013 – Príncipe – Fruta-Pão
Agora tenho 3 km de subida acentuada até à Roça, através dum empedrado muito difícil. Bebi o gel energético, o qual me provocou logo palpitações mais rápidas. Dá cá um estalo… Faz lembrar o Asterix a beber a poção mágica. Eu não bebo café, nem fumo. Ao beber um gel energético destes até acelero logo. À semelhança das barras de proteína, também há vários tipos de géis (isto no plural fica meio estranho, ora tentem lá dizer isto em voz alta). Este gel que trouxe hoje é dos mais pujantes: além de cafeína tem uns aminoácidos quaisquer que dão um grande estalo, pelo menos a mim, que não estou habituada a cafeína ou produtos idênticos. Eu venho quase sem treino de Lisboa – por vezes perguntam-me se treino na bicicleta antes de vir de viagem – nada, não treino nada. Nunca treinei. Não andava de bicicleta há mais de três meses. Portanto já sei que tenho de entrar em força – com as melhores barras de proteína, com os melhores géis – o melhor combustível para a máquina arrancar em força. De qualquer forma, lembro, eu ando leve-leve. O facto de ter feito 12,8 km em três horas é significativo. Um ciclista profissional faz isto em meia hora. Mas também não tira fotos pelo caminho nem se senta a conversar com ninguém. Não é esse o objetivo. Leve-leve, Rute. Vai leve-leve.
Fruta-Pão.
A fruta-pão cai assim das árvores. Ainda bem que uso capacete… levar com uma bola destas em cima não é brincadeira. É pesada: pode chegar aos 3 kg. Estas ainda estão verdes, devem ter caído com o vento. Em breve provarei a fruta-pão assada – hoje mesmo, ao almoço, nas fotos mais abaixo. Efetivamente vou comer fruta-pão várias vezes durante esta viagem. Estas bolas verdes acompanhar-me-ão toda a viagem, portanto. Na estrada e no prato. Até vão ficar coladas nos pneus da minha bicicleta. Ora as como, ora as piso. É fruta-pão por todo o lado.
A árvore da fruta-pão, que se chama “Árvore-do-Pão”.
A árvore-do-pão com uma fruta-pão pendurada (ou duas, contando com a que está em cima também).
Leio na internet o seguinte: “A polpa quando cozida ou assada, apresenta um paladar bastante semelhante ao da batata-doce e macaxeira, tornando-se mais agradável quando consumida com mel ou melaço”¹. Quem escreveu isto é do Brasil, pois em São Tomé e Príncipe não há mel nem melaço, pelo que se come simples.
E também se lê isto na internet: Ao determinar e avaliar a composição mineral da fruta-pão, concluiu-se que os altos teores de fósforo, cálcio e magnésio tornam o fruto uma boa alternativa para suplementação nutricional. Mais: a fruta-pão pode contribuir com quantidades consideráveis de energia e fornecer os principais nutrientes da dieta, tendo baixo teor de gorduras². Ora bem, vem mesmo a calhar, estou a precisar disto.
Em relação ao teor de minerais, a fruta-pão apresentou-se rica em cálcio (319,54 mg/100g), contendo ainda potássio (100,00 mg/100g), fósforo (58,23 mg/100g), magnésio (44,44 mg/100g) e cobre (21,71 mg/100g)³.
“Composição Química” retirada de Embrapa
A fruta-pão é originária da região indomalásia, principalmente das ilhas de Java e Sumatra, estando hoje espalhada por todas as regiões tropicais e subtropicais do mundo¹. A denominação binomial da árvore – ou seja, o seu nome científico – é Artocarpus altilis. “Artos” é a palavra grega para “pão”e “karpos” é “fruta”. O nome foi dado por dois botânicos alemães – pai e filho – Johann Forster e J. Adam Forster⁴, que viajaram com o Capitão James Cook em 1772, numa viagem de circum-navegação do mundo. Já a palavra “altilis” vem do latim, e significa “engordar, criar para comer”.
Existem duas variantes da fruta-pão: O Artocarpus altilis (variante Apyrena) é mais conhecido por fruta-pão de massa, cujo fruto tem 15 a 20 cm de diâmetro, atingindo de 1 a 3 kg de peso. A fruta não tem sementes. A sua casca inicialmente é áspera, coberta por placas poligonais, tornando-se lisa e amarelecida ao amadurecer. Esta é a variante existente em São Tomé e Príncipe.
