097 – 28º Dia, a Jogar à Bola com os Garotos; a Comer Sap-Sap e Omelete de Micocó
Hoje tenho o dia livre. Para descansar e arrumar as bagagens. Amanhã parto para Lisboa.
Acordei poucos minutos antes das quatro. Dormi quase nove horas. Já estou mesmo neste ritmo.
Queria esperar pelo amanhecer para tomar o pequeno-almoço lá fora, mas não aguento esperar hora e meia, estou cheia de fome.
Os pensos nas esfoladelas dos pés – feitas no ilhéu Bom Bom, no Príncipe – fazem comichão na zona do adesivo. Tenho pequenas borbulhas.
Às 5h30 a casa está toda aberta, e as galinhas e os pintainhos varrem o extenso relvado. Dei-lhes cascas de papaia e batata doce, tudo picadinho. Passam pela comida e continuam a andar, na sua altivez de galinhas que desprezam o humano e a sua papaia picada.
Ouço os pássaros que fazem uns estalos, nem sei como – com a cauda, disseram-me – a fazerem voos picados.
São 6 da manhã. A minha veia eremita pulsa fortemente nesta casa.
Esta madeira acolhe-me e protege-me. Respira e balança ao mesmo tempo que as árvores lá fora, com o restolhar do vento. Todas estas madeiras respiram, vivem, acolhem-me silenciosamente. Estou escondida no seu interior, como uma formiga, uma aranha. A sua majestosidade faz sobressair a minha ínfima pequenez.
Passo horas escondida aqui nas traseiras da mansão, sentada naquela cadeira de madeira, no meio da vegetação luxuriante, dos pássaros e das galinhas. Penso na vida das pessoas. A minha vida e a de todos nós. Dedicar um dia da semana, 7 horas de trabalho, a lavar roupa no rio. Eu nem quero ouvir a máquina a trabalhar, em minha casa, deixo-a programada quando saio. Quando chego a casa está a terminar, só tenho que estender a roupa.
Estive a estudar novamente o mapa. Gostaria de ir até uma povoação chamada Abade, mas seria uma grande jornada novamente, com ida e regresso com muitas subidas pela floresta. Fui até Milagrosa, quando fui a Bombaim, na crónica 56. Depois segui o caminho em direção a Santa Adelaide. Para Abade seria o outro caminho ao lado.
Hoje vou descansar. Sinto que completei a missão. Mas há muitas aldeias que não conheci.
A Virgínia chega poucos minutos depois das 7. Apanhei um susto porque não a ouvi chegar. Ela veio espreitar às traseiras e exclamou “Está aqui!”
A Virgínia tem duas galinhas e pintainhos, conta-me. O galo viu-o esta manhã, não consegue apanhá-lo. As galinhas morrem com o frio. Começam a andar muito encolhidas.
Não tem porcos nem vacas. Porcos dá muito trabalho, vacas é muito caro, só as empresas é que têm. E aqui roubam muito. Roubam os animais, matam-nos e comem-nos. Também roubam galinhas, diz-me.
A Virgínia não conhece outras terras de São Tomé, nunca foi à Roça Bombaim, por exemplo. Mas a Nilsa, ontem em Plano Água Izé, já conhecia muitas terras, em passeio, inclusive Bombaim. Nunca foi ao Príncipe, e a Virgínia já foi com o Célio.
Falei à Virgínia que estava a ver no mapa a aldeia Abade, que queria lá ir, e ela diz que é muito longe, e muito a subir. É tudo muito longe, nesta pequena ilha de 50 km.
Tem três irmãs e dois irmãos em Portugal. Um deles, o João, está agora aqui na Trindade, mas com o expediente não tem conseguido vê-lo. (“Expediente” – foi o termo que utilizou). De manhã passa lá mas é muito cedo, não o acorda. Depois quando chega, ele já não está.
Perguntou-me se já tomei o pequeno-almoço – “Sim”, respondi, e disse-me que assim não como uma omelete com folhas de micocó, cebola e salsichas. Digo-lhe que porventura amanhã poderei comer, vem o Kymilson buscar-me às 9h30, ela poderá preparar-me uma.
