014 – Príncipe – Quinto Dia, a Caminho do Ilhéu Bom Bom
Despertador às 4h30. Para sair às 5h30. Não há luz. Uso o flash portátil. Afinal não preciso da vela, esqueci-me que tenho uma poderosa luz portátil para a máquina fotográfica, com nove intensidades diferentes.
Há água. O pequeno-almoço foi trazido na véspera, conforme contei. Esteve no frigorífico. Se bem que o desliguei durante a noite porque fazia muito barulho. Hoje só tenho um ovo, amanhã voltarei a ter dois. Normalmente os hóspedes comem ovos mexidos, e eu vi a rapariga romena a comer, e ela não tinha só um ovo mexido. Isto aqui tem de ser tudo lutado.
Já não tive papel higiénico hoje de manhã. Vou ter de comprar eu própria. Tive de andar à procura de lenços e guardanapos na minha bagagem, isto é absurdo. Terá sido esquecimento da pessoa que vem limpar o quarto diariamente?
Partida às 5h55 em direção ao ilhéu Bom Bom. Foi o que o dono do restaurante – o Paixão – me falou logo ontem, parece que é muito bonito. Seja, vou então ao ilhéu Bom Bom. São 9,2 km com 180 metros de subida acumulada. Mas às 5h55 é tarde, mesmo assim. É suposto partir quando amanhece, às 5h30. Amanhã vou levantar-me mais cedo.
Pus o repelente de insetos no corpo. Ainda não usei protetor solar desde que cheguei, está sempre nublado e eu continuo branquelas. Levo biquíni comigo na mochila.
A vender banana frita (no recipiente no chão) e pão (no outro recipiente tapado).
São 5h59 da manhã!! Esta malta já pula e transpira há sei lá quanto tempo! Amanhã vou mesmo acordar mais cedo!!!
Encontrei a enfermeira Manuela, a parteira que fotografei no hospital. Vai ao banco, não quis tirar uma foto comigo, e convidou-me para almoçar em sua casa. Mora numa terra chamada Azeitona. Eu lembro-me de ver a placa, ontem. Deixou-me o seu número de telefone. Disse que “o Príncipe de hoje não é o mesmo de ontem e que tenho de ter cautela; há muita gente que vem de fora”. Eu contei-lhe que estive ontem no hospital para oferecer uns comprimidos da malária, que não a vi, e ela disse-me que há muita falsificação de medicamentos e que se calhar por isso não mos aceitaram.
A subida do Gaspar. Esta subida logo no arranque, mata-me. Um rapaz passa por mim a pé, a descer, e diz-me que tenho de ir a pedalar. Está bem, está. “Vai leve-leve”, dizem-me outras pessoas. Que remédio tenho eu.
Fruta. Estou sedenta de fruta. Que fruta é esta? Será que a vendem?
Deixei a bicicleta na berma da estrada e entrei pelo quintal. Devagarinho, se calhar um pouco furtivamente. Ainda as pessoas se assustam comigo, de capacete na cabeça, inesperadamente.
Mas que fruta é esta?! É do tamanho de ananazes, mas não são ananazes. Será isto o sap sap?
Até que apareceu o dono. Acho que é o dono. Esta fruta é maracujá, disse-me. Maracujá? Gigante? “E vende-a?” – perguntei. Agora não posso ir carregada com uma fruta deste tamanho, acabei de sair do hotel, tenho todo o percurso para fazer, mas quando regressar, posso comprar uma. Disse-lhe onde estava alojada, se ele podia mandar fruta para lá. Ele conhece o gerente do hotel, parece.
Eu vou em frente, em direção ao aeroporto.
Quem havia de encontrar – o Minério! Que conheci na quitanda da Lucila, logo no primeiro passeio pela cidade (na crónica 6). Mora aqui. Aquele garoto é o filho.
A Árvore-do-Pão, da qual já falei na crónica 13. A fruta chama-se “fruta-pão” e provei-a assada ontem ao almoço.
Este episódio foi insólito e perturbante. A rapariga, que deverá andar pelos 15 ou 16 anos, vai a caminhar com um cinto preso ao pé. Rapidamente percebi que ela vai alheada. Sofre de uma deficiência mental, e veio um homem e uma mulher atrás dela, ambos dos seus 50 ou 60 anos, talvez. Um deficiente mental já é delicado num país europeu; são necessárias instituições próprias para cuidar destes. Ou os chamados “cuidadores”, a família que abandona o emprego para se dedicar a eles. Imagine-se agora na pequena e pobre ilha do Príncipe. Nem creches existem em número suficiente para as crianças normais, quanto mais uma instituição para cuidar dum deficiente mental. E quem é que pode deixar o trabalho para ficar em casa a cuidar? Esta família fará o que pode. Cada membro deve revezar-se a tomar conta, provavelmente. E pelos vistos a rapariga tem de estar presa, porque senão vai-se embora. Calmamente. A caminhar por ali afora.
Uma entrada para peões, no aeroporto!!
Repare-se que hoje trago os três cantis de água. Ontem faltou-me a água, hoje já trouxe os cantis todos.
Olha a Rute a meter a rodinha lá dentro…
Bom, se as pessoas passam… eu também passo.
Vou levantar voo!!!!
Estou à espera a qualquer momento que venha um segurança do aeroporto perseguir-me. E efetivamente quando regressei, quando ia sair do aeroporto e retomar o meu caminho em direção ao Bom Bom, veio mesmo um segurança atrás de mim. Estou frita. Fugi a sete pés. Ou a sete pedais! Meti a mudança mais pesada e fugi a toda a velocidade. (Estão mesmo a ver a imagem? Eu e os meus três cantis de água a fugirmos a toda a velocidade em pleno aeroporto?) O segurança veio a pé atrás de mim – era uma luta desigual. Ele teria que meter-se num daqueles carrinhos do aeroporto. Havia de ser lindo, eu numa bicicleta a fugir na pista dum aeroporto, perseguida por um carrinho.
Este episódio do aeroporto foi emocionante e perfeitamente insólito. Hoje só me acontecem coisas insólitas.
As pessoas atravessam o aeroporto neste caminho para irem para ali. O que há atrás deste portão?
Foi mesmo isso que perguntei a esta senhora que aí vem:
– O que há ali atrás?
– É uma comunidade – respondeu-me.
– Uma aldeia?
– Sim.
– Então vou atrás de si.
– Então vamos – respondeu-me ela.
Eu juro-vos pela minha vida que a conversa foi esta. Sem tirar nem pôr. Hoje tudo é insólito. Esta senhora chama-se Benvinda e esteve quatro meses em Portugal há nove anos atrás. Se calhar por isso achou normal eu andar ali a passear de bicicleta e segui-la a partir de agora. Estará habituada aos excêntricos portugueses. Os portugueses serão excêntricos? É que a Benvinda não mostrou qualquer espanto com nada. É normalíssimo, tudo o que está a acontecer. Será que muita gente a segue neste ponto?