017 – Príncipe – Regresso à Cidade & Almoço
Recordo que uma onda apanhou-me na praia, mal cheguei ao Bom Bom, molhando-me os pés e as sandálias. (Isto foi na crónica 15). Fiquei com os pés cheios de areia. Ora fazer uma caminhada de 2,5 km com areia nos pés e sandálias molhadas, não surtiu bom resultado. Esfolou a pele nos dois pés, ali naquela zona. Agora arde-me. Atei dois lenços na tentativa de afastar a tira da sandália da zona esfolada. Não dá muito bom aspeto, paciência.
E entretanto a minha bicicleta tinha sido reposicionada. Ficou mal presa, se bem se recordam, quando eu parti para o ilhéu. E foi precisamente o cavalheiro que me abordou na pickup, na estrada, que me disse que a tinha colocado em melhor posição. Fez bem. Pelos vistos é um dos responsáveis do resort.
Agora tenho uma subida duns 3 km e tenho de ir atenta a ver se encontro a tampa do cantil. Imagine-se. É como encontrar uma agulha num palheiro. Eu vou atenta aos dois lados da estrada, mas sendo a tampa redonda, e com a velocidade, poderá ter rodado pelas ribanceiras abaixo, existentes do lado direito. Ainda perguntei ao guarda do hotel se ninguém lhe entregou nenhuma tampa. Nada.
Pois não achei tampa nenhuma. E assim fiquei sem um cantil no 5º dia da viagem. Não há cantis à venda na ilha do Príncipe. Ainda fui à loja do chinês, e também à mercearia da minha rua, perguntar por tampas. Eu compraria qualquer recipiente cuja tampa servisse no meu cantil. Nada. Eu não quero andar carregada com pesos às costas, pois faz-me doer a coluna na zona do pescoço. Vou ter que desenrascar-me, e ir perguntando se alguém vende água, durante os meus passeios. Nesta foto vê-se a árvore da fruta-pão – a árvore-do-pão, a qual já apresentei na crónica 13.
É uma da tarde, estou a passar no aeroporto, e decido visitar a Benvinda, que me convidou hoje de manhã. Perguntei a um rapaz e a uma rapariga que estavam sentados na entrada do aeroporto: “Onde é que mora a Benvinda?”. Eles apontaram-me esta entrada na estrada.
Perguntei a outras pessoas agora. A Benvinda mora aqui à direita, depois desta casa amarela.
Cá está a Benvinda, de tshirt vermelha!
À esquerda é um dos filhos da Benvinda. Olha-me de alto a baixo e diz que está com muito calor. Todos se riem.
Estive aqui apenas dez ou quinze minutos. É hora de almoço, não quero incomodar, e eu própria tenho de ir para a cidade almoçar. Perguntei à Benvinda se agora à tarde vai voltar para Azeitona, para capinar. Responde-me que não, que é só de manhã.
Pulverização contra o mosquito da malária. Andam a pulverizar as casas.
É de louvar, este esforço por parte das entidades responsáveis. Há cerca de dez anos, São Tomé e Príncipe estava a caminho da erradicação da doença, mas ultimamente anda a ressurgir. Curiosamente, questões políticas terão influenciado este ressurgimento: o aumento dos casos de malária em São Tomé e Príncipe acentuaram-se depois do fim da cooperação com Taiwan. Durante dez anos, Taiwan deu apoio a São Tomé na área da formação, infraestruturas e da saúde, com particular destaque para o combate à malária. Em dezembro de 2016, São Tomé e Príncipe reconheceu a República Popular da China, uma decisão que implicou, de imediato, o fim das relações com Taiwan, uma imposição de Pequim aos seus parceiros diplomáticos. Houve grande intervalo entre a saída dos taiwaneses e entrada dos chineses nas campanhas que se vinham fazendo de controlo da doença. Algumas atividades foram suspensas durante esse período e o quadro complicou-se, porque, por coincidência, foi um período de grandes chuvas que aumentaram os focos das águas paradas, as quais deixaram de ter tratamento. O ministro da saúde de São Tomé e Príncipe admitiu que os casos de malária no país têm aumentado nos últimos anos, registando-se três centenas de novos casos por ano.¹ “É importante que as populações estejam informadas, porque só assim poderão também exercer o seu papel. É importante não ocultar informação nenhuma sobre qualquer patologia, mas também é muito importante não criar falsos alarmismos que não conduzem a lado nenhum”, defendeu.² “Nós somos um país eleito entre os dez destinos turísticos do mundo e é extremamente importante que nos acautelemos”, disse, defendendo mudança de comportamento por parte das pessoas e instituições no país.¹