O Artocarpus altilis (variante Seminífera) é a fruta-pão que contém sementes e cujo fruto apresenta na parte externa da casca inúmeros “picos” e coloração verde-amarelada quando maduro, sendo o seu aspeto muito semelhante ao da jaca. Se esta variante existe em São Tomé e Príncipe, eu não a vi.
A árvore-do-pão é de crescimento rápido, atingindo em média 25 a 30 metros de altura, com copa mais ou menos frondosa. O melhor clima para a fruta-pão é o quente e húmido. Nestas regiões apresenta um bom desenvolvimento vegetativo e boa produtividade, no entanto se há uma estiagem prolongada ou se o tipo de solo não retém humidade em quantidade satisfatória, ocasiona a queda dos frutos muito antes de completarem o seu desenvolvimento. A árvore necessita também de ambiente ensolarado, visto não tolerar áreas sombreadas.
A sua produção é bastante variável, dependendo dos tratos proporcionados. Árvores adultas podem produzir anualmente de 50 a 80 frutos, registando-se casos de 100 ou mais por safra, com peso médio de 1 a 1,5 kg/fruto. A fruta-pão não resiste a fortes pancadas, sendo porém facilmente transportada a grandes distâncias e mantendo uma boa conservação por muitos dias, mesmo a temperatura normal¹.
A madeira é de cor amarela dourada, que vai escurecendo com a idade. É muito leve, durável, macia, e bastante resistente. Tradicionalmente, é amplamente utilizada para construção de casas e canoas por causa da sua resistência a térmitas e vermes marinhos. Também é usada para fazer tigelas, esculturas, móveis e até pranchas de surf⁵.
Sobre os usos medicinais: As flores tostadas são esfregadas nas gengivas ao redor dos dentes doloridos para aliviar a dor. O látex é massajado na pele para tratar ossos quebrados e entorses e é enfaixado na coluna vertebral para aliviar a dor ciática. É comummente usado para tratar doenças da pele e doenças fúngicas, como aftas. Esta última também é tratada com folhas esmagadas. Látex diluído é tomado internamente para tratar diarreia, dores de estômago e disenteria. Látex e suco das folhas esmagadas são tradicionalmente usados nas ilhas do Pacífico para tratar infeções nos ouvidos. A raiz é um adstringente e é usada como um purgante; quando macerada, é usada como cataplasma para doenças da pele. A casca é usada em várias ilhas do Pacífico para tratar a dor de cabeça. Nas Índias Ocidentais, a folha amarelada é transformada em chá e tomada para reduzir a tensão alta. O chá também é pensado para controlar o diabetes. As folhas são usadas em Taiwan para tratar doenças do fígado e febres, e um extrato das flores foi eficaz no tratamento do edema de ouvido. Extratos de casca exibiram fortes atividades citotóxicas contra células de leucemia em cultura de tecidos, e extratos de raízes e casca do caule mostraram alguma atividade antimicrobiana contra bactérias Gram-positivas, e pode ter potencial no tratamento de tumores⁵.
A propagação da Árvore-do-Pão é feita de duas maneiras, consoante a variedade. A fruta-pão com sementes propaga-se através destas mesmas sementes. A fruta-pão de massa propaga-se utilizando-se a sua capacidade de produzir brotações ou rebentos das raízes, os quais devem ser retirados em dia chuvoso e encanteirados diretamente no solo ou em embalagens previamente preparadas com uma mistura de terra vegetal, areia e cinza. Caso não se constate brotações, as mesmas podem ser provocadas, machucando-se, ferindo-se, ou mesmo anelando-se as raízes de uma planta adulta. Este método é muito comum sendo bastante utilizado pelos agricultores¹. Significa isto que a dispersão geográfica da árvore-do-pão está largamente dependente dos humanos⁶.
Os europeus descobriram a fruta-pão no final do século XVI. Ficaram maravilhados e encantados com uma árvore que produzia frutos ricos em amido que, quando assados no fogo, pareciam pão recém-cozido em textura e aroma⁷.
Distribuição da Árvore-do-Pão.
Imagem retirada de Kew Science
Como é que a árvore saiu da região Indomalásia e se espalhou pelo mundo? Os ingleses aparentemente terão sido os pioneiros. Creio que toda a gente ouviu falar do filme “Revolta na Bounty”, de 1962, com o ator Marlon Brando. Bom, as novas gerações provavelmente nunca ouviram falar. “Revolta na Bounty” conta a história do famoso motim a bordo do navio Bounty, que começa em 1787 e se desenvolve durante uma longa viagem no mar. O capitão William Bligh é o responsável pelo barco. A sua crueldade sem limites vai fazendo aumentar o clima de tensão imanente. A tripulação, chefiada pelo imediato Christian Fletcher (Marlon Brando) insurge-se contra o capitão, acabando por se revoltar. O filme foi nomeado para sete Óscares em 1963⁸.
