011 – Príncipe – Chegada à Roça Sundy
Esta foto foi tirada às 7H10. Passo pelo meio de toda esta vegetação luxuriante sem ser picada pelos mosquitos uma única vez. Paro muitas vezes para observar e tirar fotos. Um bom repelente de insetos é fulcral. De madrugada, bem como ao anoitecer, é quando os insetos mais atacam. De madrugada eu ando no meio da vegetação, na bicicleta. Recordo que não estou a tomar os comprimidos da malária porque me atacam fortemente o estômago. Havia de ser lindo pedalar quilómetros na bicicleta, durante um mês, com dores de estômago, e sem conseguir comer devidamente. Pelo que trouxe cinco frascos de repelente de insetos para espalhar no corpo, de madrugada e ao final da tarde. E só resta torcer para que corra tudo bem. Vade retro, mosquito da malária.
Aqui estou a chegar à Roça Sundy. Este edifício era o antigo hospital pertencente a esta roça. Conforme referi na crónica anterior, as roças são antigos edifícios do tempo do colonialismo português, grandes propriedades rurais onde se produziu cacau e café, nos finais do séc. XVIII e inícios do séc XX.
A palavra “roça” tem uma origem portuguesa: significa “desbravar mato”, “abrir clareiras” ou “terreno onde se roçou o mato”. Além de cacau e café, algumas roças também produziam copra (polpa seca de coco) e óleo de palma. Fazia-se criação de gado; e por vezes eram uma reserva florestal para produção de lenha ou mesmo de culturas de subsistência. As roças de maior dimensão chegavam a ter um milhar de habitantes. Eram constituídas pela Casa Principal, as Habitações dos Encarregados, as Sanzalas (habitações dos serviçais), os Armazéns, as Estufas e os Secadores. Podiam conter ainda edifícios administrativos, hospitais, escolas e igrejas.¹
A Roça Sundy foi parcialmente recuperada e é hoje um hotel de luxo, pelo que a entrada é controlada. Deixei a bicicleta apenas para tirar a foto, pois o guarda não colocou qualquer entrave à minha passagem. Também há população local a habitar alguns dos antigos edifícios, em frente ao hotel.
Reza assim uma placa explicativa:
Em 1919, o astrónomo inglês Arthur Eddington e o seu assistente Edwin Cottingham, fizeram uma expedição histórica à ilha do Príncipe, organizada pela Real Sociedade de Astronomia do Reino Unido. A Roça Sundy, uma fazenda colonial portuguesa, foi escolhida como local para se efetuar a experiência. Durante o eclipse total do sol de 29 de Maio, fotografaram um campo de estrelas de modo a testarem a teoria da relatividade de Albert Einstein que prevê que o percurso dos raios de luz é deformado por corpos de grande massa, tais como o sol.
Eddington comparou as posições das estrelas observadas perto do sol antes e durante o eclipse. A diferença de posições indicou uma pequena deflecção consistente com a teoria de Einstein. O fenómeno da deformação do percurso da luz pela presença de corpos com massa é denominado “efeito de lente gravitacional” e é amplamente utilizado por astrónomos que hoje em dia tentam compreender a natureza do universo. Complementando uma expedição paralela ao Sobral, Brasil, esta demonstração da teoria de Einstein foi um ponto alto da ciência do século XX.
O físico alemão Albert Einstein e o astrónomo inglês Arthur Eddington, que confirmou a teoria aqui no Sundy.
Eddington fez 19 chapas fotográficas durante os 302 segundos que durou o eclipse do sol, a 29 de maio de 1919. Três das chapas fotográficas originais, captadas por Eddington aqui no Príncipe, foram oferecidas ao Observatório Astronómico de Lisboa (OAL), em reconhecimento do apoio logístico que este lhe prestou para viajar até ao Príncipe e aqui se instalar, na roça Sundy. A primeira carta que Arthur Eddington enviou ao diretor da OAL, Campos Rodrigues, é datada de 11 de novembro de 1918, o Dia do Armísticio, que marcou o fim da Grande Guerra. Nela, o cientista britânico solicitava apoio logístico para a expedição que tencionava fazer no ano seguinte, por ocasião do eclipse total do Sol. Eddington tinha-se cruzado pouco antes com a então novíssima teoria da relatividade e tinha ficado muito entusiasmado.
A Companhia Nacional de Navegação só fazia duas viagens mensais a São Tomé, e apenas uma delas ia também ao Príncipe. O OAL conseguiu assegurar a viagem a Eddington, que chegou à ilha um mês antes.
Em maio de 1919, instalado na roça Sundy, com o apoio do seu proprietário, Jerónimo Carneiro, Arthur Eddington teve um mês para preparar o trabalho que teria de concretizar durante aqueles 302 segundos decisivos – fazer o maior número possível de chapas fotográficas.²
Eis o que Arthur Eddington escreveu à mãe, quando chegou ao Príncipe:
“Minha queridíssima mãe, Falta apenas um mês para o eclipse; e hoje temos todos os nossos pertences no sítio selecionado, e começámos o trabalho de construção. Tivemos o nosso primeiro vislumbre do Príncipe às 9 horas na manhã de 23 de abril, e foi muito encantador.”³
Numa outra carta que enviou ao Observatório Astronómico de Lisboa falava da sua preocupação com a meteorologia. Se houvesse demasiadas nuvens, ou se chovesse naquele curtíssimo intervalo de tempo, a missão seria um falhanço.
