033 – Príncipe – 11º Dia, Voo para a Ilha de São Tomé
Chegou a hora de abalar. O voo para São Tomé é às 10h20. Hoje é segunda-feira, 15 de julho de 2019.
Choveu torrencialmente toda a noite. Deixei o despertador para as seis, mas estou habituada a acordar mais cedo. Acordei de livre vontade às cinco. E continua a chover torrencialmente. Hoje não daria para subir ao Pico.
Acordei com dores musculares na parte de cima das pernas, na parte da frente. Foi mesmo a descida que as provocou. Pus uma pomada que trouxe de Lisboa, indicada para dores musculares ligeiras a moderadas. Nos braços também, entre os ombros e os sovacos, de me agarrar nos galhos, como os macacos. De resto estou bem.
O telemóvel cumpre as suas funções básicas. Tem uma mancha branca no canto superior esquerdo e não bloqueia, ou seja, não entra no modo de stand-by, tenho de esperar que ele se desligue sozinho ao fim dum minuto. Programei-o para 30 segundos. Nem ando com código. Não estou a usar código no telemóvel, é só ligá-lo e pronto.
O meu quarto cheira a terra e a floresta por causa das sandálias e dos calções cheios de terra e molhados. Não lavei nada. Estava demasiado cansada. E lavar agora os calções ficarão muito pesados, cada quilo no avião custa cinco euros. Continuo com as unhas das mãos e dos pés com vestígios de terra, mesmo com um banho demorado bem quente ontem à noite, não saiu.
Não havia luz às cinco quando acordei, mas voltou às seis.
São agora 6h15 e tomo o pequeno-almoço na cama. Comi tudo menos um ovo cozido que levarei comigo. Os meus pedidos para me enviarem queijo em vez de fiambre nunca surtiram efeito. Já estou a ansiar por queijo há muito tempo. A margarina não dá para nada, é pouca. No primeiro dia puseram-me a embalagem à frente, na mesa. Receber o pequeno-almoço no quarto condiciona-me. Mas hoje não estaria capaz de esperar até às 8h30 por ele.
Às 8h fui dar o arroz de feijão (do almoço de ontem) a um cão. Apareceram estes dois bonitos e com coleira. Mas vocês estão bem tratadinhos, tem de ser para outro magro e sarnento.
A cerimónia diária do hastear da bandeira, em frente ao edifício do Governo Regional, e que ainda não tinha tido oportunidade de ver. Ao final da tarde também recolhem a bandeira, e várias vezes ouvi a música. Está a chover e eu escondo-me no umbral duma porta.
Não encontrei mais nenhum cão. Começou a chover torrencialmente. Deixei o arroz aqui, onde vi o outro cão pela primeira vez.
São 8h17. De volta ao hotel, onde os hóspedes (que eu nunca tinha visto dado os meus horários madrugadores) tomam o pequeno-almoço. Continua a chover torrencialmente. Decididamente hoje não daria para subir ao Pico.
A embalagem da margarina, ou creme de barrar, ou seja lá o que for, em cima da mesa chama-me à atenção. Que bom poder tirar o que se quer.
Desmontei a bicicleta de soutien e calções, com o ar condicionado ligado. Acho que foi a primeira vez que o liguei. Efetivamente nunca ligo o ar condicionado – mas nestas lides habitualmente masculinas até fico logo com calores.
O rapaz do primeiro dia, chamado Ney, veio buscar-me às 8h50, por 250 dobras (10€). É caro, este serviço. Pago mais aqui do que em Lisboa, onde tenho inclusivamente uma distância maior da minha casa ao aeroporto. O aeroporto do Príncipe fica a 3 km de Santo António.
No aeroporto a venderem banana frita.
Aqui encontrei novamente o guia Nelito do Bom Bom; cumprimentámo-nos com um aperto de mão, e ajudou-me a levar as malas para a entrada. Pediu autorização para entrar no check-in para ajudar-me.
E eu esqueci-me de esvaziar os pneus, foi o guia Nelito e um dos funcionários do aeroporto que me ajudaram e esvaziaram ambos.