A viagem do Bounty, comandado por William Bligh, foi celebrada na história e na literatura pelo seu final melodramático; não tão amplamente conhecido é o facto de que a sua missão era tão incomum quanto o seu desfecho era violento. William Bligh estava envolvido num projeto de considerável importância científica e económica. Ia tentar transportar árvores de fruta-pão, vivas, do Tahiti, a principal ilha do Arquipélago da Sociedade, no sul do Pacífico, para as Índias Ocidentais britânicas no outro lado do mundo.
O projeto da fruta-pão surgiu das necessidades dos plantadores britânicos nas Índias Ocidentais. No século XVIII, nas ilhas da Jamaica, Barbados, São Vicente, Granada e Trinidad plantava-se amplamente a cana-de-açúcar. Os plantadores, lamentando a quantidade de terra e tempo ocupados na produção de alimentos (mandioca, inhame e banana) para alimentar os seus escravos, pensaram ter visto uma solução na fruta-pão. Notícias desta comida fabulosa foram trazidas para a Europa por vários exploradores dos Mares do Sul, incluindo o aventureiro Capitão Cook.
Os plantadores das Índias Ocidentais estavam fascinados: a cultura da fruta-pão usaria relativamente poucas terras, a planta espalha-se rapidamente, não é danificada por furacões, tem frutos quase o ano todo, não necessita de cultivo e está bem adaptada ao clima caribenho. A maior dificuldade era que a árvore não podia ser cultivada a partir de sementes; teria que ser transportada milhares de quilómetros para ser transplantada dos Mares do Sul para as Índias Ocidentais. Isso significa uma viagem de vários meses ao redor do Cabo Horn ou do Cabo da Boa Esperança, durante o qual as delicadas árvores tropicais teriam que ser alimentadas cuidadosamente e protegidas do mar, do ar salgado e do frio das baixas latitudes. Os colonos apelaram ao Reino para ajudar nesta missão.
Sir Joseph Banks, presidente da Royal Society, que havia sido naturalista na primeira viagem de Cook aos Mares do Sul e conhecia a fruta-pão em primeira mão, assumiu a sua causa. Persuadiu o Rei George III a fretar um navio e escolheu como seu capitão Bligh, que também navegou com Cook e tinha um grande interesse pela história natural. Para acompanhar Bligh como guardiões das árvores, Sir Joseph selecionou dois horticultores dos Jardins de Kew chamados David Nelson e William Brown. Elaborou instruções detalhadas para ajudá-los. O capitão e a tripulação do navio, disse ele, teriam que desistir das suas melhores acomodações e suportar alguns inconvenientes para cuidar das plantas. “É necessário que a cabine seja usada para o único propósito de fazer uma espécie de estufa, e a sua chave será dada à custódia do jardineiro… Não são permitidos cães, gatos, macacos, papagaios, cabras ou qualquer animal a bordo, exceto os porcos e aves para uso da Companhia; e eles devem ser cuidadosamente confinados às suas gaiolas. Todas as precauções devem ser tomadas para evitar ou matar os ratos sempre que for conveniente. Como o veneno será constantemente usado para destruí-los e também às baratas, a tripulação não deve queixar-se se alguns deles, que podem morrer dentro da embarcação, causarem um cheiro desagradável”.
Foto 908 – Capitão William Bligh
Foto retirada de Royal Museums Greenwich
O Bounty partiu de Inglaterra a 15 de outubro de 1787. Partiu fazendo a rota ao redor da América do Sul, mas não conseguiu contornar o Cabo Horn; depois de trinta dias de batalha com o vento e as correntes, Bligh virou e atravessou o Atlântico Sul para ir pela outra rota ao redor da ponta de África. Chegou ao Cabo da Boa Esperança a 22 de maio. Aqui passou quarenta dias a reparar e reabastecer o navio. A 24 de outubro, depois duma viagem dum ano, o navio chegou ao Tahiti⁹, onde tiveram de esperar mais cinco meses para que as plantas estivessem prontas para serem transportadas.
