059 – A Temível Cobra-Preta

Continuo na Roça Bombaim. Vou estar aqui sentada durante algum tempo, na companhia do Rato Cabinda, a conversar. Do lado onde estamos existe outro banco igual àquele.

A Adelaide está relativamente longe; esta foto foi tirada com um grande zoom. Ela nem deu conta que eu a fotografei, tão pensativa.

O Rato Cabinda explica-me que o camião que eu vi parado, na entrada da Roça, é o camião que transporta os residentes da Roça Bombaim à cidade. Conforme referi na crónica anterior, as pessoas vendem lá cacau, matabala, banana e café. Este caminho não é fácil, não pode ser um carro, apercebo-me. Tem de ser um camião todo-o-terreno.
Disse-me também o número de pessoas que aqui vivem: 15 adultos e 7 crianças.

Aproveitei para perguntar ao Rato Cabinda por vacas. Porque é que não existem vacas em São Tomé e Príncipe, ou mesmo aqui, na Roça Bombaim. Sempre dariam leite e queijo, e carne. O Rato Cabinda respondeu-me que existiam vacas há 4 anos atrás: dez vacas, as quais pertenciam ao hotel. Fernão Dias tem vacas, diz-me. Eu estive lá e não vi vacas nenhumas. “Estariam noutro local a pastar, não visíveis”, respondeu-me. São João dos Angolares também tem, diz. Ainda não fui lá, fica no sul da ilha, e ainda não fui para o sul. Acrescentou que um bezerro custa 500€. Credo. Há planos para arranjar dois, vindos de Angolares.

O Rato Cabinda tem 5 filhos a viver noutro local. Estiveram aqui no fim de semana (hoje é 2ª feira), e foram embora hoje de manhã. A sua mulher foi vender coisas no mercado.

Esta jovem galinha toma banho na terra, explica-me o Rato Cabinda. Ela está a esfregar-se naquele pequeno buraco na terra.

Cabeças da temível cobra-preta, que se descobriu recentemente ser uma espécie endémica de São Tomé, ou seja – só existe na ilha de São Tomé e em mais lado nenhum do mundo. Nem sequer na ilha do Príncipe. Como tal, agora já não se pode matá-la, é uma espécie protegida, e vieram cá uns especialistas do ambiente explicar isto à população, contou-me o Rato Cabinda. Coitadinha da cobra. Faz parte da natureza – está na sua natureza ser venenosa – não quer dizer por isso que seja morta. Fiquei com muita pena de ver estas cabeças de tantas cobras-pretas mortas.

Volto ao biólogo Luís Ceríaco, que já citei nas crónicas 16 e 20, a propósito da Lagartixa do Príncipe e do Musaranho-Fingui. Pois o biólogo Luís Ceríaco voltou a descobrir uma espécie endémica de São Tomé, desta vez esta Cobra-Preta, cujo nome científico foi atribuído por si: Naja peroescobari. Recordo que a ilha do Príncipe foi descoberta pelo explorador português Pêro Escobar, em 1471. (E aqui surge um ponto curioso: pelo que os principenses me contaram, bem como os santomenses, esta cobra só existe em São Tomé, não existe na ilha do Príncipe. Se calhar o seu nome deveria ser o do navegador português que descobriu São Tomé, e não o navegador que descobriu o Príncipe… Foi João de Santarém quem descobriu a ilha de São Tomé em 1470. A cobra, sendo de São Tomé, se calhar deveria chamar-se Naja joaosantarini, ou algo do género, mas pronto…)

Homem mordido, homem perdido
Ceríaco encontrou um relatório de 1540, que inclui um relato duma visita a São Tomé por um explorador português em 1506, quando estava a ser colonizado. O explorador descreveu uma cobra negra que era “tão venenosa que, quando morde um homem, os seus olhos explodirão da cabeça e ele morrerá”. Essa era, sem dúvida, a cobra-preta, diz Ceríaco, embora retratada com uma hipérbole arregalada.

A descoberta veio na hora certa, diz Ceríaco. São Tomé está a tornar-se mais consciente da conservação e a cobra-preta poderia ter sido destinada à erradicação, uma vez que não parecia ser uma espécie nativa. Moradores já visam e matam as cobras por causa das suas mordidas mortais, diz Ceríaco. Alguns, no entanto, apanham-nas e comem-nas como uma iguaria. “Esclarecer o equívoco de que a cobra-preta não pertence a São Tomé será um primeiro passo importante para conservar estas cobras únicas.”¹

Foto de Paulo Paixão retirada do site iNaturalist.

