117 – Graciosa – Farol da Ponta da Barca & Vitória
São 8h44, esta terra chama-se Barro Vermelho e aqui temos a Sílvia e a sua cadelinha Maki. Não há mais ninguém a não sermos nós. Claro que meti conversa.
Então a Sílvia é artista plástica! Terminou a licenciatura na Faculdade Belas-Artes do Porto, e vai começar agora o mestrado. A Sílvia é aqui da ilha Graciosa – é graciosense, portanto; está acampada aqui com os amigos, e trabalha também aqui, um emprego de verão para ganhar uns trocos.
A Sílvia encontrou a cadelinha Maki no mato sozinha, muito pequena e assustada: alguém a abandonou. Que triste. A Maki nem sabe a sorte que teve, ao ser encontrada pela Sílvia. Agora as multas por abandono de animais triplicaram. Isto é um flagelo que nos assola, este desinteresse dos humanos pelos animais. Enfim, podemos argumentar que há um desinteresse dos humanos pelos próprios humanos: não matam bebés e crianças? E maltratam-nas, e torturam-nas? Quando mais um cão. É tudo a mesma rês. Ainda não consegui perceber qual é o intuito da presença humana no planeta e no universo, mas há de haver algum intuito, não? O que andamos cá a fazer? A comer, a dormir, a procriar, a destruir o planeta com os nossos telemóveis, baterias de lítio e parafernálias, a comer massivamente e a maltratar os animais… confesso que ainda não consegui perceber o que ando – e andamos todos – cá a fazer, qual o objetivo disto disto. Mas enfim, cada qual acredita no que quer, e algumas pessoas agarram-se às religiões e ao transcendente no sentido de encontrar uma esperança, ou algo em que acreditar, algo de bom, um refúgio. Certo. Enquanto morro e não morro, enquanto vou destruíndo o planeta com as minhas embalagens de plástico compradas no supermercado, ao menos tento aproveitar estes anos ao máximo. Que morra em grande, depois de tanto mal.
(E esta, heim?… – Alguém se lembra do Fernando Pessa? O jornalista português que viveu entre 1902 e 2002? Viveu cem anos! E ele terminava os seus programas de televisão com esta frase: “E esta, heim?” Era o seu substituto dos palavrões que tinha vontade de dizer quando denunciava situações menos agradáveis).
Bom, depois deste momento dramático, aligeiremos a vida e as circunstâncias. Prossegue este lindo passeio pela linda ilha Graciosa. Respira fundo, Rute, tem calma. Há de haver um propósito, tu é que não sabes. Pedala e cala-te.
Há muitos tiros. Vou pedalando sempre ao som de tiros.
E aqui estão os currais de pedra para plantar as vinhas, conforme já expliquei na crónica 80, na ilha do Pico.
A chegar ao Farol da Ponta da Barca.
Farol da Ponta da Barca.
O farol da Ponta da Barca entrou em funcionamento em 1 de fevereiro de 1930. Tem uma torre com 23 metros de altura e 71 metros de altitude. A iluminação funcionava a gás. Foi eletrificado com energia da rede pública em 1999. Foi edificada mais uma habitação orçamentada em 50.000$00 em 1952. Anos mais tarde viria a ser construída uma outra habitação, para que a farol passasse a ter uma lotação de quatro faroleiros. Em 1978 uma forte trovoada fez grandes estragos no farol e habitações.¹
Não se pode visitar o Farol nesta altura por causa da pandemia da Covid-19.
Estas fotos foram tiradas pelas frinchas das janelas, que estavam abertas. Efetivamente vi um casal a sair de carro. Eu a chegar na bicicleta, e eles a saírem no carro. Se calhar era o faroleiro e a mulher.
Eu já ativei um conta-quilómetros no telemóvel, para o caso de este se desligar entretanto. Recordo que esta manhã, quando acordei, tinha a tomada do carregador de pilhas desligada da parede. Devo ter tropeçado nela e nem dei conta. Além do mais estas pilhas recarregáveis estão a atingir o limite de utilizações, é altura de substituí-las. Na próxima viagem já trarei outras. Estas duram há anos.
Repare-se que estive tanto tempo em movimento como parada.
Aquela rocha em cima tem a forma de uma baleia. Chama-se Ilhéu da Baleia e se porventura se lembrarem, é a capa que consta na embalagem das queijadas da Graciosa, que mostrei na crónica 106. As queijadas da ilha branca, diz a embalagem. A Graciosa é conhecida como a “Ilha Branca”. Porquê ilha branca?
Há várias versões:
Uns dizem que é devido às rochas claras que existem na costa sul, onde a encosta da Serra Branca se junta ao mar².