No momento em que finalmente zarparam para as águas das Caraíbas, já com as plantas a bordo, os homens de Bligh já se tinham habituado à vida fácil e paradisíaca naquela ilha da Polinésia – e às mulheres tahitianas. Muitos deles não queriam sair. E assim, a 29 de abril de 1789, apenas com um mês de viagem através do Pacífico Sul em direção às Índias Ocidentais, o imediato Fletcher Christian e outros 18 tripulantes descontentes forçaram Bligh, e mais 18 dos seus partidários, a partir num bote salva-vidas de 7 metros. Atiraram todas as plantas da fruta-pão ao mar e partiram com o navio sozinhos¹⁰.
Mergulhado num bote salva-vidas com 18 membros da sua tripulação e com comida suficiente para uma semana, Bligh navegou o alto mar e enfrentou tempestades perigosas durante um período de 48 dias, usando a sua memória dos poucos mapas que tinha visto destas águas praticamente desconhecidas. A sua conclusão desta viagem de 3.618 milhas (6,701 km) em segurança na ilha de Timor, ainda é considerada como a mais notável façanha de navegação marítima e navegação jamais realizada num pequeno barco. Como sinal da sua estima e confiança, o Almirantado Britânico promoveu o jovem tenente Bligh a capitão – e meteu-o noutra missão de dois anos, de volta ao Tahiti em busca da infernal fruta-pão.
2126 plantas de fruta-pão foram transportadas desde o Tahiti, em vasos e banheiras, armazenadas no convés e no viveiro abaixo do convés. O jardineiro da expedição descreveu as depredações infligidas pelas “extremamente problemáticas” moscas, frio, “o prejudicial ar do mar”, água salgada e água racionada; no entanto, 678 sobreviveram até chegar às Índias Ocidentais, sendo entregues primeiro a São Vicente e, finalmente, à Jamaica. E foi em fevereiro de 1793 que o capitão William Bligh, cumprindo por fim sua importante missão, supervisionou o seu primeiro depósito de 66 espécimes de fruta-pão do Tahiti, todos “nas melhores condições”, nos Bath Botanical Gardens.
O navio de Bligh, chamado Providence, tinha chegado a Port Royal, em Kingston, em 1793, com alguma fanfarra, a sua “floresta flutuante”, segundo um oficial do navio, “ansiosamente visitada por números de todos os níveis e graus” – tanto que outro oficial reclamou,”O comum civismo de andar à volta do navio com eles e explicar-lhes as Plantas tornou-se, pela sua frequência, atribulado.”¹¹
Foto 909 – Joseph Banks
Foto retirada de The Royal Society
E depois de todo este tempo e problemas, ninguém gostou da fruta-pão. Os escravos recusaram-se a comê-la. Embora o nome comum “fruta-pão” venha da suposta semelhança da fruta com o pão acabado de cozer, o consenso mais amplo é que o seu sabor é insípido. Alguns comparam-na a um cruzamento entre batata mal cozida e banana. Outros mencionam pasta de papel. Passaram-se algumas décadas até que o novo alimento fosse geralmente aceite nas ilhas, época em que a escravidão, abolida no Império Britânico em 1834, já era uma coisa do passado¹².
Os britânicos não estiveram sozinhos nos seus esforços para levar a fruta-pão às suas colónias tropicais. Os franceses centraram os seus esforços de introdução de plantas no Jardim Botânico de Pamplemousse, nas Ilhas Maurício. O amendoim (Artocarpus camansi) foi coletado nas Filipinas em 1776 e enviado para colónias francesas nas Caraíbas e em outros locais na década de 1780 em diante. Uma variedade de fruta-pão tonganesa sem sementes, conhecida como kele kele, chegou à Martinica, Guadalupe e a Caiena, Guiana Francesa, no final da década de 1790⁷.
A árvore disseminou-se nos trópicos americanos como ornamental, tendo sido também usada para sombrear café e cacau na Venezuela. Atualmente, a fruta-pão prospera nos trópicos e subtrópicos, onde vive 80% da população faminta do mundo.
Sobre São Tomé e Príncipe – especificamente – não se encontra nada na internet. Os ingleses têm a sua história publicada por todo o lado. Terá sido levada pelos portugueses para alimentar os escravos? Ou para fazer sombra ao café e ao cacau? Ou as duas coisas? Deve existir um livrinho de páginas amareladas escondido numa biblioteca, algures, com este tema. Mas ninguém digitaliza essa alma penada. Esse livrinho amarelado escondido na prateleira poeirenta duma biblioteca tem de ser digitalizado e disponibilizado na internet. Ou pelo menos publicado o resumo e o autor, para sabermos que ele existe. Isto pressupondo que o livrinho existe mesmo. Eu não quero acreditar que ninguém estudou o assunto, que nenhum entendido na matéria investigou como chegou a fruta-pão a São Tomé e Príncipe.
