053 – Corvo – Ecomuseu
Bom, e terminada a visita à Delegação da Assembleia, com aquela maravilhosa e riquíssima coleção corvense, sigo agora para o Museu do Corvo – o Ecomuseu, que já andei a citar em algumas crónicas anteriores. Nem tudo na vida é bicicleta. Hoje é uma tarde dedicada à cultura. Ando a ressacar com falta de museus (aqui nos Açores preferencialmente museus etnográficos), a verdade seja dita, porque adoro visitar museus, chego a passar três e quatro horas dentro, entretida a ver e a ler tudo. Não há um único em Lisboa que eu não conheça, mesmo os mais exóticos e normalmente desconhecidos. E conforme contei, passei à porta dos museus de Santa Maria e das Flores, e não os vi. Daaaah!… Têm que pôr letras grandes assim como neste, para os mais ceguetas os verem.
O funcionário do museu chama-se Manuel Oliveira, e irá acompanhar-me nesta visita guiada. Naquele écran passa um pequeno filme que eu também irei ver. Estou sempre pronta para filmes, a verdade seja dita.
O Manuel é da ilha de São Miguel, está cá há seis meses com a mulher, a qual trabalha na função pública e conseguiu colocação cá. O Manuel trabalhou antes no Museu de Artes Contemporâneas da Ribeira Grande, edifício cujo exterior fotografei na crónica 10.
“Uma Aldeia no Oceano”, da investigadora picarota Maria Norberta Amorim. (“Picarota” ou “Picoense” significa que é natural da ilha do Pico). Neste livro é feito o estudo da genealogia no Corvo até sete gerações, portanto até ao século XVII e XVIII, explicou-me o Manuel, e todos podem consultar. No site da Casa de Sarmento, pertencente à Universidade do Minho (Centro de Estudos do Território) pode ver-se uma reportagem da RTP Açores, onde a autora fala uns minutos sobre a ilha do Corvo e sobre o livro.
Segundo a professora Norberta só há este tipo de aglomerado – Vila do Corvo – no norte do país, nas aldeias transmontanas, com uma configuração labiríntica e íngreme. Indica também que o Corvo apresenta um parentesco mais aproximado com a ilha do Pico do que com a vizinha ilha das Flores, nomeadamente em relação aos comportamentos demográficos: casando muito tarde, muita gente solteira, e a mobilidade, saindo daqui.
Este museu foi inaugurado em novembro de 2019. O Corvo era a única ilha sem um espaço museológico. O Ecomuseu do Corvo resulta de uma parceria entre o Governo Regional e a Câmara Municipal de Vila do Corvo, em conjunto com a população local.
Sementes de junça, com as quais os corvinos faziam pão. No tempo dos donatários, figura instaurada a partir do século XVI, os corvinos tinham uma carga fiscal muito grande: por ano tinham de dar ao donatário 32 toneladas de trigo; 880 metros de pano de lã; e 80 mil reis, explicou-me o Manuel. Nada lhes restava. Viviam na miséria.
Veja-se este texto do escritor Raúl Brandão, o qual visitou a ilha do Corvo em 1924 e publicou o livro “Ilhas Desconhecidas” em 1926:
Fome! Muita fome! O mais que se comia era junça, uma planta que dá uma semente pequena debaixo da terra, de que se alimentam os porcos. Moía-se nas atafonas e fazia-se farinha e bolos… Às vezes trocava-se uma terra por um bolo de junça. Fome! Chegavam a comer raízes de fetos…
E as mães diziam: — Deixa-me guardar este bolinho de junça para os meus meninos comerem pelo dia fora!