Tenho uma carrada de peso a mais. Paguei 140€ pelo excesso de peso. Dói que se farta. Todas as malas foram abertas e revistadas.
O meu passaporte está molhado, ontem subiu comigo ao Pico do Príncipe e não escapou ao dilúvio. (Se morresse, morreria bem identificada!!) Mas não me disseram nada.
Posso levar líquidos. Levo uma garrafa de água cheia.
Eram 9h35 quando finalmente me sentei na sala de espera. Muitos portugueses.
Vou de chinelos com as unhas dos pés pretas, não estou a representar devidamente a comunidade portuguesa. As unhas das mãos idem. As sandálias pesam 1 kg molhadas, paguei 5€, portanto, mas não as uso porque tenho as feridas ao ar livre, a ver se secam. Com chinelos não são necessários pensos.
Vejo as raparigas com as unhas dos pés pintadas. Parece que foi há uma eternidade que fiz o mesmo. Ao vir de férias para São Tomé e Príncipe não queria transformar-me num bicho selvagem? Livre, na floresta? Sim, foi o que pensei quando vim. Ao 11º dia já estou em fase de transformação, portanto.
Chove muito. Uns dizem que estamos na altura da gravana (época seca), outros dizem que esta já é época das chuvas. Não percebo nada.
Entretanto emitiram um aviso de que o avião saiu às 10h de São Tomé por causa do mau tempo aqui no Príncipe. Ou seja, o voo está atrasado. Só vai sair daqui ao meio-dia. Comi o ovo cozido que trouxe do pequeno-almoço. Não contava com este atraso, tenho as bolachas nas malas que já levaram. Não é permitido levar bagagem de mão. Dois funcionários ainda foram ver as bagagens comigo, ao carrinho, mas a minha mala nem se vê, no meio das outras todas, e e eu disse para deixar, que não era preciso tirá-la.
Comprei este chocolate com 75% de cacau, por 50 dobras. Não tinham o maior, senão tê-lo-ia comprado. Não há multibancos na ilha do Príncipe, atenção. É preciso ter sempre dinheiro em cash. Eu com as notas todas molhadas. Nada escapou ontem ao dilúvio. E com esta humidade e chuva constantes, nada seca.
Repare-se que o chocolate é da HBD – Here Be Dragons – a empresa do Homem da Lua, do qual falei na crónica 16.
O funcionário da loja (da tshirt vermelha) explicou-me que a lua está a crescer, o que traz chuva. Lá para 4ª feira estará cheia e parará de chover. Em São Tomé não chove. Eu já anseio por sol para secar tudo.
A minha bicicleta no carrinho. Lá ao fundo, dentro do hangar, está o outro carrinho que contém as bagagens. Um funcionário do aeroporto levou-o para lá para as malas não se molharem. As minhas bolachas estão lá ao fundo, portanto. Se a gente não se despachar, terei que ir buscá-las. Com o esforço físico intenso que ando a fazer, não aguento muito tempo sem comer. E aqui no bar do aeroporto não há comida.
Um habitante local a atravessar o aeroporto, desde Azeitona. Tal como eu fiz na crónica 14. Ainda não saí do Príncipe e já sinto saudades destas aventuras.
As esfoladelas nos pés abriram, claro, com a caminhada de ontem ao Pico do Príncipe. Deixaram de ser meras esfoladelas e passaram a ser feridas abertas. E não consigo tirar a terra das unhas nem por nada. Já nem consigo imaginar-me de saltos altos e verniz vermelho. Serei eu? A mesma Rute?
Entretanto conheci a Aleida, na sala de espera do aeroporto. É de Cabo Verde, está a fazer um doutoramento em Ciência Política e veio ao Príncipe fazer entrevistas, no âmbito desse trabalho. É de Direito Internacional Público. Tem 30 anos e já visitou 102 países! A sua universidade é em Londres, é o King’s College, o qual financiou este trabalho de dois meses em São Tomé e Príncipe.
A Aleida estava sentada na segunda fila quando foi o discurso da Biosfera, contou-me. (Na crónica 23). Viu-me nesse dia toda suja, cheia de lama, pelo que me acha hoje com muito bom aspeto. Eu ri-me.
