002 – A Viagem

Até correu bastante bem, nem foi das piores. Foi a mais longa viagem até hoje, mas curiosamente passou-se bem, e eu explico porquê: foram quatro voos e dois dias de viagem, mas andei a saltitar de avião em avião, sem grandes esperas nos aeroportos. E isso melhora bastante a experiência da viagem. As longas e entediantes esperas nos aeroportos são terríveis.
O percurso foi o seguinte:
Lisboa – Istambul (partida às 15.45h, 4.40h de duração, Companhia Turkish Airlines).
Istambul – Jacarta (partida às 2.15h da manhã, duração 11h, Companhia Turkish Airlines).
Jacarta – Bali (partida às 20h, duração 2.30h, Companhia Air Asia).
Bali – Díli (pernoitei no hotel do aeroporto, em Bali, onde cheguei à meia noite, e no dia seguinte às 9.25h da manhã voei para Díli. Duração 2.30h. Companhia Citilink Indonesia).

Só descrever os voos já cansa. Mas enfim, eu ia mentalizada para a longa viagem. Curiosamente foi no aeroporto de Lisboa que a coisa correu menos bem. Entrei no avião, adormeci, e quando acordei uma hora e tal depois, era suposto ver nuvens, e afinal vejo a pista do aeroporto. Já chegámos? Não, é o aeroporto de Lisboa ainda. O voo acabou por partir com 2.15h de atraso. E as pessoas aplaudiram quando finalmente arrancámos. Excesso de tráfego aéreo, foi o que o comandante explicou aos estimados passageiros, através dos altifalantes. Lisboa está com excesso de tráfego aéreo, quem diria. (Estou a troçar, naturalmente… com as hordas de turistas que chegam a partem diariamente…). É preciso ter calma.
O nervoso miúdo apoderou-se de mim, de qualquer forma, porque eu tenho um voo de ligação. Não convém perder já o primeiro voo de ligação, num total de quatro. Calma, Rute, respira fundo, dorme mais um pouco. Hás-de lá chegar, a bem ou a mal, ao teu desejado Timor.

Aeroporto de Lisboa

Destaco a comida da Turkish Airlines, bastante boa. Tive quatro voos nesta companhia (ida e volta) e de facto eles fazem publicidade nos vídeos de bordo ao prémio que ganharam pelo melhor catering na Business Class. Na Economy Class pelo menos mantêm a qualidade e o sabor. E talheres de metal.

No aeroporto de Istambul começam a ver-se as burcas totais. Passo numa mesa onde uma família está sentada, com crianças, pai e mãe, todos a comerem, e a mulher está completamente tapada de preto, só se vêm os olhos. Ela nem deve estar a comer. Faz-me confusão, aquelas crianças, de roupas coloridas, com uma sombra preta ao lado. A própria mãe. Nos corredores do aeroporto, fixei alguns desses olhos que se cruzaram comigo. Tudo escondido, tudo preto, menos uma fina tira para os olhos. Alguns desses olhos fixaram-me também. Fixamos-nos olhos nos olhos enquanto caminhamos e nos cruzamos. Nem sei o que procuro eu vislumbrar. Se calhar um pedido de socorro. Mas elas continuam a andar pelo aeroporto fora, com as respetivas famílias. E eu caminhei também, em direção ao gate do meu voo seguinte. Não salvei ninguém.

