080 – Pico, 23º dia – São Roque, São Vicente, Santana

Hoje é 5ª feira, 23 de julho.
Despertador às 5h20. Mas acordei uns minutos antes.
Ouvi novamente cagarros a cantarem. É o mesmo som que ouvi na ilha do Corvo.

Hoje defini três destinos:
Eu estou alojada em São Roque. Em primeiro lugar vou ao Centro de Interpretação da Paisagem da Cultura da Vinha; em segundo lugar, ao Museu do Vinho, na Madalena, e finalmente à Gruta das Torres, que são tubos lávicos, ou seja, grutas onde antes correu a lava, e que entretanto ficaram ocas e é possível andar lá dentro.

Partida às 6h32. A primeira etapa tem 12 km e 120 metros de subida acumulada – vê-se o trajeto na linha azul em baixo.

Pico, o Titã, sempre à espreita.

Convento de São Pedro de Alcântara.

A decisão de erigir um convento franciscano em São Roque do Pico está intimamente ligada à erupção de 1718 cujas lavas destruíram parte da freguesia de Santa Luzia.
A relação entre a crise eruptiva e uma aparente ira divina terá impulsionado decididamente a pretensão mais antiga dos habitantes do Cais, terem sacerdotes que lhes dissessem a missa na então ermida de Nossa Senhora do Livramento.
Os habitantes do Cais tinham de se deslocar às paróquias de São Roque e Santo António da Furna para terem acesso à vida religiosa.
Muito mais ansiosos estavam de terem nesta jurisdição um hospício de religiosos, não só para lhes assistirem com a parte espiritual da palavra de Deus, confissão, assistência na hora da morte, enterros, sepulturas e missas, mas também na boa educação dos seus filhos, ensinando-os a ler, escrever e cantar, música, instrumentos e gramática.
Solicitada a autorização ao rei D. João V foi o beneplácito régio concedido em 1720, tendo-se dado continuidade ao processo com a angariação de fundos e escolha do local para a sua implantação.
O local recaiu sobre a área entre o primitivo centro da vila e o Cais do Pico, onde o capitão-mor Sebastião Ferreira de Melo e a sua mulher Margarida Vieira Pimentel tinham fundado, em 1658, uma ermida de invocação a Nossa Senhora do Livramento em reconhecimento pelo milagre que salvou, de uma esquadrilha de corsários mouros, a nau em que o seu filho navegava para Lisboa para ingressar na vida religiosa.¹

Em 1723 fundou-se a capela-mor, e na noite de natal de 1724 foi celebrada a dedicação da nova igreja. A obra decorreu durante um período de tempo longo: decorreram 10 anos desde a erupção que impulsionara o projeto quando as obras desta estrutura que durante mais de um século abrigaria os frades franciscanos, atingiu um estádio que permitiu a sua utilização.
Existem várias semelhanças entre o processo de fundação deste convento e dos conventos dos Franciscanos nas Lajes, e de Santo António, na Horta.
Estes edifícios foram construídos em locais onde pré-existiam ermidas fundadas por membros da elite local, e em todos eles a inovação das primitivas ermidas determinou a invocação às respetivas igrejas.
Ficou assim a venerar-se na igreja conventual a imagem de Nossa Senhora do Livramento, evocativa do milagre referido anteriormente.
Em 1832, na sequência do decreto concebido por Mouzinho da Silveira, põe-se fim a mais de um século de vivência religiosa franciscana no convento.
Com a extinção das ordens religiosas, a comunidade franciscana do convento de São Pedro de Alcântara teve de abandoná-lo.
Reza a lenda que numa noite, num lendário corredor subterrâneo que ligava o convento ao Portinho da Baía de São Roque, os frades embarcaram para um destino desconhecido.
“Levar a volta dos frades” começou então, na gíria popular, a conotar-se com o desaparecimento abrupto e misterioso de qualquer coisa.
Não se sabe ao certo se o túnel dos frades existiu ou se ainda existe, mas ainda hoje há quem reitere a sua existência.¹

“Ao liberal João Bento de Lima, Homenagem dos Picoenses”.

