7 – A Soberba Caminhada Sozinha pelas Montanhas Geladas & Knud Rasmussen
As duas placas indicam as direções e as distâncias. A placa da esquerda, com a linha azul, indica a direção de Sermermiut e a distância de 1,1 km. É para aqui que nos dirigimos. A placa da direita, com a linha amarela, indica a direção da central elétrica, com a distância de 2,7 km. Nós vimos daqui.
Por esta altura ainda estou a caminhar atrás duma guia, juntamente com cerca de dez pessoas.
Chegámos a Sermermiut, localizada na Baía de Disko. Este é o Fiorde de Gelo Ilulissat (“Ilulissat Kangerlua”, em língua gronelandesa, e “Ilulissat Icefjord”, em inglês).
“Fiorde” é uma entrada do mar entre as montanhas. Essa entrada – esse caminho – foi traçado por um glaciar. Neste caso o Glaciar Sermeq Kujalleq.
O Fiorde de Gelo Ilulissat foi declarado património da humanidade pela Unesco em 2004. De acordo com o site da Unesco:
O Fiorde de Gelo Ilulissat (40.240 hectares [o que corresponde a 402 km²]) é onde o glaciar Sermeq Kujalleq desemboca no mar, um dos poucos glaciares através dos quais a massa de gelo da Gronelândia alcança o mar. O Sermeq Kujalleq é um dos glaciares mais rápidos (avança 40 metros por dia) e mais ativos do mundo. Anualmente distribui mais de 46 quilómetros cúbicos de gelo, ou seja, 10% da produção de gelo desprendido na Gronelândia e mais do que qualquer outro glaciar fora da Antártida. O glaciar Sermeq Kujalleq continua a erodir ativamente o leito do fiorde.
A combinação dum enorme lençol de gelo e duma corrente de gelo glaciar que se move rapidamente desprendendo icebergs num fiorde é um fenómeno visto apenas na Gronelândia e na Antártida. Ilulissat oferece aos cientistas e aos visitantes um acesso fácil para uma visão próxima da frente do glaciar a desprender pedaços de gelo provenientes da Massa de Gelo para dentro do fiorde.
A combinação selvagem e altamente cénica de rocha, gelo e mar, juntamente com os sons dramáticos produzidos pelo gelo em movimento, combinam-se para apresentar um espetáculo natural memorável.¹
A placa indica:
Perigo extremo!
Não ande na praia. Morte ou ferimentos graves podem ocorrer. Risco de ondas súbitas de tsunami causadas pelo desprendimento de icebergs.
Os pedaços de gelo que se desprendem do glaciar e caiem na água por vezes são tão grandes que não conseguem flutuar e ficam retidos nas partes menos fundas do fiorde, às vezes durante anos, até serem quebrados por outros pedaços de gelo.
E agora é que vai começar a minha aventura. Estão a ver aquelas pedras azuis no canto inferior esquerdo? É a indicação dum caminho. Há um caminho para fazer “hiking”, ou seja, caminhadas.
O que eu fui descobrir. Pedras azuis que levam não sei onde. A guia e o grupo não vão seguir este caminho. Eles chegaram ao fim do passeio, em Sermermiut, e agora vão-se embora.
E parti sozinha. Não faço ideia onde vai dar, não faço ideia quanto tempo durará. Voltarei para trás se a coisa se complicar. Vou só experimentar um bocadinho. São 10.30h da manhã.
Aqui está o primeiro objetivo a atingir. O primeiro pico. A primeira montanha está feita.
Segunda montanha, segundo pico. Já subi e desci duas montanhas. Estes picos estão a dar-me uma pica desgraçada, a verdade seja dita. Não vou parar tão depressa. Tenho de ver até onde vai isto. Eu tenho que seguir isto. Está-me no sangue. É a minha natureza. Não posso sair daqui sem seguir este caminho. Não posso sair deste país sem seguir este caminho.
Aquela coisa pequenina lá em cima é o terceiro pico a atingir. Já subi e desci três pequenas montanhas.
Estou consciente dos riscos. Não é suposto fazer uma caminhada sozinha pelas montanhas geladas. Ninguém sabe exatamente onde estou, ou por que caminho me meti. Não há rede de telemóvel. Se eu escorregar e fizer um simples entorse no tornozelo, terei que esperar até que se lembrem de vir procurar-me. Se eu não aparecer logo à noite, quanto tempo esperarão antes de mandarem alguém procurar-me?
Quando chegarem, a Rute estará geladinha. Congeladinha. Roxa. Bye bye.
Estou no bom caminho! Caminho certo. Pedrinhas azuis! Sinto-me como um rato atrás do queijo. Caramba que vou seguir isto até ao fim.
Outra pedrinha azul. Magnífico.
Agora na parte de trás tenho esta terra. Já não é mau. A foto foi tirada com o zoom no máximo, ela não está assim tão perto. Efetivamente não faço ideia onde estou, mas tenho seguido as pedras azuis que conseguem vislumbrar-se na neve, e vou em direção aos picos assinalados nos topos das pequenas montanhas. No Verão há-de haver caminhos, mas agora não há nada. Só neve, rochas e gelo. Devo ir a corta-mato, de certeza, por cima da neve.