Onze horas dentro dum avião é obra. Ainda por cima fiquei nas filas do meio. Ao meu lado esquerdo vai um francês dos seus sessenta anos. Viaja com a mulher e mais um grupo de uns quinze franceses, todos na mesma faixa etária, os quais vão fazer mergulho perto da Papua Nova Guiné. Já são mergulhadores profissionais, descem a mais de sessenta metros, e viajam propositadamente para fazer mergulho. Eu aproveitei para praticar o meu francês. Não fala inglês, o meu vizinho francês. Pelo que fui eu arranhando o francês. Efetivamente esta conversa que tive com ele foi já no final da viagem, porque eu dormi a maior parte do tempo. Continua a dar-se o mesmo fenómeno de sempre: ponho os pés num avião e imediatamente dá-me sono. Felizmente. Quanto mais se dorme, menos se sofre, nestas viagens. Entretive-me a ver dois filmes de desenhos animados, um para adultos – o Bilal – e outro já não tanto, os Emoji, os quais não tive tempo de ver no cinema. Mais quatro horas a dormir, e outras tantas na azáfama do catering, serve, põe, tira, recolhe, mais outro copo de água… Bom, as onze horas passaram-se. O meu vizinho do lado direito é mais silencioso, parece ser turco, e ainda me dificultou o sono. Dava-me cotoveladas. Acordava-me. A certa altura zanguei-me seriamente. Já não sei se ele está a dormir com tiques nervosos, bate as asas de vez em quando, ou se está a fazer de propósito. É impossível dormir assim!!! – disse-lhe eu, em inglês. Chegou a um ponto em que eu fui procurar vídeos no computador de bordo, nas costas da cadeira à minha frente, e dei por mim a ouvir o Corão cantado, com legendas em inglês. São cinco da manhã em Portugal. Sei lá que horas são no meio das nuvens do Irão e do Paquistão. Com quatro voos fiquei completamente baralhada de horários.

Aeroporto de Jacarta. “Prayer Room”, ou seja, sala para rezar.

Despedi-me do meu vizinho francês, que entretanto me apresentou ao restante grupo. Havia um falante em português, no meio, claro. Riram-se quando eu disse que a minha bagagem não ia aparecer. Mas a minha “valise”, como eles dizem, apareceu até primeiro do que a deles. E perguntaram-me pela bicicleta. O capacete pendurado na mochila trai-me. Eu ri-me, respondi-lhes que transportar uma bicicleta nos aviões é muito complicado, precisa duma caixa própria, e de desmontar algumas peças; e depois não me dá jeito carregar com bagagens e mais a caixa gigante da bicicleta, pelo que alugo uma no destino. (Disse isto tudo em português, ao membro português do grupo, o qual traduziu para os restantes. Estávamos nós todos em pé, junto aos tapetes rolantes, à espera das  bagagens).

Quando me dirigi às conexões domésticas, um funcionário do aeroporto abordou-me e viu no seu telemóvel o meu próximo voo. Cancelado. Em primeiro lugar, quem é este funcionário que anda aqui a passear no aeroporto, às tantas da noite, e me aborda sem eu pedir nada. Um homem dos seus cinquenta anos, talvez. Bom, será pura prestabilidade, viu-me sozinha, com um papel na mão (os dados do meu próximo voo) e achou que devia ajudar-me. Abordou-me. E deu-me uma má notícia. O meu voo está cancelado, disse-me com ligeiro embaraço. Eu até me ri. Rimo-nos os dois. Bela notícia o senhor me dá. Fui para o balcão da Air Asia, e aí confirmaram que efetivamente o meu voo está cancelado, mas metem-me já noutro que parte daqui a pouco. Que maravilha. Antecipo duas horas este voo. São duas horas que não vou estar aqui no aeroporto à seca. É para compensar o prejuízo que me causaram ao alterarem outro dos voos, no meu regresso a Portugal. Alteraram o voo 1.20h. Mas 1.20h é o suficiente para eu já não conseguir apanhar o voo de ligação. Ponham-me noutro voo, então. Não temos – responderam eles. Então devolvam-me o dinheiro. Não podemos porque a alteração é inferior a duas horas. Não há direito a reembolso. E assim a Air Asia ficou com o meu bilhete, o meu dinheiro, e eu tive de comprar outro voo de outra companhia aérea. A prepotência destas companhias é uma coisa extraordinária. Efetivamente deram-me um crédito para usar noutro voo da Air Asia, no espaço de noventa dias. Claro, vou já fazer outra viagem, tirar outras férias, só para gastar o vosso crédito. E rapidamente, só tenho noventa dias. Não pode ser nas férias do próximo ano.

