068 – Cemitério de Santa Cruz
A ilha de Ataúro em frente. À direita, o Cristo-Rei, onde o Valério me leva agora na pickup. Já tenho pouco tempo antes de anoitecer, não há tempo para passeios de bicicleta em Díli. A seguir iremos ao Cemitério de Santa Cruz; a seguir jantar; e a seguir cama. Ainda fica a faltar o Museu da Resistência, o qual vai ficar para o 25º dia da viagem, quando eu regressar aqui a Díli. Com organização a gente faz tudo. Eu também podia passar um dia ou dois em Díli, mas optei por andar nas povoações mais distantes. Interessa-me mais. E a Timor MEGAtours fez-me a vontade. Em Díli não ficarei muito tempo. Serão duas tardes e uma manhã, ao todo. Hoje é a segunda tarde. Amanhã às 7 da manhã partimos para o Oecusse.
“Sem o filme do massacre de Santa Cruz, a situação de Timor-Leste nunca teria atingido a proporção que atingiu a nível internacional” – diz Arnold Kohen, ativista Pró-Timor, sobre o filme de Max Stahl. Este filme do jornalista Max Stahl correu o mundo inteiro, e certamente apenas as gerações mais novas não o terão visto. Nunca é demais recordar, pelo que deixo o link para o vídeo de cinco minutos disponível na RTP Arquivo:
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/1991-massacre-de-santa-cruz/
Arnold Kohen refere ainda dois outros vídeos, dos jornalistas portugueses Adelino Gomes e Rui Araújo, pelo seu impacto em Portugal. A reportagem de Rui Araújo, feita na ilha de Ataúro em 1983, com a duração de 30 minutos, já a vimos na crónica 63. Deixo novamente o link:
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/timor-timur-parte-i/
Relativamente ao vídeo do jornalista Adelino Gomes, feito em Outubro de 1975, e com a duração de 4,27 minutos, deixo agora o link também. Apesar do vídeo não estar relacionado diretamente com o Massacre de Santa Cruz, efetivamente revela o início de todos os acontecimentos. O vídeo tem alguns cortes, e mostra a cidade de Díli em 1975, dois meses antes da invasão pela Indonésia.
Deixo uma breve introdução, para que o vídeo possa ser compreendido rapidamente:
Aquando da revolução do 25 de Abril 1974, em Portugal, surgiram em Timor alguns partidos políticos para a disputa das primeiras eleições livres. Os três principais eram:
- Fretilin (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente, que como o nome indica, preconizava a independência imediata de Timor-Leste);
- UDT (União Democrática Timorense, que nesta primeira fase defendia a autoderminação orientada para uma federação com Portugal);
- E a Apodeti (Associação Popular Democrática de Timor, a favor da integração na Indonésia).
A crónica do jornalista Adelino Gomes mostra Díli em Outubro de 1975, após os conflitos entre estes três partidos na luta pelo poder: nas eleições municipais realizadas em meados de 1975, os candidatos da Fretilin ganharam mais de 55% dos votos. Em segundo lugar ficou a UDT, e em terceiro a Apodeti. O resultado da eleição foi contestado pelos partidos derrotados, que imediatamente entraram em conflito contra o partido vencedor. O conflito arrastou-se desde agosto e durou até dezembro de 1975, com a Fretilin capturando ou expulsando todos os opositores do território. Durante estes conflitos constituiu-se o braço armado do partido, as Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste (FALINTIL), que anos mais tarde, após a independência da Indonésia, tornar-se-ia a base das Forças de Defesa de Timor-Leste.
Segue o link do vídeo de Adelino Gomes, com as imagens de Díli:
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/cronica-de-Díli/
Um mês depois destas filmagens, em novembro de 1975 Timor-Leste declarou a sua independência de Portugal, e a Fretilin recebeu apoio massivo da população para que assumisse o poder na ilha. A Austrália e a Indonésia acusavam a Fretilin de ser comunista (ou marxista), por ter um programa com fortes tendências coletivistas. Aliado a isto, o nome da Fretilin soava semelhante ao do movimento marxista-leninista Frelimo, que atuava em Moçambique. A desconfiança das principais potências regionais (Austrália e Indonésia) empurrou a Fretilin para o campo marxista – que acabou por apoiar o movimento. A escalada da Guerra Fria levou os Estados Unidos e a Austrália a dar suporte à fatídica invasão e ocupação da Indonésia sobre os territórios de Timor, ocorrida poucos dias depois da proclamação da independência.¹
À memória de Leovigildo de Mascarenhas Inglês e de um seu companheiro d’armas. Oficial do exército português, nasceu em 2.9.1839. Morreu ao serviço da Pátria em 5.11.1912 como Chefe de Estado Maior do Comando Militar de Timor.
À inolvidável memória de Maria da Conceição G. da Costa Mousinho. Nasceu em Torres Novas (Portugal) aos 4 de Fevereiro de 1890. Faleceu em Dilly aos 18 de fevereiro de 1926. Lágrimas sentidas de pungente saudade do seu inconsolável marido e extremosos filhos e paes. R.I.P.
(Recordo que R.I.P. é a sigla para “Requiescat in pace”, expressão em latim que significa “descansa em paz”. Costuma também ser usada em inglês – “Rest in Peace”).