Conversámos imenso, foi a minha companhia nesta entediante espera no aeroporto. Eu quase sem conseguir mexer-me, com as dores musculares nas pernas.
Foi a Aleida quem me tirou esta foto. Está tudo deserto porque foram-se todos embora para os respetivos hotéis, ou para casa. Afinal o avião só sai de São Tomé às 16h. Eu não tenho para onde ir, fico aqui no aeroporto à espera. Tenho é de almoçar. Preciso de comer.
Cá para mim hoje nem vai haver voo, com este tempo.
Tive mesmo de ir com um dos funcionários do aeroporto à minha bagagem, buscar bolachas e um agasalho. Faz frio. Estou cheia de frio. Ele arranjou um chapéu de chuva e fomos.
Esperámos que parasse de chover para ir almoçar a casa da tia duma senhora de São Tomé, que aguarda também pelo voo (não a fotografei) mas que vive grande parte do tempo aqui no Príncipe. A sua loja de vestuário foi assaltada recentemente, contou-nos. E quem é a tia dessa senhora? A Benvinda! Que eu visitei na crónica 17! O mundo é muito pequeno, e a ilha do Príncipe ainda mais.
Primeiro foi essa senhora. Depois eu e Aleida arrancámos debaixo de chuva. A Aleida não sabe onde é a casa da Benvinda, mas eu sei. Abrigámo-nos a meio caminho. A Aleida quis voltar para o aeroporto, quis desistir, mas eu insisti para prosseguirmos. Ela debaixo duma árvore, eu debaixo do toldo duma mercearia. Até que passou esta rapariga de tshirt amarela, com chapéu de chuva, e levou a Aleida. Depois virá buscar-me a mim. Eu fiquei à espera, debaixo do toldo. Mas a Aleida e a senhora – sobrinha da Benvinda – voltaram para trás porque a Benvinda hoje não fez comida. A rapariga do chapéu de chuva levou-me então ao restaurante ao lado. Há um restaurante aqui ao lado?! Levem-me ao restaurante, por favor!! Fazia lá ideia de que existe aqui um restaurante. A Aleida foi a correr, à chuva.
São 14h10. Todas estas pessoas são passageiros do avião. Todos comentamos entre nós: será que o tempo vai abrir e o avião consegue vir?
A sobrinha da Benvinda está ao centro, tem um casaco branco, sem mangas. Chama-se Teresa. Ao fundo está um casal de portugueses.
Só há omelete de queijo e fiambre com pão de forma. Eu e a Teresa fomos as únicas a almoçar. A omelete 95 dobras, litro e meio de água 40 dobras. Preços afixados. A estes preços e com tão pouca oferta é normal que tenhamos sido as únicas a almoçar. Eu tenho tanta fome que marcha tudo. E preciso de mais comida, isto não me chega. Isto é a entrada, agora falta o resto. Tenho que chegar com alguma urgência a São Tomé, para comer devidamente. Já estou com saudades da Kita e do Paixão!! Das pratadas de arroz, peixe e fruta-pão! (Até fiz um verso!)
À tarde parou de chover, mas quando chegou às 16h30, estava tudo cheio de nevoeiro, com muito pouca visibilidade. As pessoas comentaram que não são os pilotos habituais, com experiência. São pilotos novos, e que efetivamente saíram de São Tomé, mas voltaram para trás, nem aterraram.
Todas as pessoas que estavam no aeroporto voltaram para os hotéis e respetivas casas, portanto. Toda a gente foi distribuída por vários carros, eu apanhei boleia dum funcionário do aeroporto – eu e mais 4 ou 5 pessoas. Uma simpatia, todo este pessoal do aeroporto do Príncipe. Muito gostava eu de saber qual foi o segurança que me perseguiu, na crónica 14. Nem me atrevo a tocar no assunto.
Às cinco da tarde deixaram-me de volta no meu hotel, no mesmo quarto. Tive sorte, ainda estava disponível. Telefonei previamente ao gerente do hotel a perguntar.
Reparei que o arroz já não está no umbral da porta. O arroz que deixei esta manhã para um cão. Ao passar no carro olhei logo para lá.