A Virgínia comenta que tem estado a varrer e limpar a casa aos poucos. A mansão é enorme. E capinar dá muito trabalho, os relvados são extensos.
Às 8 tenho que tirar uma camisola, começa a aquecer. Tenho estado com três camisolas vestidas. Não me admira que as galinhas morram com o frio. São galinhas tropicais, habituadas ao calor. Isto é muito frio para elas. E para mim também.
Pondero em ir buscar os meus amigos Marcelo e Raílson para jogarmos à bola aqui no campo de futebol. Se eu der um dos meus chutos bem dados, nunca mais vemos a bola no meio da vegetação circundante.
Uma árvore gigante de fruta-pão no quintal da mansão. É bom usar capacete ao passar debaixo dela. De repente faz vento. A fruta-pão cai ainda verde com o vento, tinham-me dito as crianças.
O Marcelo irá explicar-me em breve, quando aparecer (porque irá aparecer) que à esquerda da árvore gigante da fruta-pão – a árvore mais redonda ao seu lado é um safuzeiro.
Procuro na internet e encontro um dicionário a indicar que “safuzeiro” é uma palavra santomense:
“(Dacryodes edulis): árvore de folha persistente, da família das Burseráceas, nativa das regiões tropicais africanas, tem copa ampla, com folhas alternas, flores pequenas e frutos drupáceos comestíveis, de formato alongado e cor arroxeada na maturação”¹.
O “safu” é fruto dessa árvore, utilizado na medicina tradicional africana².
Duas árvores pequenas de fruta-pão; não têm frutos nenhuns.
Bananeira.
Às 8h40 aparecem os meus amigos Marcelo e Raílson. Perguntam-me se eu quero um sap-sap. Sim, quero! Nunca vi um sap-sap, quanto mais prová-lo!
Então o Raílson foi a correr buscar um, que o Marcelo apanhou numa árvore. Trepou o Marcelo à árvore, fizeram questão disto ficar bem claro.
O sap-sap tem a aparência duma anona gigante, mas não sabe a anona. É semelhante. A textura é praticamente igual. É doce, ligeiramente ácido.
Jogámos meia hora à bola até às 9h30, altura em que se tornou muito difícil afastar muitas crianças do campo. Sentaram-se, instalaram-se no centro, em pé. A Virgínia aborreceu-se com eles, mas sem resultado. Tive de retirar-me com a bola.
Eles foram-se embora e cinco minutos depois retomámos o jogo.
Fiquei toda transpirada. Tive de pôr pensos nas esfoladelas dos pés, calçar sandálias, e vestir uma tshirt. Finalmente deixei os chinelos e as camisolas de manga comprida com que dormi esta noite.
Às 10h a mesma coisa, vem um grupo grande. Querem invadir o campo, jogar à bola também. A Virgínia tem de enxotá-los com maus modos. Mas sem sucesso. O Marcelo diz que não consegue, que eles são mais velhos.
O Marcelo entretanto fica com um pico no pé, vai a casa buscar uma agulha, mas não a encontra. Peço à Virgínia, ela empresta uma agulha com linha. Eu nunca mais me lembrei dos três picos que tinha na mão direita, de andar de rojo no Pico do Príncipe. Observei agora a mão; desapareceram todos. Mas curiosamente há pele caída onde estava o maior.
Separámo-nos às 10h05, a situação tornou-se incomportável, miúdos um pouco mais velhos invadiram o campo e recusaram-se a sair.
Fiquei com pena do pequeno Harry, que fotografei com o pneu, na crónica 77: veio cumprimentar-me e queria jogar, mas eu disse que só queria brincar com o Marcelo e o Raílson. A mãe do Harry morreu, é criado por uma tia, explicaram-me estes.
Porque se abrir uma exceção ao Harry, como posso vedar o campo a toda a miudagem que mora aqui à volta?