Fazendo pesquisa no Google por “João Bento de Lima” surgem dez páginas de resultados. Todas as dez páginas falam na Rua João Bento de Lima, na ilha do Pico. E ninguém explica quem é este João Bento de Lima. Felizmente há um blog de 2009, de um senhor David Avelar, açoriano, a viver há 45 anos no Brasil (isto em 2009) que publicou um email de outro senhor: um Francisco Medeiros. E é este senhor Francisco Medeiros quem explica – naquelas dez páginas do Google, que eu me dei ao trabalho de pesquisar todas, uma por uma – quem explica finalmente quem é o João Bento de Lima. Passo a transcrever o seu texto, com ligeiras adaptações:

João Bento de Lima, nascido a 13 de Dezembro de 1859, gozava de grande prestígio político em todo o concelho de São Roque do Pico, por isso tornou-se chefe local do Partido Progressista, baseado no liberalismo.
Figura de grande relevo na ilha do Pico, era considerado pela sua retidão de caráter na condução da administração local, sempre disponível para servir quem o procurasse, mesmo que não professasse as suas ideias.
Amigo pessoal do Dr. José Afonso Botelho Andrade, ilustre escritor residente em Ponta Delgada, que desenvolveu brilhante atividade na instrução deste arquipélago, este convenceu João Bento de Lima a fundar um Gabinete de Leitura em São Roque do Pico.
Congregou à sua volta personalidades do concelho, que contribuíram com donativos para aquisição de obras literárias. O próprio Dr. José Afonso Andrade dotou o Gabinete com grande quantidade de livros e revistas.
A inauguração ocorreu a 8 de Maio de 1882, no Edifício dos Paços do Conselho, onde ficou instalado o Gabinete provisoriamente, e ao qual foi dado o Nome de Gabinete de Leitura Marquês de Pombal.
O discurso de abertura foi proferido pelo Dr. Arsénio Leonel Medeiros, Guarda-Mor de Saúde, perante numerosa assistência que ali se deslocou.
A 1 de Dezembro de 1883, por iniciativa dos sócios fundadores, o Gabinete de Leitura passou a Sociedade Recreativa. Local de convivência diária, oferecia aos sócios e suas famílias numerosas obras literárias para leitura, bem como reuniões recreativas.
Além de político, João Bento de Lima foi jornalista de muito prestígio, e um dos continuadores do Jornal “O Picoense”, que se publicou em São Roque do Pico e se manteve para além da sua morte, ocorrida em 11 de Julho de 1917.
É ainda no Jornal o Picoense que o Padre Nunes da Rosa a ele se refere após a sua morte: – Inteligente, estudioso, de uma operosidade completa e inquebrantável, aliada ao amor pela sua terra natal e pelos seus concidadãos , homem de ação, de consulta e de trabalho, como outro não conheci; João Bento de Lima marcou com elegância intelectual entre os homens bons da Ilha do Pico…
A 11 de Janeiro de 1933, uma comissão de amigos e admiradores da ilha do Pico mandou erigir-lhe um obelisco onde foi incrustado um medalhão em bronze com a sua efígie, no largo do Convento de São Francisco.²

Pronto, está resolvido o mistério.
Saudações, João Bento de Lima.

O GPS está a mandar-me pela estrada principal. Estou a passar-me. Eu não quero ir pela estrada principal, com os carros a rasarem por mim a toda a velocidade. Eu troco-te já as voltas, GPS. Dá cá o percurso pedestre.

E assim mandou-me logo sair da estrada principal, para baixo, em direção ao mar. Já está a melhorar.

Ora digam-me lá se isto não é uma boa estrada para bicicleta. O GPS diz que não, que isto é só para pedestres. A mapeação das ilhas dos Açores é uma desgraça. Ninguém conhece nada. Falo dos grandes – dos Googles e afins. Com certeza que os açorianos – ou mais propriamente os picarotos (ou picoenses) conhecem isto como a palma da sua mão. Oh Google e mapas afins, têm que vir cá, meus amigos.