É preciso ter cuidado com estes lagos gelados. Cuidado onde ponho os pés. Não cair dentro dum buraco destes. Com este frio não convém.
O site oficial do Fiorde indica:
Um clima severo, distâncias consideráveis e um terreno intransponível exigem um foco extra na segurança quando se visita o Fiorde de Gelo Ilulissat, considerado Património da Humanidade. Na parte local da Área do Património Mundial, há uma ponte eficiente para caminhar, que oferece passagem segura e fácil. O resto da Área do Património Mundial é inóspita e você não pode esperar encontrar pessoas que o ajudem numa emergência. Não há cobertura de satélite para telemóveis, com exceção da área mais próxima de Ilulissat. Por essa razão, até acidentes menores em trajetos mais curtos nesta área podem tornar-se graves.
Operações de busca e salvamento provavelmente envolverão o uso de helicópteros. Isso é caro e, se a situação for auto-infligida, a pessoa em perigo pode ter que pagar pela ação tomada.²
SEGURANÇA A Pɳ:
Infelizmente, buscas por caminhantes perdidos no Fiorde de Ilulissat ocorrem regularmente. Acidentes graves podem ser evitados se você:
Informar outras pessoas sobre o seu paradeiro e o horário em que planeia regressar – A guia e o grupo viram a ovelha negra a desviar-se nesta direção. Mas não faço ideia a que horas vou regressar.
Conversar com outras pessoas que conhecem a área – Até conversaria, mas não se vê vivalma.
Não caminhe sozinho – Oops…
Traga um mapa – Oops… (Mas para quê? Só se for um mapa branco com pintas de rochas).
Traga roupas quentes e impermeáveis – Estou de collants de lã e calças de fato de treino. As calças da neve ficaram no hotel. Mas estou bem, quente, a caminhar, com uma dúzia de camisolas, uma delas térmica.
Levar comida e bebida – Oops…
Verifique a previsão do tempo (névoa súbita e espessa não é incomum durante os meses de verão) – Oops… (Mas qual verão?.. ah pois, caminhadas no inverno nem sequer existem, só falam em caminhadas durante o verão).
Volte antes de ficar muito cansado ou super-resfriado – Qual cansaço, estou pronta para uma semana disto. (E vim mais tarde a descobrir que efetivamente se realizam caminhadas de uma semana, por aqui. Mas no verão apenas).
Pegadas! Houve gente recentemente por aqui! Se calhar vieram da vila lá de baixo. Não vi pegadas desde Sermermiut.
E agora subir isto. Parece fácil, mas não é.
Se eu escorregar e resvalar, arrisco-me a ir parar dentro do lago gelado que há em baixo. Se começo a escorregar, é muito difícil parar.
Estou sozinha. Ninguém sabe que estou aqui.
Geladinha. Congeladinha. Roxa. Bye bye.
É melhor acabar a aventura, Rute. É altura de voltar para trás.
Efetivamente fiz seis pequenas montanhas, e neste ponto voltei para trás. Repeti as mesmas seis montanhas e fiz portanto doze pequenas montanhas geladas ao longo do Fiorde de Gelo Ilulissat.
Mais tarde, já em Lisboa, virei a descobrir na internet este mapa, com o caminho azul. Eu vim a pé do centro de Ilulissat. O início das linhas azul e amarela será com certeza as duas placas da primeira foto acima.
Pela fotografia anterior, com uma baía, só pode ser aquela parte assinalada no mapa com uma cruz (desenhada por mim). Consegui ir até aí, e a partir desta zona voltei para trás. A pequena vila que fotografei está a 1,5 km, aproximadamente.
Mapa retirado de Ilulissat Kangia.
Mais uma pedrinha azul, vou no bom caminho, agora de regresso a Ilulissat. Esta nem a vi quando ia em sentido contrário.
Tirar fotos exige que eu tire as luvas, e essa operação é delicada. Faz muito frio. Não posso estar parada muito tempo a apreciar a paisagem, e muito menos tirar as luvas. Mas caramba, tenho que registar este momento. Rapidamente. A mais soberba caminhada que alguma vez fiz. Sozinha. À mercê do frio e da natureza, num cenário fantástico. Pus a câmera no chão, em contagem descrescente, e depois de algumas tentativas, esta ficou boa. Estou a enregelar sorridentemente. (Tira luvas; carrega nos botões; corre; calça luvas novamente; tira a foto), mas pronto, esta recordação será sempre minha.
Dado que a água se acabou, enchi a garrafa com gelo e meti-a dentro do quispo e das primeiras camisolas (diretamente junto ao corpo esqueçam lá…). Mas a neve não derreteu nem por nada. De facto cheguei a Ilulissat e a água continuava perfeitamente gelada. Ao menos que derretesse um bocadinho. Nada. Resultado: trinquei a neve diretamente do chão. Que nem um cão. Ou um boi-almiscarado da Gronelândia. Tenho que hidratar-me.