Torna-se complicado ter muitos miúdos num recinto privado, frequentado por turistas. O Célio Santiago, dono do resort, não lhes permite. Houve um mais velho que atravessou o campo a corta-mato, através do gradeamento. Já perceberam que o Célio Santiago não está e começam a abusar. O Célio não lhes permite esse corta-mato, têm que dar a volta.
Voltaram depois dois rapazes mais velhos a querer dar-me uma jaca, mas eu dei a minha à Virgínia, não quero mais, pelo que agradeci e não aceitei. Foi simpático, o seu gesto. Creio que lhes fará mais falta a jaca a eles, do que a mim, que não irei comê-la. Teria que dá-la outra vez à Virgínia. Aquilo cola muito, fico toda colada 🙂
O Harry mandou dizer que queria dar-me uma laranja, e eu expliquei ao Marcelo e ao Raílson que há muitas laranjas em Portugal, que não preciso de experimentar. Perguntaram-me por mamão, e eu disse que não experimentei, mas a Virgínia depois disse que papaia e mamão é a mesma coisa. E papaia tenho comido todos os dias.
Novamente sozinha com a Virgínia. Os garotos foram-se embora. São 10h15. Quando terminou de passar a ferro, convidei a Virgínia a sentar-se naquela cadeira à minha frente, atrás das toalhas. A Virgínia não quis. Foi buscar um banquinho muito pequeno e sentou-se no corredor. Já é uma sorte conseguir fazê-la sentar-se. E conversar um pouco.
Um falcão sobrevoa a mansão. “Está à procura de pintos”, diz-me a Virgínia.
A Virgínia tem 63 anos, tem apenas uma filha e dois netos. Ganha 2.000 dobras de ordenado (80€). É um ordenado comum em São Tomé e Príncipe, conforme dados do Instituto Nacional de Estatística, os quais apresentei na crónica 13.
A Virgínia deita-se entre as 20 e as 21h, e acorda às 5. Afinal eu até tenho estado bem integrada no esquema. Eu acordo às 4, uma hora antes portanto, e deito-me uma hora antes também. Bom, ontem deitei-me às 18h30, se calhar bati os recordes. E dormi ferrada quase 9h.
Às 11h o Marcelo e o Raílson aparecem outra vez, estou eu sentada com a Virgínia aqui nas traseiras. Querem a bola para jogar, mas eu quero estar descansada e em silêncio. A Virgínia diz-lhes que eu tenho um trabalho para fazer e que tenho de estar sozinha. “É mentira”, dizem eles, e vão-se embora.
Entretanto digo à Virgínia que quero experimentar a omelete de micocó, ela vai então apanhar as folhas para fazer-me uma. São 11h.
Chuvisca. Começou a chuviscar quando a Virgínia estava a apanhar o micocó, tive que abrigar-me no alpendre por causa da máquina fotográfica.
O micocó cheira e sabe ligeiramente a hortelã, mas é diferente. Também se faz chá de micocó, diz-me a Virgínia. E eu lembro-me do guia Mayke dizer-me que ainda eu teria de beber uns chás de folhas de micocó para ganhar forças, na crónica 48!
Encontro também uma notícia curiosa sobre o micocó:
“Depois de um diálogo, na ilha do Príncipe, com o “Sr. Assunção”, um dos vários “curandeiros”, segundo a comunicação social, com quem Marcelo Rebelo de Sousa conversou, sobre ervas e mezinhas, eis que este santomense diz ao presidente que as folhas que trazia na mão eram boas para “espevitar o apetite”. Disse o Sr. Assunção: “Se o senhor Presidente tiver falta de apetite, de comer…”. Mas Marcelo não o deixou terminar e respondeu: “Não é o caso…”.
Mas o Sr. Assunção não desarmou e disse a sorrir: “Faz chá disso e também aquece o material”.
E aqui Marcelo, referem as crónicas, arregalou os olhos e ripostou: “Ai aquece o material…?!”.
E eis que, quando a conversa prometia, a professora universitária e investigadora de plantas tropicais, Maria do Céu Madureira, interveio para mudar o assunto e dizer que “cheira muito bem e é da família do manjericão”.