Deixo a transcrição dum texto do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, onde Luís Ceríaco é curador:

Há muito tempo que a Cobra-preta é conhecida na ilha de São Tomé e Príncipe como uma espécie invasora que foi introduzida pelos colonos portugueses para controlo de pragas de ratos, mas também reconhecida pela população por ser altamente venenosa. No entanto, apesar desta presença histórica e recorrentemente descrita, a Cobra-preta foi até agora confundida com a sua congénere continental – a Naja de Floresta Africana (Naja melanoleuca).

Luís Ceríaco explica que «a Cobra-Preta (Naja peroescobari) é uma serpente de grandes dimensões (mais de dois metros) de coloração maioritariamente preta à exceção das faces laterais da cabeça e do seu “colar” branco que se estende, de forma descontínua, até à 22ª ou 23ª escama ventral».

Já a «sua congénere continental, a Naja de Floresta Africana (Naja melanoleuca), é um pouco mais pequena e apresenta uma coloração negra menos marcada, com algumas marcas brancas na zona dorsal da cabeça e um colar branco descontínuo até cerca da 50ª – 60ª escama ventral. Para além da coloração, a duas espécies diferem também na forma como as escamas sublinguais contactam».²

A banha da Cobra-preta. A propósito disto, continuemos com um texto de Luís Ceríaco:

Banha da cobra: uma mezinha que custa caro às cobras
Na segunda mezinha publicada por Luís Ceríaco, biólogo doutorando em História e Filosofia das Ciências, o autor explica-nos a história, as verdades e os mitos por detrás da “banha da cobra”.

Da grande variedade de mezinhas e produtos etnofarmacêuticos que povoam a medicina popular em Portugal, poucas serão tão famosas como a “banha da cobra”. A expressão é antiga e refere-se a várias receitas baseadas em partes do corpo de serpentes e utilizada para tratar diversas maleitas. No entanto, nos dias de hoje, e como é situação comum para a boa parte dos conhecimentos originários do conhecimento popular, a expressão é habitualmente utilizada de maneira depreciativa, como metáfora para um produto de má qualidade e de resultados duvidosos, sendo mesmo a personagem do “vendedor de banha da cobra” utilizado no discurso público para identificar alguém mentiroso e de falso caráter. Para além de imagem metafórica, a banha da cobra trata-se de facto de um tratamento da medicina popular portuguesa ainda hoje referido e aplicado em zonas mais remotas do país.

Uma das “regras de ouro” da medicina tradicional em quase todo o mundo e que se aplica ao uso de partes animais para o tratamento de doenças é o de que quão mais assustador ou perigoso for o animal, maiores serão as suas aplicações e eficácia no tratamento das maleitas. Esta regra não é única e exclusiva, mas no entanto retrata bem o caso das serpentes. A aplicação direta de gordura extraída de serpentes em cima de feridas para as curar, a utilização da mesma diretamente sobre áreas afetadas por herpes, zonas de dor reumática ou qualquer outro tipo de dor, ou mesmo a ingestão de uma mistura de gordura de cobra com azeite de modo a combater episódios febris, são exemplos de algumas aplicações diretas da “banha da cobra” ainda hoje referidas na farmacopeia popular portuguesa. Para além da gordura, existem ainda outras mezinhas que utilizam produtos originários do animal. É o caso do uso do pó derivado da trituração da pele de cobra misturada com azeite para a aplicação sobre feridas e dores de dentes ou a aplicação apenas do pó diretamente sobre queimaduras, dos chás de pele de cobra contra a tosse, das sopas de cobra contra o reumatismo e contra os furúnculos, etc. É importante notar que muitas destas mezinhas se encontram também elas presentes em várias farmacopeias portuguesas do século XVIII, denunciando um uso continuado há mais de três séculos. O uso da banha da cobra não é exclusiva de Portugal, nem mesmo da Europa. Do Brasil a Angola são várias as aplicações terapêuticas utilizadas pelos povos locais para o tratamento de várias doenças, algumas das quais de forma idêntica aos usos europeus. Embora existam várias receitas exclusivas, muitas outras indicam a possibilidade de transferência de informações entre povos e culturas. É comum em Angola encontrar grandes jiboias a serem vendidas em mercados locais em que a carne é usada para a alimentação, a gordura para aplicações terapêuticas contra as dores reumáticas (tal em qual em Portugal), e os olhos utilizados para sopas e rituais mágicos (exclusivo de Angola).