Outros dizem que se deve à baixa pluviosidade, a qual leva à relativa secura da ilha, o que lhe dá no fim do estio uma tonalidade esbranquiçada, que associada ao casario branco das povoações lhe deu o epíteto de ilha Branca, que lhe foi atribuído por Raul Brandão na obra As Ilhas Desconhecidas (1926).³ Esta explicação então está mesmo trapalhona.
Também encontro esta versão: “A sua denominação de “ilha branca” provém das suas caraterísticas geomorfológicas e também pela sua toponímia: Pedras Brancas, Serra Branca e Barro Branco (locais da ilha que detêm o nome branco).” ⁴
Mas com esta explicação ficamos na mesma: porque deram o nome de Serra Branca a uma serra verde? Barro branco porquê? Se eu apenas vi barro castanho? Há de haver branco algures, não duvido, mas daí a chamar à ilha inteira “ilha branca”, vai um grande passo.
Encontro esta citação dos textos de Raul Brandão (que aparentemente não deu grande atenção à ilha Graciosa: “Em 1924, a ilha continua a ser desconhecida para Raul Brandão, que a retrata apenas da sua visão de embarcado, sem a Graciosa lhe ter merecido um passeio personalizado.”⁵). Continuando a citar: “A terminar, recordemos a descrição de Raul Brandão sobre a Graciosa em Junho de 1924: “Na luz matutina e fria das quatro horas tenho diante de mim um espectáculo único, quatro ilhas saindo do mar ao mesmo tempo – a Graciosa dum verde muito tenro acabando dum lado e do outro em penhascos decorativos… É só num ponto e passa num instante porque o navio não pára… enquanto a Graciosa ali perto se mostra toda verde”. O verde (e não o branco!) graciosense parece ter sido reconhecido pela UNESCO que, em 2007, declara a ilha como Reserva da Biosfera.”⁵
Portanto, parece que essa história do Raul Brandão ter dado o nome de “ilha branca” à Graciosa não é verdadeira. Uma pessoa já nem sabe no que acreditar, com tantos textos contraditórios na internet.
Bom, eu só sei que a única coisa branca que eu vi foram as casas. E umas vaquinhas malhadas, pretas e brancas. Tudo é resto é verde e bem verde. Que invenções estas, que se perdem no tempo e ninguém sabe de onde vêm. A partir de agora é ilha verde, meus amigos.
Bom, e tantas fotos tirei e por aqui andei, que o faroleiro regressou no carro, com a mulher. Se calhar foram tomar o pequeno-almoço algures. Ou fazer alguma compra. Chama-se Fábio, está desfardado, disse-me, porque hoje é domingo. Mas eu pedi-lhe para tirar-lhe uma foto na mesma, de recordação. Um faroleiro graciosense. Por acaso não sei se nasceu aqui na ilha Graciosa, esqueci-me de perguntar. Se não nasceu, pelo menos agora é um faroleiro graciosense.
Agora vou apontar para a Baía da Caldeirinha. Não tinha planos de lá ir. Os planos eram sair do farol e ir para Guadalupe e uma terra chamada Jorge Gomes. Mas troquei o percurso aqui no farol, ao perceber que é bonito e quase sem trânsito.
Ermida de Nossa Senhora da Vitória – Porto Afonso.
O Porto Afonso fica a pouca distância daqui, na próxima crónica lá chegarei. Qual a ligação desta Ermida com o Porto? Pelo que leio, antigamente existia uma fortificação destinada à defesa deste ancoradouro contra os ataques de piratas e corsários. Este ancoradouro e sua defesa encontram-se referidos por Gaspar Frutuoso, no final do século XVI, na sua descrição da Graciosa:
(Não estranhem o vocabulário, está escrito com o português do século XVI):
“Daqui a espaço de uma légua, correndo a costa direita a loeste, está uma ponta, onde faz um porto, que se chama de Afonso do Porto, em que não saem senão batéis de pescar, e, quando é tempo de verão, em que se temem dos imigos, cortam o caminho e não fica porto, nem vai ninguém abaixo; e será de vinte braças de alto, que do de João Dias até ali tudo é rocha mui alta.” (Op. cit., Livro VI, Capítulo XLIII.)