É sempre assim, quando a conversa estava a “aquecer”, eis que o protocolo se intrometeu!”³
(Fim de citação)
A omelete de micocó, cebola e salsichas pode não ter bom aspeto, mas é perfeitamente deliciosa. A frigideira pega-se, por isso os ovos estrelados – e agora a omelete – ficam meio desconjuntados.
São agora 11h30. Tomei o pequeno-almoço às 5 da manhã, pelo que seis horas e meia depois, isto já é um almoço. Ainda tenciono ir à Nelta almoçar, se calhar lá para as duas da tarde.
Ao meio-dia eu disse à Virgínia que podia ir-se embora. Já não há nada para fazer, já lavou a louça pela segunda vez. A casa fica aberta, mas o portão está encostado e as portas de madeira do alpendre estão encostadas também. A Virgínia pergunta-me se não tenho medo. Eu tenho é receio de ser importunada pelos bandos de garotos, que são muito difíceis de controlar. O Marcelo e o Raílson saem prejudicados, e eu também, por causa disto. Poderíamos ter passado muito mais tempo juntos, mas eu não tenho paciência nem vida para tanta agitação. Rute, a eremita, optou na vida por não ter filhos. Está habituada ao silêncio. Queria ter brincado mais com o Marcelo e o Raílson, conversado com eles, mas sem vinte crianças atrás, algumas um pouco insolentes.
Acabei por comer mais duas bananas e leite frio do frigorífico.
Mas estou com o sentido no faisão, num restaurante perto do Cruzeiro, depois da Trindade, onde passei de bicicleta quando vinha de Uba Budo. Abriguei-me lá, durante a chuva, e o dono disse-me que servem faisão todos os dias. Será que servem às 3 ou 4 da tarde? A essa hora será a minha hora de jantar, existindo jantar. Mas isto significaria uma grande pedalada para chegar lá, com subidas.
Volto a vestir as minhas três camisolas, e desta vez por cima da tshirt que já tenho. Fico com quatro, portanto. Pensava encontrar um São Tomé e Príncipe mais quente. Lá para as praias do norte deve estar mais calor, aqui nas alturas do centro faz sempre fresco. Nem quero imaginar para os lados de São Nicolau, lá em cima nas altitudes, devem andar de luvas e cachecol.
Os cortinados voam, as portas batem, o vento sopra, a folhagem das árvores sussurra. Crianças ao longe gritam. Esta casa é dada ao sossego e à introspeção.
É meio dia e meia e ainda não mexi uma palha. É suposto fazer as malas.
Deitei mãos à obra.
Às 13h há bola outra vez.
O Marcelo e o Raílson vieram espreitar-me. Eu estava estendida na cama, com os pés de fora para não sujar a colcha. Fingi que estava a dormir. Está tudo escancarado. Chamaram-me ao longe e fugiram pelas grades onde as galinhas se metem. Mas o Raílson caiu na fuga e ficou do lado em que eu o vejo. O Marcelo conseguiu desaparecer a tempo e só veio uns minutos depois, quando eu já dizia ao Raílson que não podíamos ir brincar porque iriam aparecer outros vinte meninos. E que estou cheia de sono. E que eles estão em propriedade privada e que estando o portão fechado não podem estar aqui. Só quando o segurança Abílio vier, depois de almoço, porque tem uma arma e afugenta os outros meninos, disse-lhes eu.
Eles fixaram-me, sérios. Eu mantive o ar sério também. Sim, todos sabemos que ele tem uma arma que afugenta os meninos.
Tivemos ali uns minutos de impasse, eu indecisa sobre o que fazer. Agora já não tenho a Virgínia para ajudar-me, e o Abílio ainda não chegou. Eu não consigo dar conta de vinte crianças.
Mas cedi dizendo que se aparecer alguém eu agarro na bola e vou-me embora, e eles têm de ir também embora. Assim ficou acordado e retomámos o jogo.