Cacau. Ainda está verde. Quando fica amarelo é que está maduro.
A chegar à Roça Sundy.
A antiga fábrica – ou oficinas – da Roça Sundy.
Este edifício branco é a capela da Roça.
A cadeira de rodas em frente a este caminho é intrigante. Eu já estou sem água e sem comida. Tenho de chegar rapidamente à cidade de Santo António. Preciso dum restaurante, preciso de comer, e tenho de reabastecer-me de água. Trouxe apenas dois cantis de água, em vez dos três, e não foi uma boa opção. É que não há nada onde comprar. Senão ainda ia espiolhar este lindo caminho pelo meio da floresta.
A chegar à cidade. Levei 55 minutos desde a Roça Sundy. Não há nada melhor do que a ameaça de fome e sede, bem como a perspetiva dum restaurante, para fazer-me acelerar… Foram agora 12,1 km na volta. Total: 24,9 km.
Porque estará esta multidão na rua? Inclusivamente um carro da polícia. E coloquei esta questão a um pequeno grupo ali reunido. Está a haver um despejo, disseram-me. E depois ouvi um rapaz troçar: “E estão todos especados a olhar para a desgraça do homem?!”
Já não entro com a bicicleta no hotel porque não tenho paciência de subir e descer escadas com ela, fica presa na rua. Com um cadeado destes, bem que podem ficar toda a tarde a serrá-lo. (Como se alguém ligasse à bicicleta… ninguém se aproxima sequer. O meu receio são mesmo as crianças que querem brincar e experimentá-la. Acontecer algo à bicicleta aqui seria fatal. Não há peças. Nem cantis de água se vendem, quanto mais peças especializadas de ciclismo. Teria que mandar vir de fora).
O restaurante da Kita hoje está fechado. Pelos vistos fecha às segundas-feiras. Fui ao restaurante da marginal, uma bonita esplanada a ver o mar, e estava tudo deserto, apenas uma rapariga a arrumar as coisas. “Hoje não temos nada”, disse-me. E não explicou mais nada. Eu fiquei a olhar. (Terá morrido alguém? Será que fecharam para férias? Posso cá voltar noutro dia?…) “Então e quando é que vão ter?” – perguntei. “Amanhã” – respondeu-me. Será o mesmo da Kita, também fecham às segundas-feiras. “Hoje são só limpezas”, esclareceu-me.
Então onde é que eu vou almoçar? Bom, vou dar uma volta de bicicleta pela cidade à procura de restaurantes. Tirei esta foto quando andava a deambular de bicicleta à procura deles. Também fui à procura da Norá, que entretanto me enviou um “Call me”, um daqueles sms automáticos para eu ligar de volta. Aproveitei e fui bater-lhe à porta para questioná-la sobre restaurantes. Mas a Norá não está, veio à porta uma senhora que me informou isto. Perguntei-lhe a ela sobre restaurantes, e ela indicou-me um nesta rua.
“O que servem hoje?” – questionei ao dono deste restaurante, que vai aparecer numa foto mais abaixo. “Molho de fogo” – respondeu-me. Vendo o meu ar intrigado, esclareceu: “É um prato típico do Príncipe, feito com peixe seco”. E eu fui espreitar o que as pessoas estão a comer. “Tenho receio de não gostar” – disse-lhe – “deve ter muitas espinhas e eu não gosto”. E eu ia arrancar na bicicleta, mas o dono disse: “Não, não tem espinhas, são todas retiradas!”. Eu muito hesitante. “Bom, vamos lá experimentar isso. Pode dar-me um bocadinho para eu experimentar?” – perguntei eu, encostando a bicicleta à parede, na entrada. Disse-me para sentar-me nesta mesa à direita, e esperei.