Neste pequeno porto pesqueiro registou-se, em 1623, uma incursão de piratas da Barbária. O episódio encontra-se referido numa anotação de João Teixeira Soares de Sousa, acredita-se que a partir de um extrato das “Crónicas da Província de S. João Evangelista das Ilhas dos Açores” (c. 1695), de Frei Agostinho de Monte Alverne:
“Sendo o capitão maior d’esta villa de Santa Cruz, Manoel de Quadros Machado, e capitão maior da villa da Praia, Gaspar Velho d’Azevedo, em 19 de maio de 1623, chegaram a esta ilha, oito fragatas d’Argel, e ancoraram onde chamam Affonso do Porto, e está uma Ermida de Nossa Senhora da Victoria, donde comettendo duas com Barcas e um Patacho para botarem gente em um caes feito pela natureza, os moradores da ilha com tanto valor lhe resistiram que não poderam entrar, sem morrer pessoa, nem ainda ficar ferida. Vinha n’estes navios um capitão, natural d’esta mesma ilha, o qual sendo resgatado em Argel pela Redempção geral, veio para Lisboa onde com as esmollas que tirou, mandou fazer uma imagem de Nossa Senhora da Victoria que hoje está na Ermida que fez o povo, nella viveu hermitão, e morreo como hermitão.” (Como os moradores excluiram os mouros querendo entrar n’esta ilha em 1623, in Arquivo dos Açores, vol. IV (reprod. fac-similada da ed. de 1882). Ponta Delgada (Açores): Instituto Universitário dos Açores, 1981. p. 185.)
De acordo com a tradição, os moradores conseguiram matar o líder do assalto, que terá ficado sepultado em local próximo à atual ermida. O capitão escravizado referido era Pedro Cunha Ávila.⁶
A chegar à povoação de Vitória.
Esta placa anuncia a inauguração do Largo da Beira-Mar da Vitória, em 2009, pela Secretaria Regional da Ciência, Tecnologia e Equipamentos. E tem o nome do então secretário.
Estas placas são curiosas. Em Lisboa não há placas nenhumas com a inauguração dos largos lisboetas pelas Secretarias ou seja lá por quem for. Aqui nos Açores talvez seja uma batalha tão grande inaugurar alguma coisa, com o pouco dinheiro existente, que as pessoas até fazem questão de colocar o seu nome. Será?
Uma vaquinha muito linda que anda aqui a passeaaaaaar!… – cantei-lhe.
Há muito tempo que eu não cantava.
– Adeus vaquinha. Tens poucas manchas pretas, és quase toda branquinha.
– Sim, inspiraram-se em mim para dar o nome de ilha branca à ilha Graciosa.
Vou seguir este rapaz. Ele deixou a bicicleta algures e meteu-se por este caminho. Ele nem dá conta que eu vou a segui-lo, com a bicicleta pela mão.
Os currais de pedra vulcânica, para plantação da vinha.
Onde é que ele irá?
Cá está ele. Cumprimentei-os. Veio ter com o avô, descobri entretanto, o qual está aqui a tratar das lides da terra. O avô chama-se Domingos, e o neto chama-se Ricardo.
O Domingos mostra-me tremoços e explica-me que estão bons para apanhar, porém está muito sol hoje. Têm picos. Sem sol os picos estão mais brandos, e se chovesse melhor. (Eu não fazia a mínima ideia disto, e disse-o ao Domingos).
Terminadas as lides agrícolas, o Domingos e o neto regressam a casa. O Domingos conhece as ilhas todas dos Açores. O Ricardo conhece (além da Graciosa) a ilha de São Jorge. O Ricardo não é daqui, é de Barcelos, no continente; o pai é polícia marítimo e está em comissão aqui por dois anos. Já cá tinha estado antes, mas em férias.
¹ “Farol da Ponta da Barca” (s.d.) Autoridade Marítima Nacional. Página consultada a 3 março 2021,
<https://www.amn.pt/DF/Paginas/FaroldaPontadaBarca.aspx>
² “Graciosa – a Ilha Branca dos Açores” (21 fevereiro 2017). Ambitur. Página consultada a 3 março 2021,
<https://www.ambitur.pt/graciosa-a-ilha-branca-dos-acores/>
³ “Graciosa” (s.d.) Wikipédia. Página consultada a 3 março 2021,
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Graciosa>
⁴ “Graciosa: Locais a não perder na sua viagem” (2020, 5 agosto). Guia Açores Natureza Viva. Página consultada a 3 março 2021,
<https://pt.azoresguide.net/graciosa-locais-a-nao-perder-na-sua-viagem/>
⁵ Costa, Susana Goulart (s.d.). “Graciosa, a Ilha Esquecida”. Instituto Açoriano de Cultura. Inventário do Património Imóvel dos Açores. Página consultada a 3 março 2021,
<https://www.iac-azores.org/iac2018/projetos/IPIA/graciosa/santacruz/graciosa-ilha-esquecida.html>
⁶ “Forte de Afonso do Porto” (s.d.). Fortificações no Mundo. Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Página consultada a 3 março 2021,
<http://fortalezas.org/index.php?ct=fortaleza&id_fortaleza=1682&muda_idioma=PT>