Rute geladinha. Congeladinha. Roxa. Bye bye. Numa destas campas branquinhas. Seria uma morte gloriosa, ao menos. Morrer congeladinha no Fiorde de Gelo Ilulissat.
E terminada a linha azul, não estando satisfeita, fui conhecer a linha amarela. Mais uma montanha, esta extremamente fácil, sem gelo sequer. Foram portanto sete montanhas para lá, e as mesmas sete montanhas para cá. A caminhada durou seis horas. Comecei cerca das 10.30h em Sermermiut (efetivamente comecei do hotel, com o grupo, mas não conto com essa parte) e cheguei ao centro de Ilulissat às 16.30h. Eu tinha apenas uma barra de cereais comigo e foi o que comi. Qual almoço…
Já nem tirei fotos desta caminhada pela linha amarela. Perfeitamente inócua, comparada com a estimulante linha azul.
Aqui já cheguei a Ilulissat. Com fome. São quatro da tarde.
Agora tenho o Museu Knud Rasmussen para visitar. Fecha às 17h. Tenho trinta minutos. E vai ser agora, com fome ou sem fome, porque amanhã posso não conseguir, tenho outras atividades previstas, e é muito importante visitar este Museu. Pedi água à funcionária. Bebi água. (A garrafa continua cheia de gelo: nem quando acabei a visita ao Museu – com o interior bem quente – a neve derreteu. Caramba. Esta neve da Gronelândia é resistente).
Knud Rasmussen – um explorador do Ártico – nasceu e foi criado nesta casa. Nasceu a 7 de junho de 1879, e morreu a 21 de dezembro de 1933, com 54 anos, em Copenhaga, vítima duma pneumonia após uma intoxicação alimentar por kiviak, uma iguaria inuit, que o terá deixado enfraquecido. Está enterrado no cemitério Vestre (Vestre Kirkegard, em Copenhaga. Eu visitei o Assistenz Kirkegard – mais outra para voltar a Copenhaga e ver o que falta).
Knud Rasmussen era metade inuit e metade dinamarquês. Foi o primeiro a fazer a Passagem do Noroeste num trenó puxado por cães, em 1922. Entre as várias expedições que fez, não só pela Gronelândia, mas por toda a região do Ártico, como Alasca e Canadá, a sua quinta expedição, conhecida como a “Quinta Expedição Thule” (1921–1924), foi projetada para ser uma expedição etnográfica com o objetivo de responder à “grande questão das origens da raça esquimó”. Falante nativo da língua dos Inuit, o conhecimento de Rasmussen sobre a religião e a vida interior, a voz e o espírito dos Inuit, permanecem um clássico da literatura polar e etnográfica. A língua inuit é difícil de traduzir e a posição única de Rasmussen ao dominar ambas as culturas mostra-se indispensável.
Um Inuit Shaman revelou a Rasmussen: “Toda a verdadeira sabedoria só pode ser encontrada longe das habitações dos homens, em grande solidão; e só pode ser obtida através do sofrimento. Sofrimento e privação são as únicas coisas que podem abrir a mente do homem para o que é escondido dos seus companheiros”.⁴
Sobre a Quinta Expedição, Rasmussen escreveu um livro com dez volumes: “Across Arctic America”, cujas primeiras edições são raras e caras, indo de 50 a 100 dólares no mercado de livros usados⁴.
Recentemente foi feito um filme baseado neste livro da Quinta Expedição: “The Journals of Knud Rasmussen” (2006), do mesmo realizador de “Atanarjuat: The Fast Runner” (2001), o qual tem sido considerado um dos dez melhores filmes canadianos.
Ainda não vi o “The Journals (…)”, mas vi o outro no cinema – “The Fast Runner” – feito inteiramente por Inuítes, e recomendo vivamente. Vi-o no cinema King, em Lisboa. Ainda havia cinema King a passar filmes de esquimós.
“Atanarjuat: The Fast Runner” (2001)
Trailer: https://www.imdb.com/title/tt0285441/
“The Journals of Knud Rasmussen” (2006)
Trailer: http://www.isuma.tv/isuma/the-journals-of-knud-rasmussen-trailer
Esta crónica já vai longa, pelo que deixo um conto de esquimós, recolhido por Knud Rasmussen, para a próxima crónica.
¹ “Ilulissat Icefjord” (s.d.). United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO). Página consultada a 17 Março 2019,
<http://whc.unesco.org/en/list/1149>
² “Saftey” (s.d.). Ilulissat Kangia. Página consultada a 17 Março 2019,
<http://www.kangia.gl/Besoeg%20isfjorden/Sikkerhed?sc_lang=en>
³ “Safety on Foot” (s.d.). Ilulissat Kangia. Página consultada a 17 Março 2019,
<http://www.kangia.gl/Besoeg%20isfjorden/Sikkerhed/Sikker%20til%20fods?sc_lang=en>
⁴ “Across Arctic America by Knud Rasmussen”, Internet Archive. Página consultada a 17 Março 2019,
<https://archive.org/details/acrossarcticamer006641mbp>