Para surpresa minha, veio o prato inteiro. Era suposto eu provar apenas, e se gostar é que viria o prato inteiro, mas ele não terá percebido. E trouxe-me também fruta-pão assada, no prato à direita. Vai ser a minha estreia com a fruta-pão e com o molho de fogo. Pois não sobrou nada. Ou melhor, sobrou arroz, e pouco mais de uma fatia da fruta-pão. O molho de fogo é bom mesmo. É picante! Normalmente tento evitar o picante, não sou propriamente adepta, mas agora ou vai ou racha. Pelo que percebo tem quiabos, que eu gosto bastante. Perguntei qual é o peixe, mas o dono pensou, hesitou, até que disse que não sabe qual é. E não tem espinhas mesmo. Muito bom. A fruta-pão nem sei bem como descrever. Talvez um misto de castanhas cozidas e batatas cozidas. Tem um sabor muito discreto. Alimenta bem uma ciclista já esfomeada, por esta altura. Afinal de contas acordei às 4 e meia da manhã. Quem acorda às 7, almoça à uma. Eu acordei 2 horas e meia antes, deveria almoçar 2 horas e meia antes também. É como acordar às 7 e almoçar apenas às 15H30. É certo que comi a barra de proteína e o gel energético, efetivamente comi um bife a meio da manhã, mas nada substitui um pratinho de comida verdadeiro como este. Por cem dobras. Um pouco caro, mas pronto, é uma especialidade, é mais caro.
O dono do restaurante chama-se Paixão e gere este negócio com a mulher. A mulher não está aqui agora. “Qual é o menu amanhã? – perguntei. “Eu combino com a minha mulher ao final do dia o menu do dia seguinte” – explicou-me. “Ainda não sei o que vai ser amanhã”. Perguntei por sobremesa. Respondeu o mesmo que a Kita ontem: “Às vezes temos, mas hoje não”. Fui para o quarto comer uns chocolates que trouxe de Lisboa. Antes disso o Paixão esteve a ver o meu GPS – a minha aplicação do Maps.me (aquele telemóvel é o meu) e a falar-me de várias terras no Príncipe para eu visitar na bicicleta. Falou-me do Bom Bom, entre outras. Lá chegarei, lá chegarei.
Antes de ir para o hotel passei pelos escritórios do Parque Natural para informar-me sobre passeios neste. À porta, de calças amarelas, está um dos guardas e guias do Parque. Chama-se Biquegila, disse-me. Nem sei se é assim que se escreve. “Tem um nome muito estranho” – disse-lhe eu a rir-me. A pessoa que pode inscrever-me num passeio não está aqui de momento, terei que regressar mais tarde.
Fui então ao quarto buscar os meus comprimidos da malária para entregá-los no hospital. É verdade, tenho comprimidos da malária comigo – são os que levei para Timor no ano passado e que não pude tomar porque me provocam fortes dores de estômago. São três caixas. Cada caixa custou 34,67€. Ou seja, tenho 104,01€ de comprimidos contra a malária comigo. É mais caro do que a passagem do avião para o Príncipe, que custou 82€ (mais uma carga enorme de peso excessivo pago a 5€ o quilo, é certo). 104,01€ equivale a 2.600 dobras, uma pequena fortuna no Príncipe. Há quem não receba isto num mês de ordenado. De facto duas pessoas na ilha de São Tomé dir-me-ão qual é a sua remuneração mensal. Uma dessas pessoas trabalha na função pública e ganha 3.000 dobras mensais (120€). Outra pessoa trabalha para um particular em serviços de limpezas, e ganha 2.000 dobras mensais (80€). Consultando os dados do Instituto Nacional de Estatística de São Tomé e Príncipe – dados de 2017, são os últimos disponíveis à data a que escrevo – o melhor ordenado está na área dos transportes e comunicações: 10.000 dobras mensais (400€). O ordenado mais baixo está na pecuária e pescas, com 1.300 dobras mensais (52€). A função pública ganha uma média de 2.600 dobras mensais¹³, precisamente o preço deste medicamento que eu tenho na mão. O ordenado dum mês dum funcionário público está na minha mão, encarnado nuns miseráveis comprimidos. Comprimidos estes que podem salvar uma vida!
Efetivamente quem me sugeriu isto – dar os comprimidos em São Tomé e Príncipe – foi a médica que me fez um check-up geral, em Lisboa. O meu check-up anual. Já nem sei como, calhou em conversa eu dizer que não posso tomar os comprimidos, que tenho três caixas para dar. E ela perguntou-me porque não os deixei em Timor. Nem me lembrei de tal. É evidente, devia tê-los deixado lá. Bom, então agora vou deixá-los em São Tomé e Príncipe.
A bicicleta ficou presa e eu entrei no hospital. Pela segunda vez. Já conheço tudo lá dentro.
