046 – Conversando no Comboio

Aproveitando a presença de um guia local, que conhecia e ia cumprimentando algumas pessoas, este casal foi conversando comigo. O guia ia traduzindo. Contaram que tinham três filhos: uma rapariga com 22 anos, um rapaz com 20, e outra rapariga com 17. Todos casados e sem filhos. Ele trabalha na Tata, o maior grupo empresarial privado na Índia (terei que desenvolver este tema, em breve). Eu disse-lhes que ela parecia muito nova para ter filhos já tão crescidos e casados. Ela riu-se e revelou que tinha 44 anos. Mostrou-me as tatuagens na mão e disse que só as mulheres casadas as podiam usar.
Eles, por seu turno, comentaram as minhas sardas na pele branca. Observaram as pequenas pintas no meu braço. E os seus pais não têm medo por andar a viajar sozinha?, perguntaram-me. Ri-me. A minha mãe, só de se aproximar a data da partida, chorava baba e ranho… Eles riram-se também. É a vida dura dos pais…
Acharam ainda o meu relógio curioso e eu tirei-o para lho mostrar. Aliás, diga-se de passagem que toda a gente se mete com o relógio, mas isto não é só daqui, já vem de longe. Lembro-me de ter uma tribo dos Masai Mara, no Quénia, a dançar à nossa volta, e de repente pararam e acercaram-se de mim. Mas o que se passa?… Era o relógio, pois claro. Queriam saber o que era aquilo. Qual dança…  (Isto pode ser visto na crónica 8 do Quénia).

De facto ainda passei umas peripécias antes de ir para Índia, com este relógio. Avariou-se. Coitado, já percorreu meio mundo, tem sei lá quantos anos, até já me perguntam quando é que eu arranjo outro relógio. Mas eu gosto deste, não quero mais nenhum.
Então o desgraçado do relógio avariou-se em dezembro. Eu partia em maio. Temos tempo…
Não temos, não. Fui a uma loja da marca, insisti para que mo arranjassem. As pessoas que me atenderam na loja bem que se esforçaram, ainda ficaram com ele uns dias, um dos funcionários era mais entendido naqueles maquinismos, iria fazer experiências. A Swatch não arranja, só troca. Como está fora de garantia e aquele modelo já não se fabrica, paciência.
Assim telefonaram-me dois ou três dias depois com más notícias: continua a não funcionar.
Levei-o então a um relojoeiro. Ninguém se entende com este relógio. O relojoeiro nem conseguia desaparafusá-lo, e para grande aflição minha faz-lhe saltar as molas todas, tudo pelo ar, ali à minha frente. Credo, deixe-me sentar que já estou a sentir-me mal… Consegue pôr isso no sítio outra vez?…
O pobre homem, muito atrapalhado e a muito custo, põe tudo no sítio outra vez e diz que não quer mexer-lhe mais. Pois não mexa, não…
Bom. Levo-o ao relojoeiro que lhe tem mudado as pilhas (também a custo conseguiu abri-lo da primeira vez, aquilo é quase um blindado…) e ele diz-me que não, que não tem arranjo. Que aqueles relógios Swatch nem se abrem sem se estragarem.
Fui-me embora, desalentada. O meu adorado relógio…
Toca a fazer pesquisa na internet – procurar algum idêntico. Há de haver algum parecido, ou qualquer outro que eu goste, resistente, para levar tareia nas viagens.
Nada.
Vi três mil relógios, de todas as marcas e mais algumas. Nada.

Voltei ao relojoeiro. Desculpe insistir, mas este relógio é muito importante para mim. Fica à minha responsabilidade se se estragar, e pago o que for preciso. Não diga isso!…, exclamou o relojoeiro. Sim, repito: dê-me um ano de garantia e eu pago o que for preciso.

Assim passou o relógio quatro meses no relojoeiro, entre janeiro e abril. À medida em que se aproximava a data da minha partida, em maio, a inquietação aumentava. Lá terei de comprar um qualquer, está visto, um de plástico para estragar na Índia.
Fui à loja. Então ainda não ressuscitou?… Parto em maio…
Não tenho tido tempo, mas fique descansada que daqui a uns dias estará pronto.

E assim foi. Tem um motor novo, e por fora continua a ser o mesmo. Teve um transplante do coração, portanto. Mas está vivo e forte, agora. Foi à Índia e voltou, e esperemos que muitas mais viagens venha a fazer, com o seu coraçãozinho novo.
Muitas vezes brinquei com quem se meteu comigo, na Índia – disse-lhes que era uma pulseira da prisão, para saberem permanentemente do meu paradeiro… As pessoas riam-se, mas por vezes notava-lhes alguma dúvida sobre se eu estava realmente a brincar. Nunca se sabe, não é?…

Infelizmente ficou desfocada, a foto, mas é a única e mantive-a. Trata-se de um vendedor de salada, feita ali no momento e vendida num alguidar. O vendedor fez questão de ser fotografado e eu não me fiz rogada, claro.

Terminada a viagem de comboio, o motorista Kailash apanhou-me na estação. Os fritos que tenho na mão foram comprados por si. Vi-os à venda uma dúzia de vezes, em todas as estações de comboio. Eram fritos ali no momento e sempre tive receio de comprá-los. Enfim, se não matam, engordam. Tratei de comer uma série deles, eram bem apetitosos, e não me fizeram mal nenhum. Foram sobretudo estes fritos que os passageiros do comboio atiraram aos macacos, pelas janelas.

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