Ora pelo que percebo aqui é uma povoação chamada São Vicente.

Pico, o Titã. E baixei a cabeça em sinal de reverência, cumprimentando-o. Observas tudo, Titã.
São 7h44. Ontem eu já andava ali a subir.

Venho de uma estrada secundária, em baixo, e o GPS manda-me atravessar a estrada principal e seguir por aquela estrada secundária, em cima. Vou andando assim aos ziguezagues para fugir à estrada principal. O GPS, desesperado por um caminho pedestre, faz-me dar estas voltas. E eu faço-as, de bom grado.

Outro micro-ondas. Toda a gente tem um micro-ondas avariado para o padeiro deixar o pão, está visto.

Que terra é esta? – perguntei. “Eira do Cabeço – zona de Santana”, respondeu-me o pai do rapaz. Africanos a viverem na ilha do Pico, de onde virão? Eles estavam a despachar-se, iam-se embora no carro, senão eu teria falado um pouco com eles.

Então agora é que vai começar a festa. Escolher caminhos pedestres no GPS é sempre um risco. Põe-me a subir escadas e a saltar muros. Não é propriamente indicado para bicicletas. Mas não tenho alternativa, pela estrada principal recuso-me a ir.

Sem hesitações, Rute! Em frente! Não passa aqui ninguém há muito tempo, mas não interessa! Pedala!

Lá ao fundo, a ilha de São Jorge.

Já estou na Zona de Paisagem Protegida, classificada pela UNESCO. De acordo com o seu website:

A paisagem da cultura da vinha da ilha do Pico ocupa uma área total de 987 hectares, e tem como referência emblemática dois sítios – o Lajido da Criação Velha e o Lajido de Santa Luzia, implantados em extensos campos de lava caracterizados por uma extrema riqueza e beleza natural e paisagística. Estes sítios foram classificados por constituírem excelentes representações da arquitetura tradicional ligada à cultura da vinha, do desenho da paisagem e dos elementos naturais. A diversidade faunística e florística aí presentes estão associadas a uma abundância de espécies e comunidades endémicas, raras e com estatuto de proteção.
Este bem consiste numa espantosa rede de longos muros de pedra, espaçados entre si, que correm paralelos à costa e penetram em direção ao interior da ilha. Estes muros foram erguidos para proteger do vento e da água do mar as videiras, que são plantadas em milhares de pequenos recintos retangulares (currais), colados uns aos outros. Remontando ao século XV, a presença da viticultura manifestou-se através desta extraordinária manta de retalhos de pequenos campos, de casas e quintas do início do século XIX, de ermida, portinhos e poços de maré. A paisagem modelada pelo homem, de uma beleza extraordinária, é o melhor testemunho que subsiste de uma atividade outrora muito ativa.³


¹ “Convento de São Pedro de Alcântara: legado, fé e cultura” (s.d.) Câmara Municipal de São Roque do Pico, baseado num texto de Igor Espínola de França. Página consultada a 10 janeiro 2021,
<https://www.cm-saoroquedopico.pt/noticia/read/731/6-convento-de-so-pedro-de-alcntara-legado-f-e>

² Medeiros, Francisco (2009, 18 abril) “Gente que fica na História – João Bento de Lima”, Blog de David Avelar. Página consultada a 10 janeiro 2021,
<http://asombradovulcao.blogspot.com/2009/>

³ Goulart, Mónica Silva (2004) “Paisagem Vinha da Ilha do Pico”. Comissão Nacional da Unesco, Ministério dos Negócios Estrangeiros. Página consultada a 10 janeiro 2021,
<https://www.unescoportugal.mne.pt/pt/temas/proteger-o-nosso-patrimonio-e-promover-a-criatividade/patrimonio-mundial-em-portugal/paisagem-vinha-da-ilha-do-pico>

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