O Monuna ligou-me na altura em que estavam a devolver as bagagens. A perguntar se estava tudo bem. Que guia simpático, heim? Efetivamente estou a andar um bocado devagar para o que é normal, com as dores musculares nas pernas, mas estou bem, obrigada!
Apanhou-me numa altura muito agitada, quase que nem consegui falar. Contei-lhe que o voo foi cancelado e que estou a regressar a Santo António.
Não pára de chover. Muito. Não há wifi, não há luz e quase não há água. Não dá para tomar banho.
Fui ao restaurante da Kita saber se há jantar. Hoje preciso necessariamente de jantar. Sim, há, e reservei.
Fui para lá de boleia de chapéu de chuva com uma rapariga. Regressei de boleia de chapéu de chuva com um rapaz e ainda parei para comprar leite. Ele teve a gentileza de esperar. Todos brincaram, todos se riram na mercearia, com a minha boleia à espera.
Estava eu à porta do hotel à espera que passasse alguém com um chapéu de chuva, quando passou um dos passageiros do voo cancelado, a conduzir uma pickup – virei a saber que se chama António, mas é conhecido por Machiaba. Este parou e trocámos de número de telefone. Disse que me ligaria quando soubesse alguma coisa. Ótimo. Para mim tudo é uma incógnita. No aeroporto também ficaram com os telefones de todos os passageiros. Mas às 9 da manhã garantidamente terei que estar disponível. Estarei, sim senhor.
A Mulata (ou Mónica, a empregada do restaurante) contou-me que havia uma grávida de gémeos que precisava de viajar hoje para o hospital de São Tomé. Um dos bebés está mal posicionado. Teve de voltar para trás também. O hospital aqui do Príncipe não faz esse serviço, não tem equipamento. A Própria Mónica estava à espera de medicamentos que chegavam no avião. Era o Ney que os ia buscar.
Entretanto a luz voltou às 18h. E a água também. Fui tomar banho. Desempacotar tudo outra vez. As sandálias e os calções estão molhados. Começa a cheirar a mofo. Está tudo húmido e não pára de chover.
Peixe Fumo (Acanthocybium solandri) com molho de cebolada. Uma delícia, comida quentinha muito reconfortante.
Hoje tenho dois vizinhos no restaurante e claro que tive de tirar-lhes uma foto. Ninguém escapa. Os dois amigos vieram só beber um copinho. Ainda é cedo, são 18h45. É o Manuel Andrade (à esquerda) e o Domingos Moreira. Este está casado há 20 anos e tem quatro filhos, três rapazes e uma menina. O Manuel apresentou-se apenas como “Andrade” e eu perguntei o primeiro nome. Mas Manuéis há muitos, respondeu-me. Então e Andrades, não há também?, questionei. Não, aqui distinguem-se, e ele é conhecido por Andrade. Pronto.
E quem é que vai ficar com o arroz hoje? Este pratinho é para um cão! Dei-me ao trabalho de separar as espinhas!
“Mas és muito bonita e estás muito bem tratadinha, menina!” – disse eu a esta cadelinha, que vim a descobrir pertencer à Mulata, e estar prenha. Chama-se Laica. Este arroz tem de ir para outro esquelético e abandonado.
A Mulata acabou por dar-lhe as espinhas do meu prato. Eu disse-lhe para ter cuidado, e com os ossos de frango também. Sei de alguns casos de estômagos de cães perfurados por causa dos ossos de frango. E morreram, claro.
Enquanto eu estiver no Príncipe, haverá sempre arroz neste cantinho… Isto é um armazém com várias portas, não passa aqui ninguém. Tem um quintal à frente, meio abandonado.
Telefonaram-me cerca das 21h a avisar que tenho de estar no aeroporto às 7h20. Telefonei ao Ney para combinar o transporte de amanhã, mas pedi-lhe um desconto, 10€ é muito caro. Perguntei-lhe se me leva por 5€. Fazer 3 km de carro por 10€, estas vezes todas, para trás e para a frente… Entretanto ligou-me outra pessoa, da parte do António, e eu pedi-lhe boleia. Virá buscar-me às sete. Ótimo, arranjei boleia e disse ao Ney que já não é preciso.