Nesta zona não há um espaço grande com campo de futebol ou atividades para as crianças. Não têm alternativa senão brincarem na estrada. Os carros passam a grande velocidade, a descer por ali abaixo. Em São João dos Angolares há um campo de futebol, gradeado, que fotografei na crónica 86. Aqui em Belém e Trindade não há nada, não há espaços próprios para as crianças brincarem.
Jogámos quase até às duas da tarde, à baliza, aos toques, ou a chutar entre os três. Ninguém mais apareceu. Eu tenho um duplo record de 82 toques, pelo que não fiquei atrás deles. Estive um pouco na baliza também, três chutos apenas.
Fiquei toda transpirada novamente, de tshirt.
Descobri durante o jogo todo o meu lixo feito nestes dias: está ao lado do campo de futebol, entre a vegetação. Estranhei quando vi nas redondezas o plástico dum dos meus pacotes de bolachas. Voou com o vento e vi-o. Os rapazes dizem que vem um camião recolher o lixo nos caixotes, mas aqui não há caixotes. Nunca vi caixotes do lixo.
Fiquei estupefacta. Todo o meu lixo – pacotes de leite, pacotes de bolachas, garrafas de plástico – ali no meio da vegetação. O problema do lixo em São Tomé e Príncipe é dramático. Se já num país rico e desenvolvido é um problema, quanto mais num país pobre e em desenvolvimento. Será preciso queimar o lixo.
Entretanto começou a chover e eu disse para eles irem almoçar. Depois de almoço retomamos.
A irmã do Raílson vai trabalhar de manhã e deixa a casa fechada à chave. O Raílson não consegue entrar em casa até que ela chegue, cerca das 5 da tarde. Perguntei o que vai comer. Não sabe. O Marcelo diz que a mãe lhe deixa uma chave (a qual deixou em casa) e lhe deixou arroz, bem como batata doce para ele cozer, se lhe apetecer. Vai levar o Raílson com ele e partilhar o arroz com ele.
Fiquei muito surpreendida com isto. Pergunto-me se não faltará um ponto nesta história. O Raílson nunca consegue entrar em casa durante o dia? Não lhe deixam comida? Mas ele aparentemente está bem alimentado, está bonito e saudável. Perguntei-lhe se ele não levava os meninos todos lá para casa, fazer disparates, e por isso a irmã lhe fecha a casa. Eles – ambos – responderam que não.
Faz fresco, tenho de vestir novamente as camisolas por cima enquanto espero.
Dormi até às 3 da tarde. Tudo escancarado, eu de calções e sandálias, e 4 camisolas.
Às 15h30 ainda não apareceram. Eu tenho que ir tomar banho antes que arrefeça mais do que o gelo que já faz. A casa de banho não tem vidro, só ripas de madeira.
Fui buscar ao quiosque as minhas duas carcaças reservadas, já dentro dum pequeno saco plástico branco atado, dentro da sarapilheira do pão, e vejo seis ou sete crianças sentadas, alinhadas lado a lado, a ver televisão no restaurante da Nelta. Fizeram-me adeus, eu ri-me e devolvi o adeus. Pouco depois ouvi-os a cantar com a televisão. Devem conhecer os desenhos animados e as músicas todas.
Os miúdos que estão na casa junto ao quiosque do pão dizem-me que eu não os deixo jogar à bola. Pois não, corroborei.
Às 16h30 estou a lanchar um iogurte com bolachas, na mesa lá fora. E o resto do sap-sap oferecido pelo Raílson e pelo Marcelo. Eu queria ter comido logo tudo de manhã, dividido o sap-sap entre os três, mas eles não quiseram. E eu também estava cheia ainda, do pequeno-almoço. Os rapazes comeram só uma fatia. Será que tinham instruções para não o comer todo? Agora fiquei preocupada com o Raílson.
Eu ainda tenho que ir preparar a bicicleta. Não é preciso desmontar os pneus, basta virar o volante e tirar os pedais. Amanhã de manhã já não ando.
Ainda tenho que fazer o trabalho da seleção de fotos de hoje.
