019 – Passeando de Bicicleta em Com
Lá ao fundo, na estrada à direita, está um cão a ladrar tão selvaticamente que nem me atrevo a avançar. Fiquei aqui parada, talvez dez ou quinze minutos, a tirar fotos à minha volta. Já que não posso avançar mais na bicicleta por causa daquela fera. Está a cortar-me o caminho.
Saíram as vacas e vieram as cabras. E eu aqui presa sem poder avançar mais na bicicleta por causa da fera.
Até que me lembrei de ir à volta. Em vez de seguir pela estrada, vou seguir pelo meio das árvores, paralelamente à estrada, do lado esquerdo. Vi um pastor seguir por aí, juntamente com as cabras, e fui atrás, a pedalar. Estou numa bicicleta de BTT, bem que posso ir pelo meio das árvores, em vez de pela estrada. E eis que deparo com este cemitério – e mais o pastor, sentado, numa das campas. Lá ganhei coragem e avancei cautelosamente, na bicicleta.
Afinal a fera é esta coisa magricela, branca e preta. A fera queria mesmo dar-me uma dentada, mas o pastor mandou-o calar-se e ficar quieto. Serão certamente os seus cães. Eu aproveitei a sua gentil proteção para ir tirando umas fotos no cemitério.
Infelizmente a foto ficou desfocada, mas mantive-a, porque foi o final da minha relação com a fera. Tive uma longa conversa com a fera, disse-lhe que não era justo tratar-me assim, impedir-me de andar na bicicleta, de conhecer a sua terra. E ela, a fera, que de facto é um macho, concordou e fez as pazes assim, deitando-se de patas para o ar, no meio das flores de plástico das campas.
Também fiquei amiga do pastor, que me protegeu da fera e pacientemente me viu fotografar as campas todas.
Realmente fui muito bem recebida em Com. Esta rapaziada – que tem só um rapaz no meio daquelas raparigas todas, quase que mais valia dizer “esta raparigada toda”, mas isso seria ofensivo para o simpático e bem masculino rapaz, que se chama João – esta rapaziada, como eu ia a dizer, fala tétum, fataluco, inglês e português. Fataluco é a língua local de Lospalos. Em Timor-Leste existem uma série de línguas, cerca de quinze, para além do tétum. Não sei o número exato, porque cada site que consulto tem um número diferente. Mas anda por aqui – quinze, dezasseis línguas. Com o tétum, faz dezasseis ou dezassete línguas. Aparentemente ainda não há um estudo exaustivo e fundamentado sobre esta matéria. Pesquisei inclusivamente no Google Académico, mas nada. Há muitos blogs com informação dispersa e diferente uns dos outros, e pelo que vislumbro (na internet) ainda não existe uma publicação mais séria e exaustiva sobre todas as línguas e dialetos em Timor-Leste. Há livros dispersos, sobre um ponto aqui e ali. Os caros académicos andarão distraídos. Têm aqui um público faminto de informação e conhecimento, e ainda não se lembraram disto. Ou não conseguiram recursos para se dedicarem a isto, deve ser o mais provável, sejamos brandos. Não é uma matéria nada fácil, diga-se. Veja-se este extrato sobre o fataluco: “O fataluco é a mais oriental das línguas de Timor, e um dos quatro idiomas (com o macassai, o macalero, e o búnaque) de origem papua-bomberóide. Tem cinco dialetos (os de Tutuala, Lorehe, Lospalos, Lautém e Serelau, este último influenciado pelo macassai)¹”. Certo. Línguas bomberóides. Eu é que quis pôr uma bomberóide no aeroporto de Jacarta, se bem se recordam.
Bom, mas voltando à minha conversa com esta rapaziada. Esta conversa, que durou talvez meia hora, e culminou nesta foto, foi um misto de todas as línguas. Comigo tentavam que fosse tudo em português e em inglês. Mas às vezes não sabiam alguma palavra e falavam em tétum, creio. Uma senhora muito beatifull, dizem-me eles. Sou uma senhora muito beatifull. Assim mesmo, em português e em inglês. Rimo-nos todos, pois eles sabem que estão a misturar. Também me chamam de “mister”. Só alguns é que dizem “miss”. Mas isto é geral, fui frequentemente chamada de “mister”, porque raros são o que se lembram, ou sabem, que é “miss”. Depois eu pedi-lhes para me dizerem algumas frases em fataluco e em tétum, para eu ver a diferença. É como da noite para o dia, não tem nada a ver uma com a outra. Portanto eles falam quatro línguas. Ou pelo menos vão arranhando o português e o inglês. As outras duas dominam-nas, claro. As raparigas chamam-se Maria, Rita, Clara, e escaparam-me dois nomes – o de uma das raparigas que está na foto, e ainda uma quinta rapariga que a tirou. Passei a máquina para as mãos desta, expliquei-lhe os botões e ela tira esta magnífica foto. Voilà. É cana de açúcar, o que eles andavam a apanhar.
De regresso à guesthouse para jantar. Esta noite faz frio e vento, o que é bom para afastar os mosquitos. O vento frio que os leve para bem longe. E mais uns raios em cima, de preferência – que é outra maneira de dizer “raios os partam”.
¹ Hull, Geoffrey (s.d.) Introdução Editorial ao “Léxico Fataluco-Português” de Afonso Nácher. Página 125. Documento consultado a 30 Setembro 2018,
<https://scholar.google.pt/scholar?hl=pt-PT&as_sdt=0%2C5&q=L%C3%A9xico+Fataluco-Portugu%C3%AAs%3A+Primeira+Parte+A%E2%80%94L&btnG=>