080 – Uba Budo (Velho)

Logo à saída da Roça Uba Budo existe esta estufa. Fiquei impressionada porque apercebo-me que está aqui um trabalho bonito. Desmontei da bicicleta e fui bisbilhotar.

Apareceu o Dani, que afinal é o dono da estufa. Explica-me que foi o Governo que a construiu, e que esta estufa fornece outras sete em São Tomé. Mostra-me aqui um composto orgânico para fertilizar a terra.

O Dani mostra-me esta garrafa com outro composto orgânico feito de malagueta, “têmpera preta” (uma mistura de carne, peixe, e outras comidas), alho, e mais um ingrediente que não se recordou no momento – para pulverizar e atacar os insetos nas plantas. É tudo biológico, por aqui.
Explicou-me uma série de coisas, nomeadamente que a bomba de água permite tirar 6.200 litros de água para a estufa.

O Dani é conhecido por Tirabota (nome retirado dum programa de rádio de São Tomé, pelo que percebi); tem 3 filhos, o mais velho com 17 anos no 11º ano. Irá para a universidade em Lisboa. É muito bom a matemática e ainda não decidiu o curso. Frequenta a escola na Voz da América (a terra onde eu passei na crónica 45), e quando eu disse que era longe, respondeu-me que ele vai de mota. O 12º ano já irá fazê-lo em Portugal, disse-me ainda. O rapaz vai já tirar o 12º ano em Portugal, para se ir ambientando. Depois tem uma menina com 11 anos, e outro rapaz com 12.
Pode ser que o mais velho se forme nestas áreas de agricultura e gestão e consiga desenvolver e fazer prosperar o negócio. Agricultura biológica é o que está a dar.

Despedi-me do Dani, que também tinha que ir embora – ia à cidade tratar de qualquer coisa, e prossegui o meu caminho em direção a Uba Budo Velho. Muito gostava eu de saber o que é isso, Uba Budo Velho. Bute lá, Rute, conhecer Uba Budo Velho. É preciso algum treino verbal para conseguir dizer isto.

Fui vendo muitos falcões pelo caminho. Esta zona está cheia deles. Estão pousados no chão, e conforme me aproximo na bicicleta silenciosa, eles espantam-se e voam, fugindo. Nesta estrada estavam 5 ou 6 pousados no chão.

O GPS diz-me que cheguei a Uba Budo Velho. São 10h03 e tenho 18,6 km na bicicleta. Ainda me perdi num emaranhado de caminhos pelo meio da vegetação, mas cá cheguei.

Está tudo deserto e silencioso. Não se vê vivalma. Estas minhas chegadas desertas e silenciosas até assustam. Estou num filme de ficção científica em que sou a única habitante da terra. Desapareceram todos. Silêncio. Portas abertas, casas abertas, tudo escancarado – e ninguém.

Aqui é a creche. Se não existem crianças agora, já existiram!

Esta casa, pelo que percebo, é das raras que não está habitada. Pelo menos não tem vestígios humanos, como roupa a secar, objetos, panos. As ervas crescem livremente, sem controlo, à sua porta.

E enfim, eu vou-me embora. Não aparece ninguém. Aproveitei para enviar uma mensagem de Whatsapp. Aqui em pé, no meio da vegetação, em silêncio. O meu plafond de internet comprado logo no primeiro dia do Príncipe continua estável. Comprei 3 GB por 200 dobras, e ainda tenho muita disponível.
Ouvem-se muitos pássaros. E vento na folhagem. O ambiente é um pouco estranho, com casas em ruínas e escancaradas (fugiram todos ou quê?). Eu estou atenta à minha volta. Cheguei em silêncio e continuo em silêncio. Mas não posso demorar-me, deixa de ser seguro.
Vou regressar por Uba Budo. Poderia descer em direção ao mar e depois seguir para a cidade, já que estou mesmo perto do mar (recordo que o mapa de Uba Budo Velho pode ser consultado na crónica 78), mas não me apetece ir meter-me nessa confusão. Vou regressar pela floresta, pelo mesmo caminho de onde vim.

Já estava eu a arrancar na bicicleta, quando chega um habitante de Uba Budo Velho. Afinal alguém está vivo. Afinal existem pessoas. Ficámos frente a frente – eu ia na bicicleta embora, ele vinha dessa direção – meio desconfiados um com o outro. Eu já esperava alguém, eu já andei a rondar tudo, mas este homem não estava à espera de ninguém. Olhou-me com surpresa e curiosidade, sem parar de andar, carregado. Cumprimentei-o com um “Bom Dia”. Não venho fazer mal a ninguém. E ao mínimo sinal de hostilidade fujo na bicicleta.

