo das fofuras brancas. Vou desaparecer ali no meio, num buraco qualquer.

Ali estão as duas lagoas artificiais, lado a lado. E eu miro o pico, lá em cima. O Morro dos Homens está perto. São 14h36.

Emergi dum mar de fofuras brancas – turfeiras – e vislumbrei pela primeira vez a enorme e magnífica cratera. Agarrei na máquina e tirei esta foto imediatamente; a primeira visão de um dos pontos mais altos.

Eu ainda não estou no pico. Já estou a 700 metros de altitude, mas não estou no pico maior. Caminho agora para o pico. O Morro dos Homens.
Ou o Morro das Mulheres.

Onde as cabras dormem. Mesmo no ponto mais alto.

Eu vou subindo de rocha em rocha, pelas turfeiras.

E vou descobrindo mais locais onde as cabras dormem.

São 15h09. O GPS diz que estou a 710 metros de altitude. Tem que haver um erro. Se o Morro dos Homens tem 718 metros de altitude, à minha volta não existe nada com mais 8 metros.

Sentei-me.
E disse em voz alta:
– A trabalheira que tu me deste para aqui chegar, rapaz.

E nisto, surge uma voz profunda, lenta, das profundezas da cratera:
– Obrigada, Rute, há muitos milhares de anos que não me chamavam rapaz.
Após a surpresa e perturbação iniciais, imediatamente me levantei: coloquei o joelho no chão e baixei a cabeça, em sinal de reverência. Usei o nome que o melro me ensinou na crónica 49:
– Grande Senhor, do Reino dos Pássaros!
– Do Reino dos Pássaros e de todo o Reino Animal e Natural. Apenas os humanos me tratam por outro nome. Levanta-te, Rute.
Voltei a sentar-me e olhei a magnífica e grandiosa cratera.
– Foste colocada à prova e chegaste aqui.
– Fui colocada à prova, Grande Senhor?
– Tirei-te o barco, pus-te um avião, dei-te outro barco – e tu recusaste tudo. Foste perseverante.
Após uns segundos de desorientação e assimilação do que me foi dito – o Grande Senhor tirou-me o barco? – respondi:
– Foi a vontade de rever-te e conhecer-te melhor, Grande Senhor.
– Serás recompensada. Amanhã terás um barco novo, criado para ti, e irás estreá-lo.
– Obrigada, Grande Senhor, um velho bote bastaria.
– Descansa e prossegue então a tua viagem. O melro acompanhar-te-á quando desceres.
– Conheces o melro, Grande Senhor?
– O melro é um dos meus mensageiros. Ele ensina aos humanos que o ouvem o meu verdadeiro nome. Alguns humanos partiram daqui sabendo o meu verdadeiro nome. Souberam ouvir.
– Obrigada por me acolheres e tratares bem, Grande Senhor. Os teus domínios são infindáveis, aprendi. Ficarás para sempre no meu coração.
Lentamente, profundamente, do fundo da cratera, ouvi pela última vez a sua voz:
– Boa viagem, Rute. Os mensageiros dos vulcões acompanhar-te-ão. Pico, o Titã, aguarda por ti.

Estive aqui sentada algum tempo. Mas as questões existenciais assolam-me. Como sempre. Preciso de alimentar-me. Tenho que fazer as malas.
Levantei-me então.
Prossigo a minha viagem.

A minha bicicleta está ali em baixo. Acho que nunca tinha visto a minha bicicleta a 1 km de distância. Repare-se no tamanho das hortências, por comparação à bicicleta. Eu desapareceria por completo no meio das hortências.

Ganho energia para a descida. Por vezes as descidas são mais difíceis do que as subidas.

As cabras fogem espavoridas ao avistar-me.

Bebi os três cantis de água, na jornada de hoje. Já só tenho este resto.

Aqui, onde o Pedro me ensinou a beber água pura e a curar as minhas maleitas de estômago.
Ensinou-me que nem sempre se deve obedecer.

Enchi os três cantis de água.

A Traineira. Aqui fui bem tratada e bem alimentada.

São 17h12. O Flávio foi buscar o meu almoço que a Alzira guardou. Eu estava sentada à sua espera, de máquina a postos, e apanhei o Flávio de surpresa, nem lhe dei tempo de sorrir. Porque o Flávio é simpático e fotogénico, teria sorrido para a câmara se eu lhe tivesse dado tempo.

A torre da igreja, cheia de cagarros a cantarem durante a noite. O sino bateu as 17h, à minha chegada à Vila.

Vamos então à vida prática. A minha viagem amanhã para a ilha do Faial. A ver se isto anda. Telefonei ao Filipe – nesta foto – e perguntei-lhe:
– Então há um barco novo que vai levar-me?
– Sim, como sabes? – perguntou-me, surpreendido. – Alguém já te disse?
– Não.
Ri-me.

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