Os seus piores receios não se concretizaram. Ainda choveu nesse dia, e havia algumas nuvens no céu, mas à hora certa o Sol escondeu-se e Eddington fez as suas imagens históricas.
De regresso a Cambridge, seguiram-se meses de cálculos. A 6 de novembro de 1919, o mundo ouviu pela primeira vez, a partir da Royal Society em Londres, que nesse dia estava à cunha, que uma nova e ousada teoria para explicar o universo, a teoria da relatividade geral, publicada por Einstein quatro anos antes, estava certa.²
O hotel.
Na crónica 9 falei sobre as moscas tsé-tsé, causadoras da doença do sono, a qual dizimou uma grande percentagem da população do Príncipe no início do século XX. A mosca foi provavelmente importada por serviçais provenientes de Angola, e progrediu na ilha desde os anos 1880. Os serviçais, recordo, eram os trabalhadores contratados africanos, que substituíram os escravos após a abolição da escravatura.
No período de Agosto de 1911 a Julho de 1912, a doença do sono matou mais 239 pessoas, dos quais 71 só aqui na Roça Sundy devido à renitência do seu administrador em aplicar as medidas decretadas, com a justificação de que precisavam do pessoal disponível para a colheita de cacau e tratamento das plantações. Só posteriormente, perante tamanha mortalidade, os principais roceiros se convenceram da necessidade de aplicação das medidas para erradicar a mosca tsé-tsé.
A mosca tsé-tsé (Glossina palpalis), concentra-se em poços, rios e pântanos. As medidas profiláticas propostas visavam a eliminação do habitat das glossinas por meio do derrube de árvores e da destruição de arbustos para fazer subir a temperatura acima de 35⁰ C a fim de matar as moscas, assim como a secagem dos pântanos e o abate do porco selvagem. Além disso, durante o trabalho os serviçais tinham de usar nas costas um pano preto coberto de visco para apanhar as moscas.
Adicionalmente foi decretada a constituição duma brigada de combate à doença do sono, composta também por serviçais.
Finalmente, os primeiros efeitos apareceram em 1913 quando se registou uma descida da morbidade e mortalidade em relação aos dados de 1908. Em Janeiro de 1914 a glossina tinha quase desaparecido. Neste mês a brigada apanhou em toda a ilha apenas 19 moscas, quase todas na roça Sundy, enquanto que em Janeiro do ano anterior tinham sido capturadas 21.434 glossinas . A última mosca tsé-tsé foi capturada na Roça Sundy em Abril de 1914. Consequentemente, em Fevereiro de 1915 a administração local declarou a ilha livre da doença de sono, assim como erradicado o seu agente transmissor.
Em 1956, as moscas tsé-tsé reapareceram no Príncipe, contudo, não eram infetadas, pois desta vez a doença do sono não se manifestou, nem em seres humanos nem em animais domésticos. Em dois meses, uma missão chegada ao Príncipe em Maio de 1956 capturou 66.895 glossinas.
Depois da captura da última mosca tsé-tsé em 1958, pela segunda vez o Príncipe foi considerado livre do agente transmissor da doença do sono.⁴
As casas pertencentes à antiga Roça, hoje habitadas pela população local.
O meu caminho continua. São agora 8 da manhã, tenho 9 km e pouco feitos. São 3 km até à Praia Sundy. O caminho é por onde aquele rapaz de bicicleta vem. Perguntei a dois homens no hotel, santomenses (calculo que trabalhem aqui) onde é que posso comprar fruta, nomeadamente bananas. Não há nada. Só há na cidade. Eu tenho comida empacotada comigo, bolachas e afins, mas agora calhavam bem umas bananinhas santomenses para ganhar energia. Qual quê.
¹ Pape, Duarte e de Andrade, Rodrigo Rebelo (2012, 13 de Abril) “As roças de São Tomé e Príncipe, o fim de um paradigma”, in “Buala”. Página consultada a 10 de Setembro 2019,
<http://www.buala.org/pt/vou-la-visitar/as-rocas-de-sao-tome-e-principe-o-fim-de-um-paradigma>
² Naves, Filomena (2019, 16 Maio). “Imagens feitas há cem anos na ilha do Príncipe provaram que Einstein estava certo”. Diário de Notícias. Página consultada a 10 de Setembro 2019,
<https://www.dn.pt/edicao-do-dia/16-mai-2019/interior/imagens-feitas-ha-cem-anos-na-ilha-do-principe-provaram-que-einstein-estava-certo-10903124.html>
³ “Eddington na Sundy 100 Anos Depois”, Celebrações do centenário do eclipse solar de 1919 na ilha do Príncipe, Programa e resumos, p. 20. Página consultada a 10 de Setembro 2019,
<https://content.gulbenkian.pt/wp-content/uploads/2019/05/27125118/BROCHURA_100E%40S_3.pdf>
⁴ Seibert, Gerhard (2016) “Património Edificado de São Tomé e Príncipe. A Roça Sundy”. In: Amaral, José Lobo de (org.). China e Países Lusófonos – Património Construído. Coleção Novos Caminhos n.º 3, p. 409. Macau: Instituto Internacional de Macau (IIM), 2016. ISBN 978-99937-45-93-8.