Entretanto a ciência vai avançando e encontro esta notícia de 15 de Julho de 2019:
“Responsáveis da Universidade da Califórnia apresentaram esta segunda-feira ao Governo de São Tomé e Príncipe uma nova fórmula para a erradicação do paludismo baseada na introdução no país de um mosquito geneticamente modificado. “O que a Universidade da Califórnia está a propor é uma abordagem inovadora para o controlo da malária em São Tomé e Príncipe e não só”, disse aos jornalistas João Pinto, professor do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT) da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal, que está em São Tomé a colaborar com elementos da universidade norte-americana. João Pinto explicou que a experiência é “baseada na modificação das populações dos mosquitos que transmitem o parasita do paludismo de modo a que eles deixem de transmitir esse parasita e, assim, eliminar de vez com a malária”. O mosquito geneticamente modificado com a tecnologia mais avançada neste momento no mundo foi a solução apresentada às autoridades de São Tomé e Príncipe durante o workshop, presidido pelo ministro são-tomense da Saúde, Edgar Neves. A primeira fase de estudo nos laboratórios determinou o sucesso na introdução de ADN no mosquito modificado, que bloqueia a 100 por cento a transmissão do parasita ao ser humano, referiu o professor do IHMT, sem avançar data para a introdução do teste em São Tomé. “Ainda não existem previsões concretas. Para já o que se está a propor é uma colaboração com as autoridades de saúde de São Tomé de modo a que se possa fazer um estudo de dois anos para se avaliar a biologia e a ecologia da população dos mosquitos locais, para então tomarmos uma decisão se é ou não para avançar”, acrescentou João Pinto. Segundo os especialistas, trata-se de “uma nova esperança” para, de forma sustentável e com baixo custo, erradicar totalmente o paludismo no país. São Tomé e Príncipe e Comores são ilhas que a Universidade da Califórnia acredita serem favoráveis para esse novo estudo que servirá de experiência para a eliminação total do paludismo em África.”³
A eliminação total da malária em África! Isto seria revolucionário. Esperemos que os cientistas tenham sucesso. Recordo que ainda não existe vacina contra a malária. Ou melhor, parece que já anda aí qualquer coisa, mas pelo menos à Europa ainda não chegou. Vejo uma notícia de Setembro de 2019 sobre o uso duma vacina em três países africanos: Malaui, Gana e Quénia: “As autoridades de saúde do Quénia começaram a administrar doses da única vacina licenciada do mundo contra a malária, em crianças que habitam áreas rurais deste país africano e que enfrentam altas taxas de transmissão.”⁴
Pelo andar ainda vamos transformar os mosquitos primeiro, antes que alguma vacina chegue à Europa, se este avanço científico tiver sucesso. Força nisso, meus amigos cientistas! Enquanto isso, eu ando toda besuntada de spray anti-mosquitos!!! (Neste momento não, pois tomei uma bela banhoca na Praia Bom Bom e lá se foi o anti-mosquitos…)
Hoje a Kita tem caldeirada de peixe para almoço. É uma das raras comidas que não me agrada por aí além. Sabe bem, mas fico sempre com fome, e tem muitas espinhas. Dá muito trabalho. Fui novamente ao restaurante da marginal. Afinal está fechado outra vez. Então? Hoje é terça-feira, não fechava só às segundas? Que coisa mais estranha aquele diálogo ontem, e agora está fechado outra vez. Então fui ao restaurante do Paixão perguntar qual é o menu hoje.