Não havia dinheiro. Não se vendia nada, trocava-se tudo. Quem tinha uma casa a fazer, tocava o sino e a casa fazia-se num instante. Sabão, tabaco e pano azul traziam-no os baleeiros, e o povo dava-lhes cebolas e batatas. Os rapazes embarcavam no contrato da baleia, e as mulheres e os velhos é que faziam as terras. O mais que se comia era centeio, muito pouco, e junça. Os boizinhos pesavam sessenta quilos e a lã das ovelhas era comum e tosquiada em comum. Muita fome e muito vento, que destruía todas as colheitas.¹
(Fim de citação)
Com a implantação do Liberalismo em Portugal surge uma nova página na história do Corvo. Foi Mouzinho da Silveira quem libertou os moradores da ilha de parte dos pesados tributos anteriormente devidos ao donatário e à Coroa. Durante a estadia do imperador D. Pedro IV no arquipélago em 1832, uma delegação de corvinos, encabeçada por Manuel Thomaz de Avelar, apresentou a D. Pedro e ao seu ministro Mouzinho da Silveira o pão negro que iludia a fome das gentes da ilha, reclamando a supressão das rendas que deviam a Pedro José Caupers, o então donatário. A súplica foi atendida e pelo decreto de 14 de Maio de 1832 Mouzinho da Silveira reduziu para metade a renda paga em trigo e suprimiu a devida pela lã das ovelhas, cujo rebanho passou a ser propriedade plena dos corvinos, que entre eles dividiram os animais²; e anulou igualmente o pagamento em dinheiro.
Atualmente a Escola Básica e Secundária do Corvo tem o nome de Mouzinho da Silveira, em sua homenagem.
Fica ainda a nota de que Mouzinho da Silveira pediu inclusivamente no seu testamento para ser enterrado na ilha do Corvo:
“Quero que o meu corpo seja sepultado no cemitério da ilha do Corvo, a mais pequena das dos Açores, e se isto não puder ser por qualquer motivo, ou mesmo por não querer o meu testamenteiro carregar com esta trabalheira, quero que o meu corpo seja sepultado no cemitério da freguesia da Margem, pertencente ao concelho de Gavião; são gentes agradecidas e boas, e gosto agora da ideia de estar cercado, quando morto, de gente que na minha vida se atreveu a ser agradecida”.³
Mouzinho da Silveira morreu em Lisboa em 1849; a Wikipédia diz que lhe caiu um piano em cima!!! Será verdade? Não encontro nenhuma informação sobre isto. Quando existe apenas uma fonte desconfio sempre. Bom, mas o seu corpo foi transladado para um cemitério no concelho de Gavião, em Portugal continental. O testamenteiro não quis carregar com a “trabalheira” de levá-lo para a ilha do Corvo, está visto.
E como nasceu este lindo vulcãozinho do Corvo? Deixo este vídeo de um minuto e meio, disponível no museu. Não está no YouTube, pelo que tratei de filmá-lo eu com o telemóvel, e o meu reflexo aparece várias vezes. Não tive escapatória. E estou de máscara, pois claro. Este vídeo com o nascimento do Grande Senhor, do Reino dos Pássaros (pronto, pronto, eu dou-lhe o nome verdadeiro: o vulcão Monte Gordo. E note-se que também já vi escrito várias vezes “Monte Grosso”). O vulcão Monte Gordo faz lembrar o filme de desenhos animados da Pixar, que mostrei na crónica 48. Só falta aparecer uma Vulcoa ao lado dele.
O Corvo é a única ilha dos Açores com um só vulcão. Atualmente existe uma fenda na cratera e a água está a desaparecer gradualmente. Havia um moinho no meio das lagoas que aproveitava o desnível da água entre elas para trabalhar.
O Corvo é a única ilha dos Açores cujo povoamento foi iniciado com escravos da ilha de Santo Antão, de Cabo Verde. Estava-se então no século XVI. O donatário – Gonçalo de Sousa – era dono do Corvo, das Flores e de Santo Antão.
Hoje existe uma relação institucional entre as ilhas do Corvo e de Santo Antão – fez-se a geminação das duas, ou seja, estabeleceram-se relações recíprocas entre ambas com vista ao seu desenvolvimento. A Comissão Europeia, inclusivamente, promove geminações entre Portugal e os Países Lusófonos.