Depois, neste voo doméstico de Jacarta para Bali já não servem comida. É preciso pagar. Em rupias indonésias. Não aceitam euros. Meu amigos, eu venho de Lisboa, vou para Díli. Em Díli não se usam rupias, usam-se dólares norte-americanos. Tenho um voo de 2.30h entre Bali e Díli. E tenho de converter cinco euros em não sei quantos milhares de rupias (é mesmo assim, vim a descobrir mais tarde) para comer qualquer coisa no avião. Não dá muito jeito, têm de concordar. E agora quero água, tenho sede.
Levantei-me e fui pedir água.
Aqui estou eu dentro dum avião, a pedir água como um mendigo. Não tenho rupias para pagar, mas tenho sede, dêem-me água. Não vou ficar quase três horas fechada num avião cheia de sede.
E a hospedeira deu-me um pequeno copo de papel com água quente, quase a ferver, duma torneira. Meio cheio. Eu estou capaz de beber um litro de água, e eles dão-me dois mililitros de água quase a ferver, que ainda tive de esperar que arrefecesse. Ainda por cima tenho de tomar o primeiro comprimido da malária. Nesta viagem o médico disse que era arriscado não tomar os comprimidos da malária, mesmo usando um bom spray anti-mosquitos.
Eu tinha uma vaga ideia, de viagens anteriores, que os comprimidos da malária fazem doer o estômago. Mas o médico disse-me que até então ninguém se tinha queixado. É preciso tomar um comprimido todos os dias, começando um dia antes de chegar ao destino, e continuando por mais sete dias após regressar. Já estou um pouco atrasada, já devia tê-lo tomado. Felizmente não tive de tomar vacinas nenhumas para esta viagem. Simplesmente porque já as tomei todas em viagens anteriores. Estou vacinada contra tudo, o médico até me perguntou o porquê de algumas delas. Expliquei-lhe o tipo de viagens: de bicicleta, no campo. Ah, respondeu. Estou vacinada contra a raiva, febre da carraça, as hepatites, febre amarela, sarampo, tétano e sei lá quantas mais. Estou à prova de tudo menos da malária: ainda não há vacina. Pronto, vou tomar os comprimidos.

De qualquer forma esta água não me chega. Continuo com sede. Pelo que levantei-me e fui pedir mais água. Isto está bonito. A mendigar água. A hospedeira desta vez nem esteve para se maçar, deu-me um copo selado de água, daqueles que se pagam, e disse que era oferta. Já melhorou. O pessoal de bordo estava a ver-me muito inquieta. Efetivamente mudei três vezes de lugar. O avião tem muitos lugares livres, pelo que fui para a janela. Já está na hora de partir, já não vem mais ninguém. Qual quê. Chegaram dois rapazes que ficaram muito espantados a olhar para mim, eu no lugar dum deles. Mas disseram que não havia problema e foram eles para outro lugar. O pessoal de bordo deu conta e nem se preocupou, deixaram-me ficar. Eu estive fechada sete horas dentro do primeiro avião; depois estive onze horas dentro do segundo avião, e agora estou dentro deste terceiro avião, é normal que esteja desassossegada, não?… Se eu tivesse ventosas nas mãos e nos pés, andaria a passear pelo teto do avião, só para distrair-me, pendurada como uma aranha. Eles não sabem nada disto, mas deixaram-me em paz no meu desassossego.