Cheguei às 13h45, tenho 25,8 km na bicicleta, e atendeu-me a cozinheira Celeste. Hoje há um peixe chamado “Bonito” com arroz de feijão. Tive de retirar a salada do prato, com grande pena minha, dado não poder comer legumes crus molhados em água da torneira. (Em todas as viagens explico isto, mas não vá alguém mais inexperiente nestas lides viajantes cair de paraquedas nesta crónica: conforme é explicado em todas as Consultas do Viajante, que tenho antes de partir – em Portugal, os europeus não podem beber água da torneira em África, Ásia e algumas zonas da América Latina, porque não estão habituados aos seus microorganismos. É diarreia e gastroenterite certas. De qualquer forma eu já não preciso que me digam isto nas consultas, pois já sei de experiência própria… quem leu as crónicas anteriores, sabe das minhas más experiências por qualquer deslize cometido, nomeadamente na Amazónia, onde bebi um belo açaí feito com água da torneira, que até vi estrelas; e na China, onde comi uma maçã com casca. Também não se pode comer fruta com casca. Também não se pode lavar os dentes com água da torneira, tem de ser sempre água mineral. Ouço frequentemente histórias de pessoas que tiveram problemas gastrointestinais em viagem. Das duas uma: ou aconteceu-lhes como a mim, um qualquer percalço involuntário, ou então não foram à consulta do viajante antes de partirem, e portanto não estão conscientes das restrições alimentares. Comeram uma saladinha. Ou uma bebida com cubos de gelo. É que os cubos de gelo normalmente são de água da torneira, não são de água mineral.
Portanto, com grande pena minha, disse adeus à saladinha. Só o facto do prato ter ficado molhado com água da torneira já não é bom. Mas vou comer o peixe diretamente, sem pousar os pedaços no prato, e assim não vou molhá-lo na água. Esta é uma viagem desportiva, eu tenho de estar em plena forma, sem qualquer tipo de dor. E muito menos diarreias e gastroenterites!
Sobre o peixe Bonito, que de facto é bonito, o seu nome científico é Caranx crysos, e é conhecido também por “Blue Runner”. É um dos peixes mais comuns em São Tomé e Príncipe. Vou comer várias vezes este peixe, ou então vai ser-me oferecido entre vários peixes, nos restaurantes, mesmo que eu acabe por escolher outro. Segundo a Fishbase, o Bonito vai até aos cem metros de profundidade; geralmente não anda muito longe da costa; o comprimento total máximo relatado é de 550 mm; alimenta-se de peixes, camarões e outros invertebrados; e é um excelente peixe para comer⁵. Eu que o diga. Segundo a IUCN Red List, não suscita preocupação de extinção, por enquanto há muitos. Foto retirada de Fishbase.
Mapa de Ocorrência do Peixe Bonito. A vermelho é onde existem mais. A amarelo é onde existem poucos. As minúsculas ilhas de São Tomé e Príncipe (onde está a seta) estão a vermelho. E ele quase que chega ali ao Algarve. Mais um pouco e nós comíamos Bonitos em Portugal.
Mapa retirado de Fishbase.
(Nota: entretanto mostraram-me fotos de Bonitos à venda em Lisboa, numa peixaria dum hipermercado. Afinal vendem-se Bonitos em Portugal!)
A cozinheira Celeste está a falar com um cliente que se chama Nelito. É o guia Nelito do Bom Bom, disse-me. Prazer em conhecer. O guia Nelito foi marido da Celeste durante sete anos, contou-me esta. Separaram-se. Eu acabei por rir-me, pois eles pelo menos dão-se bem, não estão a discutir. O guia Nelito queria ficar com o meu arroz (alguma vez eu comeria aquilo tudo) mas eu tenho outro destino para ele. Pedi um saco para levá-lo. Não expliquei para quê. A Celeste pediu-me 100 dobras pela refeição, eu disse que era 70. Ela saiu do restaurante e foi perguntar a alguém, voltou e deu ok às 70. A rapariga da Roménia tinha-me dito que todas as refeições eram 50 dobras, a mim pedem-me sempre o dobro.
O destino do arroz de feijão. Os cães têm quase todos as orelhas feridas. É sarna. Políticas relativas aos animais de rua? Esqueçam lá isso. Mas quando chegar a altura, esperemos que São Tomé e Príncipe não imite Cabo Verde, que mete um tubo elétrico pelo ânus dos cães e os explode por dentro, eletricamente. Cada tiro, cada melro. Vamos esperar que São Tomé e Príncipe vá mais leve-leve, quando conseguir despertar para esta causa.
Cheguei às 14h45 ao quarto do hotel e ainda consegui lavar as mãos antes da água faltar. Comi um dos meus chocolates como sobremesa, dado que perguntei novamente no restaurante, e não tinham sobremesas.
Telefonei à Norá a perguntar se quer ir à praia, mas esta respondeu que está na loja e só sai às 17h. Não sei que loja é esta, mas será o seu trabalho.