O que eu não estava à espera é que me recusassem os comprimidos. Tive que andar à procura de alguém que pudesse atender-me e a quem eu pudesse explicar o porquê de eu estar a dar estes comprimidos. Uma enfermeira que estava de saída, já tinha despido a bata, andou à procura de alguém ligado à farmácia. Veio uma (farmacêutica? não sei) de bata branca falar comigo. Despachou-me num minuto. O hospital tem um protocolo, disse-me. E enumerou-me três ou quatro outros medicamentos. Este não usam. Bom, confesso que fiquei um pouco contrariada. Esta coisa custa o ordenado dum mês de muita gente. Eu não posso tomar isto porque me rebenta com o estômago. Mas pronto, o hospital tem um protocolo. E fui-me embora com os comprimidos. Não me digam que isto ainda vai voltar para Portugal outra vez. Vi um centro de saúde no outro dia, logo no segundo dia, vou lá agora. Pode ser que no centro de saúde me aceitem os comprimidos.
A caminho do centro de saúde passei pela Lucila e pela Tânia. Parei, desmontei e fui cumprimentá-las. Sentei-me um pouco. Contei-lhes do episódio dos comprimidos contra a malária. Perguntei-lhes se não conhecem ninguém com malária que queira tomá-los. A pergunta é insólita e rapidamente acrescentei: “É bom que não conheçam!! É bom que não haja ninguém com malária no Príncipe!!” Resultado: “Eu deixo-vos os comprimidos. Se alguém precisar de comprimidos contra a malária, pode tomá-los”. E deixei-lhes também a fatura da farmácia portuguesa onde os comprei, com o preço especificado para que não existam dúvidas. Espero que os vendam, que façam algum dinheiro, e que os comprimidos ajudem alguém a combater ou a prevenir a malária. Isga-se.
Entretanto perguntei à Lucila e à Tânia se sabem onde posso comprar uma vela e fósforos. Tenho que resolver isto, eu acordo às 4 da manhã, só amanhece às 5.30h, tenho que iluminar o quarto de alguma forma. Os faróis da bicicleta até dariam jeito… se eu tivesse trazido o cabo correto para carregá-los. Enganei-me no cabo, trouxe outro qualquer que não serve neles. Então a Tânia levou-me a uma casa (que descobri ser uma mercearia bem escondida) onde me venderam a vela e os fósforos por dez dobras. No caminho passámos por estes dois homens e eu aproveitei logo para fotografá-los. Pedi antes. Anuíram.
Despedi-me da Lucila e da Tânia e fui ao mercado comprar fruta. Quero bananas, ananás e sap-sap – uma fruta que ambas me falaram e mostraram a sua árvore, lá ao fundo. Também quero comprar leite. Esta fotografia tirei-a no mercado, às únicas bananas maduras que estão à venda. Mas a senhora que está a vender disse-me que são banana-pão, não tem banana-prata. A banana-pão é para cozinhar. A banana-prata é para comer no momento, crua. Resultado: não há fruta nenhuma para eu comprar. No mercado disseram-me que é difícil arranjar fruta, para eu ir às 6 da manhã ver se chegou alguma coisa.
Numa das quitandas ao lado do mercado perguntei por leite. (“Quitanda” é uma pequena loja ou barraca de negócio). 75 dobras, fresco, numa arca frigorífica alimentada a gerador, porque a esta hora não há luz na ilha, só vem ao final da tarde. Isto é caríssimo. Mas eu ainda não me habituei à moeda – aos cálculos – e aos preços praticados no Príncipe. São as primeiras compras que faço. Pelo que comprei o pacote de leite a preço de turista (alemão, se calhar, porque em Portugal um litro de leite destes custa 70 cêntimos ou menos. 75 dobras são 3€). Se a menina Rute tivesse comprado numa das duas mercearias que existem na sua própria rua – do seu hotel – teria comprado a metade do preço, mas pronto. A Rute ainda não sabe nada. Um litro de leite no Príncipe custa 35 dobras, ou seja 1,40€. O preço está marcado. O mais barato que encontrei foram 30 dobras. E mesmo assim são caríssimos. Mas o leite vem de Portugal, é transportado num barco de São Tomé que de vez em quando vai ao fundo e morrem pessoas. Tudo é caro no Príncipe. Haverá alguém que beba leite no Príncipe, a este preço? E quase não há vacas em todo o país, não se produz leite nem queijo. Andei em busca de vacas, e questionei várias pessoas quer no Príncipe, quer em São Tomé. Onde andam as vacas? Só há vacas aqui e ali. São muito caras, dizem-me. Comprar um bezerro custa não sei quantos milhões de dobras. Só as empresas é que têm vacas. Se existirem cinquenta vacas em todo o país, já é muito.