E agora como um pequeno pão com manteiga dos Açores. Comer manteiga dos Açores nos ares da Indonésia é um privilégio indescritível. Mal sabia eu que só iria ver manteiga raramente, em Timor, nos melhores hotéis. De resto é margarina. Aquele pãozinho que eu trouxe propositadamente de Portugal, na mochila, para uma urgência destas, caiu maravilhosamente bem.
O que já não caiu tão bem foi o comprimido da malária, que me ia rebentando com o estômago. Fui ler o folheto informativo et voilà – muito frequente: dores de estômago. Como é que o médico diz que ninguém se queixou. Agora tenho uma carga de comprimidos diários, para mais dum mês, caríssimos, gastei 104€ nisto, e não vou poder tomar mais. É impossível fazer uma viagem de 26 dias, com esforço físico intenso, sem conseguir comer com dores de estômago. Comprimidos – lixo. Seja o que deus quiser. Levo três frascos de spray anti-mosquitos, dos mais potentes do mercado, com 50% de deet, e vamos esperar que corra tudo bem. Dois deles vão comigo na bagagem de mão, e o terceiro já ultrapassava a quantidade de líquidos aceites no aeroporto, pelo que foi para a bagagem de porão. Vamos torcer para que a bagagem de porão não se perca. Dois frascos de protetor solar também lá vão. E já me apreenderam o spray anti-mosquitos do quarto. Levo spray para o corpo, e uma lata de spray sem odor para pôr nos quartos, à noite. Comprei a mais cara, dessas sem odor, no supermercado em Lisboa, e agora esta gente do aeroporto de Jacarta apreende-ma. Neste voo doméstico deixaram passar uma garrafa de água, e não deixaram passar o spray anti-mosquitos que ia na bagagem de porão. Tive de abrir a mala e dar-lhes o spray (só encontrar a lata no meio da roupa toda já deu luta). O segurança, um rapaz alto e espadaúdo, viu-me muito contrariada, e hesitou. Foi firme na decisão, de qualquer modo, disse que eu não podia passar com o spray, e foi buscar outro, provavelmente também apreendido, para mo mostrar. Eu muito aborrecida. Eles fazem coleção de sprays, está visto. Onde é que arranjo um spray desta qualidade, sem odor, em Timor. Claro que não arranjei. O segurança viu que eu estava mesmo contrariada. O spray passou no aeroporto de Lisboa, passou no aeroporto da Turquia, e chega aos voos domésticos de Jacarta e não passa. Haja paciência. Ponho uma bomba no aeroporto de Jacarta, como vingança? Levo uma bomba na sola das sandálias – ativo-a agora?

Os chuveirinhos para lavar o rabo, nas casas de banho do aeroporto. E algumas delas estavam molhadas no chão. O conceito de casa de banho nestes países é muito diferente do nosso, em Portugal e na Europa em geral. O chão duma casa de banho é feito para estar molhado. O duche é tomado para o chão. O chuveiro do rabo molha tudo, claro, mas normalmente já está sempre tudo molhado, não faz diferença. Tapetes no chão é algo impensável, nestes países.

Hotel do aeroporto, em Bali.

E assim entrei à meia noite no hotel em Bali, diretamente da recolha das bagagens (chegaram bem, felizmente), pelos corredores fora, até à receção do hotel. Sugestão da Timor MEGAtours, refira-se. Eu tinha reservado outro hotel a 1.5km do aeroporto, e cancelei-o (sem despesas). Este ficou um pouco mais caro, mas o conforto de sair do avião e entrar no hotel, sem táxis e deslocações pelo meio, vale muito.

Pequeno almoço no hotel do aeroporto, em Bali. A dor de estômago provocada pelo comprimido da malária acalmou durante a noite e de manhã tive algum cuidado. Arroz cozido, com água também cozida com frango (eles separam as coisas, mas as pessoas podem misturar na tigela, se quiserem – fazendo assim uma canja).

Pouco faltou para eu entrar em histeria, ao ver estas frutas. O mangostão. O espantoso mangostão ao pequeno almoço. (Quem é que se lembra do manjar dos deuses, nas crónicas da China? Nomeadamente a crónica 112 da China). Nem queria acreditar.

E os dragões vermelhos, no topo superior esquerdo, que parecem um kiwi branco, por dentro. Provei-os no Vietname e nessa viagem trouxe alguns para Portugal, escondidos na bagagem do porão!! Não propriamente pelo sabor, que de facto é pouco intenso e pouco doce, mas pelo seu aspeto exótico.

O mangostão. Mas não eram tão bons como os do sul da China.

Não sei o nome deste fruto, com uma casca que parecem escamas. É rijo e doce. Devia ter provado a outra fruta também, que parece um limão.
[Nota! Informaram-me posteriormente que esta fruta é conhecida por “fruta da serpente”, precisamente pelo aspeto, e a sua árvore é uma palmeira chamada “salak”].

E a viagem vai continuar. Às 9.25h tenho o quarto e último voo para Timor.

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