Saí novamente para a rua, em busca de leite, iogurtes e uma tampa para o cantil da minha bicicleta. Fui a três lojas na minha rua, nenhuma vende cantis de bicicleta. Não se vende tal coisa no Príncipe. Na loja dos chineses ainda experimentaram a tampa de um dos biberões, mas não dá. Havia de ficar na história, eu com um biberão na bicicleta!
Às 15 eu estava numa das lojas quando a luz voltou. As pessoas celebraram. (Efetivamente é um alívio saber que a luz voltou, eu própria senti alívio. Estas coisas a que nos habituámos nas nossas vidas – ter eletricidade!!)
Comprei um litro de leite por 35 dobras (1,40€) e nesta última loja vendem-se packs de seis por 140 dobras. Já é melhor, sai a 23,33 dobras cada litro, ou seja, 0,93 cêntimos. Sim, continua caro, mas já é melhor. Eu é que não conto beber seis litros de leite nos próximos cinco dias que vou estar no Príncipe. Deveria ter visto isto e comprado logo no primeiro dia. Em São Tomé já não vou enganar-me. O iogurte de morango, por seu turno, custou 10 dobras, ou seja 0,40€. É espanhol.
Às 15h15 estou de volta ao quarto. Parece muito cedo para recolher-me? Pensemos assim: se eu saísse às nove da manhã, chegaria às seis da tarde. Ou seja, nove horas depois. Parece-me um horário normal. Ora eu saio às seis da manhã (um pouco antes até). Nove horas depois são que horas? Três da tarde. O meu dia está encerrado. E muito satisfeita. Agora é tomar banho (quando voltar a água, lá para as 17), selecionar as fotos do dia, fazer o backup na cloud, e estudar o percurso para amanhã.
Tenho 26,7 km de bicicleta no total, hoje.
Ao final da tarde comi o iogurte com três bolachas, e meio litro de leite frio do frigorífico. Mesmo depois de faltar a luz, o frigorífico vai mantendo o fresco. Mas a luz de qualquer forma hoje veio às 15h. Hoje é terça-feira.
Eram 19h30 quando finalmente me trouxeram o pequeno-almoço para o dia seguinte. Eu já a cair de sono. A esta hora já estaria a dormir. É noite cerrada, anoitece às 17h30. Telefonei duas vezes ao gerente do hotel. Supostamente viriam deixar-me o pequeno-almoço da parte da manhã. Pedi à senhora que o trouxe para mo trazer de manhã, às 8 ou 9h, quando servirem os pequenos-almoços. Ele conservar-se-á bem até ao dia seguinte, fechado no frigorífico, e não andamos neste stress.
¹ “Fim de apoio de Taiwan ajudou ao aumento de malária em São Tomé e Príncipe” (2019, 24 Fevereiro). Agência Lusa. Diário de Notícias. Página consultada a 18 Setembro 2019,
<https://www.dn.pt/lusa/interior/fim-de-apoio-de-taiwan-ajudou-ao-aumento-de-malaria-em-sao-tome-e-principe-10613963.html>
² “São Tomé e Príncipe regista 300 novos casos de malária por ano” (2019, 24 Fevereiro). Agência Lusa. Observador. Página consultada a 18 Setembro 2019,
<https://observador.pt/2019/02/24/sao-tome-e-principe-regista-300-novos-casos-de-malaria-por-ano/>
³ “Plano para erradicar paludismo em S.Tomé com mosquito geneticamente modificado” (2019, 15 Julho). Agência Lusa. Diário de Notícias. Página consultada a 18 Setembro 2019,
<https://www.dn.pt/vida-e-futuro/interior/universidade-propoe-erradicar-paludismo-em-sao-tome-com-mosquito-geneticamente-modificado-11115820.html>
⁴ “Quénia é o terceiro país africano a lançar vacina contra a malária” (2019, 13 Setembro). Agência Lusa. Jornal Expresso. Página consultada a 18 Setembro 2019,
<https://expresso.pt/internacional/2019-09-13-Quenia-e-o-terceiro-pais-africano-a-lancar-vacina-contra-a-malaria>
⁵ Luna, Susan M. e Musschoot, Tobias “Caranx crysos” (s.d.). Fishbase. Página consultada a 18 Setembro 2019,
<https://www.fishbase.se/summary/Caranx-crysos.html>