Um boné de lã e um frasco de anil. O texto diz:
Chegava a casa a lã e dividia-se: a fina, por um lado, a mais cabeluda, para outro. (…) A fina branca ficava para fazer (…) a gente chamava cobertores, que fazia as vezes de lençóis. Não havia lençóis. A outra, a mais grossa, ficava para fazer as camisolas dos homens. (…) E a fina fina, tingia-se de azul escuro para fazer roupa fina para os homens. (…) Juntava-se urina para um tanque, esfregava-se anil e ela estava ali três semanas no tanque. Mas tinha que ser mudada todos os dias. Depois lavava-se (…) e depois, então, de estar tudo lavado e enxutinho, abria-se, cardava-se e fiava-se. E, depois, havia uma urdideira numa casa. A gente ia urdir a teia: dez varas, doze, quinze… como havia. E deitava-se no tear.
(testemunho de Maria Cândida Nascimento sobre o Ciclo da Lã – SARAMAGO, João – O livro de marcas da ilha do Corvo. Corvo: Câmara Municipal do Corvo, 2013).
E em 1995 foi asfaltada a estrada para o Caldeirão, construída na década de 1950.
Para a inauguração do aeroporto, em 1983, teve de destruir-se 3 moinhos e 4 casas; e também havia aí campos de trigo, contou-me o Manuel.
Isto é lava do vulcão.
O vento do norte chega a 200 km / hora, explicou-me ainda o Manuel.
Antigamente acendiam fogueiras que se viam na ilha das Flores, e consoante a fogueira interpretava-se o que era necessário: um médico, ou um padre, por exemplo.
Num destes computadores vi alguns pequenos vídeos, nomeadamente sobre o queijo, o Dia da Lã, a casa típica do Corvo e como viviam ali as famílias antigamente. Existem outros vídeos disponíveis, todos com 8 a 10 minutos.
Esta visita ao Ecomuseu durou hora e meia, entre as 14h50 e as 16h20. Não houve mais visitantes enquanto aqui estive, pelo que o Manuel me explicou tudo com calma, e eu fui fazendo perguntas e tirando apontamentos. Muito bom. Não pensem que fotografei tudo, ou que falei de tudo. Houve muitas coisas que não fotografei, nem referi, mas vocês têm que fazer alguma coisa 🙂 Têm que meter-se num avião e vir cá. Se vos mostrasse tudo já não valeria a pena virem cá. Mas vale sempre a pena quando a alma não é pequena, lá diz o provérbio.
Vou em busca do queijo do Corvo. Tenho que experimentar essa especialidade. Disseram-me que há um snack-bar que o vende.
Não têm. Ainda está a curar. Oh que pena.
A minha sobremesa tardia: fruta e doce. Mais vale tarde do que nunca. Ainda comi mais dois queques que a Vera deixa ao dispor. Comprei duas maçãs e ainda as tenho, mas prefiro as laranjas que a Vera também tem ao dispor no frigorífico.
As senhoras turistas açorianas ficam na conversa lá fora, sentadas no terraço. Às 21h30 recolheram-se. Hoje tenho novos hóspedes no quarto de cima, ainda não os vi, só os ouvi. Conseguiram deitar-se mais cedo do que eu, que apaguei a luz às 22h30.
Só mais tarde me lembrei: então e o Centro de Interpretação de Aves Selvagens, que eu fotografei logo à chegada à ilha do Corvo, no primeiro dia, na crónica 45? Esqueci-me. Pura e simplesmente esqueci-me. Já tenho um pretexto para voltar ao Corvo, portanto.
¹ Brandão, Raúl (1926) “As Ilhas Desconhecidas”, p. 18. Projeto Vercial, 2002.
² “Corvo, concelho do” (s.d.). Portal Cultura Açores, Direção Regional da Cultura, Governo dos Açores. Página consultada a 24 novembro 2020,
<http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=2190>
³ Brandão, Raúl (1926) “As Ilhas Desconhecidas”, p. 11. Projeto Vercial, 2002.