Só arranjei coragem para fotografá-lo já ele estava de costas para mim, seguindo o seu caminho (pelos vistos em direção à sua casa).
Este foi um encontro bizarro. Em todas as roças encontrei muita gente, crianças a brincar, animais. Mas aqui estive quase vinte minutos com tudo deserto. E aparentemente este homem é o único habitante agora presente. Se calhar pensa que vou fazer-lhe mal. Que há mais alguém comigo, no meio dos arbustos, para fazer-lhe mal. Pensem nesta situação: uma pessoa chega a casa e tem um estranho à porta, à espera. Tudo deserto. Creio que no mínimo ficaríamos desconfiados. A minha situação não era confiável, mas a dele muito menos.

Então este habitante de Uba Budo Velho chama-se Eca. “Eca? Eu nunca tinha ouvido esse nome”, disse-lhe eu. Ele riu-se e confirmou que é um nome raro. (Será que o Eça de Queiroz alguma vez imaginou que existiria o seu nome sem a cedilha?…)
O Eca tem 38 anos e mora aqui há quase 20. Diz que são ao todo vinte e tal pessoas, e que existem crianças. O mais novo tem 7 anos, o mais velho tem 80 e tal.

O Eca fechou os olhos com o flash e eu não dei conta. Devia ter repetido a foto. Está a mostrar-me um forno de carvão. Vende carvão, é carvoeiro. Explica-me que o carvão está a arder há 4 dias. E que são 8 dias no total, para ficar pronto.

Aqui não há cobras-pretas, fiquei a saber. Diz que ao pé de Santa Adelaide um homem mostra as cobras a apanhar sol, que se vêem muitas. Que pena, eu já lá passei, e não vi nenhuma, nem sabia da existência desse homem, senão teria ido ter com ele.

Questionei-o porque mora aqui tão longe, num local tão remoto, tão isolado de tudo. Diz-me que tem acampamento lá em baixo em Cova Água, mas aqui tem três parcelas de terra – uma da mãe, que ainda é viva.
Eu disse que isto é muito isolado e que quando eu quiser fugir da Europa virei para aqui. O Eca riu à gargalhada.

Caiu da bicicleta com dez anos de idade, no rio. Entraram-lhe ferros na cabeça e numa perna. Partiu os dentes da frente. Ficou num estado muito grave e os médicos recomendaram repouso absoluto, numa tentativa de sobrevivência. A mãe trouxe-o para aqui. Vive bem e gosta muito de aqui estar.
O Eca entretanto viveu aqui com uma mulher moçambicana. Mas o pai dela morreu e ela foi chamada de volta. Não tiveram filhos. Ficou com terras, tem galinhas e porcos pequenos.
Vem cá um carro à segunda-feira da Sotacacau buscar cacau, que ele vende. Vai a Santana comprar coisas.
As galinhas na época da gravana não põem ovos, explica-me. (Estamos agora na época da gravana, ou seja, época seca – São Tomé e Príncipe tem duas estações: a das chuvas, e a seca. A temperatura é sempre igual, todo o ano). Portanto agora não têm ovos.
Antes pescava palanque e concó, numa canoa.
Não sabe fazer vinho da palma, não aprendeu, não precisa. Mas sabe que não se pode tirar demasiados litros. 12 é o máximo; há quem tire 20 e tal mas mata a palmeira.
Há muitas bananeiras por aqui, e o Eca diz que não tem barriga para comer estas bananas todas. Dá à família. Tem 2 filhos: uma menina e um menino que estão na cidade com a mãe. Também tem três irmãos em Portugal e dois em Espanha.

O seu telemóvel caiu ao rio, agora não tem dinheiro para comprar outro. Há um mais barato mas não o quer, não presta.
Aqui não há mosquitos. Lá em baixo mais perto da praia há. Não dorme com mosquiteiro. Aqui na roça não há, e fica tudo admirado. (E eu também).
Agora vai almoçar (chegou às 10h20, quando a nossa conversa começou); trabalhar na roça; às 15h toma banho e vai para a vila Cova Água ver os amigos. Depois volta.

Despeço-me do Eca e parto às 11h20. Ainda estive 1h20 em Uba Budo Velho, uma hora a conversar com o Eca. Nem dei conta do tempo passar. Disse-me que me levaria um sap-sap – um fruto que eu ainda não provei – bem como um ananás e um mamão, cerca das 17h de 2ª feira. Hoje é sábado. Tenho que deixar indicações no restaurante da Nelta, para o identificarem, quando chegar. Pediu-me 50 dobras para os táxis. Eu hesitei porque o dinheiro que trouxe está a acabar-se. Queria evitar ter de ir ao banco levantar mais. Mas pronto, dei as 50 dobras. Não faço ideia se aparecerá ou não. Eu queria mesmo provar o sap-sap. Não o encontro à venda em lado nenhum.

O Eca teve um discurso perfeitamente inteligente, sério, sensível. Se me dissessem que ele estudou na universidade, que era médico ou engenheiro, um homem culto, e que decidiu abandonar tudo e vir viver para aqui, eu acreditava.

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