Deixo a nota de que quando comecei a escrever estas crónicas – da minha viagem de bicicleta por Timor – tomei a decisão clara de não enveredar por questões políticas, ou não passar o tempo todo a falar de guerras e ocupações. Afinal de contas trata-se das minhas férias, das crónicas da minha viagem. Não a enciclopédia britânica. E tenho resistido. Cada qual que investigue por si, no caso de não ter acompanhado de perto a História de Timor – da ilha de Timor no geral, ou em particular da RDTL, a República Democrática de Timor-Leste. Mas chegada agora a estas crónicas de Díli, não tive escapatória. Ou pelo menos a curiosidade e o desejo de conhecimento levou-me a ler tudo e mais alguma coisa, e depois apercebo-me que posso partilhar este conhecimento. Enfim, já que andei a estudar mais aprofundadamente a matéria, e parecendo-me tão importante e decisiva na compreensão da história de Timor-Leste, deixei os vídeos e as explicações.
Mas agora volto ao dia de hoje, à minha viagem, ao meu cansaço, que já se faz tarde, e sobretudo ao meu jantar. É que eu almocei um pequeno peixe em Ataúro. Estou esfomeada. Ensonada (já) e esfomeada.
Então o Valério deixou-me às seis da tarde no Hotel Timor, no centro de Díli, onde eu já tinha estado a almoçar na primeira tarde que aqui estive, na capital (crónica 3 – onde é que já vai a crónica 3…). Ora o elegante Hotel Timor – ou as elegantes senhoras que atendem no Hotel Timor – olharam para o ouriço salgado e desgrenhado que lhes entrou pelo restaurante adentro, às seis da tarde, para jantar. Eu não estava consciente de que me tinha transformado num ouriço, entretanto, em Ataúro. E lembrei-me que nem tomei um banho decente, na véspera, depois de mergulhar nas profundezas, no meio dos belíssimos corais e peixes coloridos. Estou salgada, transpirada da bicicleta, e com o cabelo muito despenteado e empoeirado. Eu não lavei o cabelo por não ter uma casa de banho decente. Cabelo encaracolado misturado com sal e pó, é na melhor das hipóteses, curioso. Um bicho selvagem. Um ouriço espetado. Dei conta da minha nova encarnação através do olhar das elegantes senhoras do Hotel Timor. Ei-lo, o ouriço desgrenhado, cansado e esfomeado, de calçõezitos, a pedir comida às elegantes senhoras do Hotel Timor. Timorenses, claro. Só faltava atenderem-me pessoas de outra nacionalidade; estou em Timor-Leste, quero ser atendida por timorenses. Então as elegantes senhoras do Hotel Timor, habituadas a receberem a elite num dos melhores restaurantes de Timor inteiro, olharam-me com altivez (eu em pé atrás do balcão, o qual fotografei na crónica 3) e perguntaram-me de onde venho. E se quero comer a estas horas, seis da tarde.
Isto começa bem.
O ouriço desgrenhado encolheu-se um pouco. As senhoras é que mandam nisto, tenho de ter cuidado com elas. Se as senhoras decidem que eu não como, estou tramada.
– Venho de Ataúro, respondi. (Em pé, atrás do balcão).
– Ah, vem de Ataúro… deve estar muito cansada – responderam-me.
Já melhorou um pouco, compreenderam-me.
– Sim, venho de Ataúro e estou muito cansada, corroborei.
– E o que quer comer? – perguntaram-me com altivez.
Ai que isto dito assim já voltou a não soar bem. O ouriço desegrenhado encolheu-se outra vez. Estou prestes a ficar sem jantar, decididamente. O que quero eu comer, perguntam-me elas.
– Há uma lista que eu possa consultar?… – perguntei.
E as senhoras passaram-me uma lista para as mãos.
– Estou com o Eduardo Massa, da Timor MEGAtours, acrescentei, a ver se abona alguma coisa a meu favor, ter uma origem, alguém a acompanhar-me, ouriço desgrenhado e empoeirado, e agora com as pernas todas picadas das melgas. Fui picada enquanto andava a visitar a prisão. Nem quero imaginar estar fechada numa cela daquele tamanho a ser picada pelos mosquitos. Só ser picada com a cela aberta já custa.
E eis que se fez luz. Ao ouvir o nome de “Eduardo Massa” e “Timor MEGAtours” fez-se luz. As senhoras mudaram. Fui imediatamente sentada numa mesa. Uf. Finalmente vou jantar. E escolhi almôndegas, do menu. Vou comer almôndegas com esparguete!! O que seria da minha vida sem esparguete.
O Eduardo Massa convidou-me para jantar, mas não às seis da tarde. Eu não aguento mais tempo – nem a fome, nem o sono. Se tomo um banho e vou dormir digo que é mentira. Venham daí as almôndegas, por favor. O Eduardo terá que desculpar-me.
Eu comia uns quatro pratos destes, mas pronto. Estavam deliciosas, as almôndegas com molho de fricassé. Vou agora tomar um monumental banho na Vila Cardim, e vou dormir que nem uma pedra. Hoje só fiz 12 km de bicicleta, em Ataúro (6 até ao porto, e outros 6 de volta à guesthouse), mas as lides do mar e dos barcos cansam mais do que dez dias de bicicleta.
¹ “Luta pela independência contra Portugal” (s.d.), in “Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente”. Wikipedia. Página consultada a 10 Dezembro 2018,
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Frente_Revolucion%C3%A1ria_de_Timor-Leste_Independente>