Os dois rapazes chegaram às 17h15 com banho tomado e roupa lavada. Estava eu a preparar a bicicleta para o avião. Vinham despedir-se e eu perguntei se já não vamos jogar às cartas, como tínhamos falado. Foram buscá-las.
Depois, estávamos os três a jogar, quando o Jezimar – de tshirt azul escura – bateu ao portão. O Marcelo e o Raílson foram ao portão falar consigo. Voltaram com uma mensagem para mim: o Jezimar é o dono das cartas, pelo que quer jogar connosco a pares.
São surpreendentes, estes garotos. Está bem visto. Se é o dono das cartas, tem direito a estar aqui. O Jezimar entrou no recinto, cumprimentámo-nos com um aperto de mão, e ficámos então a jogar os 4.
Os três têm 12 anos. O Raílson (ao centro) passou para o 6º ano. O Marcelo e o Jezimar passaram para o 7º ano.
Jogámos às cartas até quase às 19h. Eu já com muito sono, o Raílson a bocejar. Deixei-lhes o meu website e Facebook escrito num guardanapo, para mais tarde verem estas fotos. Depois estavam a desentender-se sobre quem ficava com o guardanapo, pelo que voltámos todos para trás e eu escrevi o mesmo noutros dois guardanapos, um para cada.
Jogámos à bisca dos 5, ao burro e a um jogo com cartas em que se ganham elásticos. Nos pulsos do Marcelo e do Raílson, na foto anterior, vêem-se os elásticos. Aqui em São Tomé e Príncipe é o 5 que vale dez pontos, não o 7, pelo que ainda fiz uma má jogada por causa disso. Eu queria retirar a carta, mas o Raílson e o Jezimar não queriam, o Marcelo dizia que sim, que dada a diferença entre os países, deveria ser-me dada uma nova oportunidade. Eu acabei por manter a jogada. E aqui o valete chama-se conde. O Raílson disse que não sabia os nomes e os pontos das cartas, pelo que ao longo do jogo fui-lhe passando essa tarefa, de contagem e identificação das cartas, e assim aprendeu de vez o nome e os pontos das cartas. Custou a fixar o conde, dizia que se chamava terno.
“Bolô” é o trunfo. “Bisca” é a palha. Joga bolô, dizia-me o Marcelo quando jogámos a pares.
Eles jogam as cartas na mesa com muita violência, frequentemente as cartas viram-se. Eu perguntei para quê essa força toda, e o Jezimar respondeu convictamente “É para mostrar que somos fortes!”
Despedimo-nos todos com dois beijinhos. Como voltámos para trás por causa dos guardanapos, depois houve novos abraços. Vai bem, vai com Deus, dizem-me. Estudem muito, pode ser aborrecido mas tem que ser, é muito importante!, digo-lhes eu. O Jezimar já tem planos de ir estudar para Lisboa, em breve.
Sentiram curiosidade com o meu cabelo; enquanto eu escrevia nos guardanapos eles mexiam muito a medo num dos meus caracóis.
Ainda estiveram todos a aprender a fotografar e a usar o zoom, com a minha máquina fotográfica.
São 19h e eu ainda nem selecionei as fotos do dia.
Deitei-me às 20h.
O poeta Pedro Tamen escreveu estes versos:
E ao fim do meu dia
a matéria de que se faz a minha vida
de novo abandonada…
de novo de novo abandonada…
pergunta-me silenciosa
se ao apagar da luz
a vida terá princípio.
¹ “Safuzeiro”. Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [online]. Porto: Porto Editora, 2003-2020. Página consultada a 23 janeiro 2020,
<https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/safuzeiro>
² “Safu”. Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [online]. Porto: Porto Editora, 2003-2020. Página consultada a 23 janeiro 2020,
<https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/safu>
³ “Micocó, a planta de São Tomé e Príncipe que “aquece o material”|Conheça-a.” (2018, 25 fevereiro). Jornal online Dão e Demo. Página consultada a 23 janeiro 2020,
< https://daoedemo.com/micoco-a-planta-de-sao-tome-e-principe-que-aquece-o-material-conheca-a/>