Também perguntei por pacotes pequenos de leite com chocolate. Não têm. Eu trouxe oito pacotes, já só tenho um. Todos pagos a peso de ouro no avião. Os oito pacotinhos pesam 1,6 kg. A 5€ o quilo, no avião, foi lindo. Vou sair desfalcada desta ilha para conseguir alimentar-me devidamente. Ou então tenho que ir pescar e apanhar fruta-pão das árvores.
Cá estão as “quitandas”, pequenas lojas ou barracas de negócio, na rua central de Santo António.
Às 15H30 recolhi-me no quarto. Não há água nem luz. Fiz hoje 31,6 km na bicicleta. Velocidade máxima 51,6 km/h. Dei-lhe bem. Até a água vir, às 17h, estou estendida na cama a selecionar as fotos do dia e a fazer os backups na cloud. Estas modernices são fabulosas. Posso estragar a máquina, posso perdê-la, podem roubar-ma – que as fotos estão salvaguardadas na cloud. Máquinas há muitas. Fotos já é mais complicado repetir tudo. Sempre a ouvir um gerador a trabalhar ao lado do hotel. Até às 4 da manhã. E mesmo assim ouvem-se muitas motas. No quarto aparentemente não renovam o papel higiénico, logo ao 3º dia tive de pedir um rolo. Como é que se raciona o papel higiénico, digam-me lá. Ando a mendigar papel higiénico. Tenho que comprar um rolo também, está visto. Vieram fazer a cama e deixar-me o pequeno-almoço no quarto hoje de manhã, com menos um ovo (e protestei por isso junto do gerente do hotel) e apenas um quarto dum ananás. Lá se foi o meu ananás inteiro. E o pior é que não consigo comprar fruta. O quarto tem wifi, frigorífico, ar condicionado. Mas de nada servem o frigorífico e o ar condicionado, pois estão sempre desligados com os cortes de luz. Às 18H30 voltou a faltar a luz, mas aparentemente continua a haver água. Escuridão total. Receio sempre estar a tomar banho e faltar a água. Mas vá lá, veio novamente ao fim de 5 minutos. Foi só um susto. Antes de deitar-me, tenho que planear o destino de amanhã. Para onde queres ir amanhã, Rute?
¹ Calzavara, Batista Benito Gabriel (1987) “Fruticultura Tropical, a Fruta-Pão”. Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa, e Centro de Pesquisa do Trópico Húmido – CPATU. Página consultada a 12 Setembro 2019,
<https://www.infoteca.cnptia.embrapa.br/bitstream/doc/383722/1/DOCUMENTOS41CPATU.pdf>
² Bezerra, Erick dos Anjos et al (2017) “Biometria e características físico-químicas da fruta-pão (Artocarpus altilis)”. Revista Verde de Agroecologia e Desenvolvimento Sustentável, V.12, Nº 1, pp. 100-104. Página consultada a 12 Setembro 2019,
<https://www.gvaa.com.br/revista/index.php/RVADS/article/view/5027/4283>
³ Moreira, D.K.T. et al (s.d.) “Obtenção e Caracterização Físico-Química do Amido de Fruta-Pão”. Universidade Federal do Pará e Embrapa Amazónia Oriental, Laboratório de Agroindústria. Página consultada a 12 Setembro 2019,
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⁴ “Artocarpus altilis” (s.d.). Wikipedia. Página consultada a 12 Setembro 2019,
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⁵ “Artocarpus altilis” (s.d.), World Agroforesty. Página consultada a 12 Setembro 2019,
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⁸ Mata, Mariana (s.d.) “Revolta na Bounty”. Cinecartaz, Público. Página consultada a 12 Setembro 2019,
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¹¹ Alexander, Caroline (2009, Setembro) “Captain Bligh’s Cursed Breadfruit”. Smithsonian Magazine. Página consultada a 12 Setembro 2019,
<https://www.smithsonianmag.com/travel/captain-blighs-cursed-breadfruit-41433018/>
¹² Rupp, Rebecca (2016, 28 Abril) “Breadfruit and ‘The Bounty’ That Brought It Across the Ocean”. National Geographic. Página consultada a 12 Setembro 2019,
<https://www.nationalgeographic.com/people-and-culture/food/the-plate/2016/04/28/breadfruit-and-the-bounty-that-brought-it-across-the-ocean/>
¹³ “Salários” in “São Tomé e Príncipe em Números 2017”, p. 26. Instituto Nacional de Estatística – INE. Página consultada a 12 Setembro 2019,
<https://www.ine.st/index.php/publicacao/documentos/file/414-stpemnumeros-2017>