Não se pense porém que a utilização de partes de serpentes para práticas de magia e superstição não existam em Portugal. Na farmacopeia Medicina Lusitana, de 1731, referia-se que a utilização de cabeças de cobra como amuletos junto às cabeceiras afugentaria as bruxas e os maus espíritos, e na Pharmacopeia Tubalense, de 1735, referia-se que o uso específico da cabeça de uma cascavel (espécie inexistente em Portugal) pendurada ao pescoço preveniria ataques epilépticos. Embora raro, ainda hoje em Portugal se pode encontrar quem acredite em semelhantes poderes mágicos e protetores da cabeças de serpente, visto que há ainda quem considere que o uso de uma cabeça de serpente seca ao pescoço pode de facto prevenir a tuberculose. Mais grave ainda é o uso de cabeças de víbora como amuleto de boa sorte, infelizmente ainda bastante comum no norte do país e com consequências bastante nefastas para as populações destes animais.

Não existem quaisquer evidências científicas de que qualquer um dos compostos presentes na gordura ou corpo das serpentes tenha efeitos farmacológicos, contrariamente ao veneno presente em algumas espécies e já hoje utilizado em vários medicamentos. É portanto desaconselhável a utilização deste tipo de tratamentos. Para além da questão da saúde, é importante constatar que todas as espécies de serpentes em Portugal se encontram protegidas por lei, o que torna a sua captura e consequente morte ilegal, por óbvios motivos de conservação.³

O Rato Cabinda reparou no estado do meu selim, e foi buscar fita-cola para colá-lo, e impedir que continue a rasgar-se. Efetivamente é uma boa ideia, nem me tinha ocorrido. E efetivamente o resto da viagem em São Tomé e Príncipe vai ser feita sentada em cima desta fita-cola.

Parti às 11h40 da Roça Bombaim. Estive lá 1h45. Mais tempo ficaria, na conversa com o Rato Cabinda, naquele sossego silencioso (e infelizmente decrépito), se as questões existenciais não me assolassem, nomeadamente a preocupação com a hora de almoço, o regresso, e agora a ameaça de chuva. Faz fresco até.

O musgo revelador da altíssima humidade aqui existente. São Tomé é uma ilha tropical, recordo. Quente e húmida.

O que é isto? Um cacau na berma da estrada, já amarelado, e portanto maduro, pronto a comer. Quem é que deixou um cacau maduro aqui na estrada?

Eu queria levá-lo comigo, e até o guardei na mochila. Mas desisti porque é pesado, e tenho muitos quilómetros pela frente – e a subir. Tenho uma forte subida até chegar a Belém. Com pena, voltei a pôr o cacau na berma da estrada, com cuidado. Alguém há-de ficar com ele, e eu poderei comprar um no mercado, na cidade, sem necessidade de andar agora carregada. Recordo que já comi um cacau fresco na crónica 42, onde mostro as fotos do fruto descascado. Se eu tivesse como parti-lo, até o comeria já. Mas sei lá partir isto.


¹ Mowbray, Sean (2017, 27 Setembro) “’Invasive’ snake is really a new species and should be protected”. New Scientist. Página consultada a 18 Novembro 2019,
<https://www.newscientist.com/article/2148751-invasive-snake-is-really-a-new-species-and-should-be-protected/>

² “Curador do MUHNAC descobre nova espécie de serpente em São Tomé e Príncipe” (2017, 10 Outubro). Museu Nacional de História Natural e da Ciência. Página consultada a 18 Novembro 2019,
<https://www.museus.ulisboa.pt/en/node/1894>

³ Ceríaco, Luís (2012, 20 Novembro) “Banha da cobra: uma mezinha que custa caro às cobras”. Ciência 2.0. Página consultada a 18 Novembro 2019,
<https://ciencia20.up.pt/index.php?option=com_content&view=article&Itemid=&id=376>

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