8 – Passeio de Barco à Meia-Noite & Lendas de Esquimós
O hotel onde estou hospedada também tem iglos para os turistas ficarem.
Um passeio de barco. Para ver os icebergs e o sol da meia-noite.
Relembro que nunca anoitece nesta altura do ano. As janelas do hotel deixam sempre entrar luz, parece que estou a dormir durante o dia. Há quem não se habitue e tenha dificuldade em dormir. Eu estive bem.
Petiscos servidos no barco, um deles típico da Gronelândia: Halibute fumado. Também é conhecido por linguado da Gronelândia. É um peixe de águas profundas, com uma distribuição circumpolar no hemisfério norte. O seu nome científico é Reinhardtius hippoglossoides.
O Halibute é a segunda espécie mais pescada na Gronelândia, onde a pesca é vital para a economia. A pesca do halibute da Gronelândia é uma parte importante da economia aqui da baía de Disko, em Ilulissat. O WWF (World Wide Fund For Nature) indica que é uma espécie em risco, nesta zona, devido à sobrepesca durante sucessivos anos¹.
Total de pesca em 2017, na Gronelândia:
Marisco 44 mil toneladas
Bacalhau do Atlântico 36 mil toneladas
Halibute da Gronelândia 27 mil toneladas²
Halibute
Foto retirada de World Wide Fund For Nature
Finaliza o passeio da meia-noite.
Aproveito este passeio para contar uma história popular que faz parte da tradição Inuit, retirada deste livro de Knud Rasmussen:
A mulher que teve um urso como filho adotivo
Era uma vez uma mulher idosa que vivia num local onde as outras pessoas viviam. Ela vivia perto da costa, e quando aqueles que viviam em casas acima tinham estado a caçar, davam-lhe carne e gordura de baleia ou foca.
E dado que caçavam habitualmente, de vez em quando apanhavam um urso, de modo que frequentemente comiam carne de urso. E eles voltaram para casa com um urso inteiro. A mulher idosa recebeu um pedaço das costelas como sua parte, e levou-o para casa. Depois de ela ter voltado para casa, a mulher do homem que matou o urso foi até à janela e disse:
“Querida velhinha, gostaria de ter um filhote de urso?”
E a velhinha foi buscá-lo e levou-o para casa, tirou a lâmpada e colocou o filhote, porque estava congelado, em cima da armação de secagem para descongelar. De repente, notou que ele se moveu um pouco e tirou-o para aquecê-lo. Então ela assou um pouco de gordura, pois ouvira dizer que os ursos viviam de gordura, e assim o alimentou a partir de então, dando-lhe torresmos para comer e derretendo gordura para beber, e ele ficava ao lado dela à noite.
E depois dele ter começado a deitar-se ao lado dela à noite, cresceu muito rapidamente, e ela começou a falar com ele na fala humana, e assim ganhou a mente dum ser humano, e quando desejava pedir comida à sua mãe-adotiva, ele farejava.
A velhinha agora não sofria mais, e os que moravam perto traziam comida para o filhote. Às vezes, as crianças vinham brincar, mas a velhinha dizia:
“Pequeno urso, lembra-te de recolher as tuas garras ao brincar com as crianças.”
De manhã, elas vinham até à janela e chamavam:
“Ursinho, sai e brinca connosco, pois agora vamos brincar.”
E quando eles saíam para brincar juntos, ele partia em pedaços os arpões de brinquedo das crianças, mas sempre que queria empurrar qualquer uma delas, recolhia sempre as garras. Até que finalmente ficou tão forte que quase sempre fazia as crianças chorarem. E quando se tornou tão forte que as pessoas crescidas começaram a brincar com ele, ajudaram a velhinha a tornar o urso ainda mais forte. Mas depois de algum tempo nem os homens crescidos se atreviam a brincar com ele, tão grande era a sua força, e então eles disseram uns para os outros:
“Vamos levá-lo connosco quando sairmos para caçar. Pode ajudar-nos a encontrar focas.”
E assim, um dia, ao amanhecer, chegaram à janela da velhinha e gritaram:
“Pequeno urso, anda e ganha uma parte do que apanharmos; anda caçar connosco, urso.”
Mas antes do urso sair, ele farejou para a velhinha. E então saiu com os homens.
No caminho, um dos homens disse:
“Pequeno urso, tu deves ir contra o vento, porque se não o fizeres, a caça vai sentir o teu cheiro e assustar-se.”
Um dia, quando tinham saído para caçar e estavam a voltar para casa, chamaram a velhinha:
“Quase foi morto por caçadores do norte; quase não conseguimos salvá-lo vivo. Dê-lhe, portanto, alguma marca pela qual ele possa ser reconhecido; um colarinho largo de tendões trançados no pescoço.
E assim a velha mãe-adotiva fez uma marca para ele usar; um colar de tendões trançados, tão largo quanto uma linha de arpão.
E depois disso, nunca ele falhou a apanhar focas, e era mais forte até do que o mais forte dos caçadores, e nunca ficava em casa mesmo durante o pior tempo. Também não era maior que um urso comum.
Todas as pessoas das outras aldeias agora sabiam disto, e embora às vezes quase o apanhassem, soltavam-no sempre assim que viam o colar.
Porém agora as pessoas para lá de Angmagssalik ouviram que havia um urso que não podia ser apanhado, e então um deles disse:
“Se alguma vez eu o vir, matá-lo-ei.”
Mas os outros disseram:
“Não deves fazer isso; a mãe-adotiva do urso mal poderia aguentar-se sem a sua ajuda. Se o vires, não não lhe faças mal, deixa-o em paz assim que vires a sua marca.”
Um dia, quando o urso chegou a casa, como de costume, da caça, a velha mãe-adotiva disse:
“Sempre que encontrares homens, trata-os como se fosses um deles; nunca lhes faças mal, a menos que eles te ataquem.”
O urso ouviu as palavras da mãe-adotiva e fez o que ela disse.
E assim a velha mãe-adotiva manteve o urso com ela. No verão, ele saía para caçar no mar e, no inverno, no gelo, e os outros caçadores aprenderam a conhecer a sua maneira e recebiam partes das suas capturas.
Certa vez, durante uma tempestade, o urso estava a caçar, como de costume, e só chegou a casa à noite. Então ele farejou para a sua mãe-adotiva e estendeu-se no banco, onde era o seu lugar na parte sul da casa. Então a velha mãe-adotiva saiu da casa e encontrou lá fora o corpo dum homem morto que o urso trouxera. Sem entrar de novo, a mulher idosa correu para a casa mais próxima e chamou à janela:
“Estão todos em casa?”
“Porquê?”
“O pequeno urso chegou a casa com um homem morto, que eu não conheço.”
Quando houve luz, eles saíram e viram que era o homem do norte, e puderam ver que ele tinha corrido muito, pois havia tirado as roupas de pele e estava apenas com as roupas interiores. Posteriormente, ouviram dizer que foram os seus companheiros que insistiram para o urso resistir, pois ele não o deixaria em paz.
Muito tempo depois disto acontecer, a velha mãe-adotiva disse ao urso:
“É melhor não ficares aqui comigo sempre; serás morto se o fizeres; e isso seria uma pena. É melhor deixares-me.
E ela chorava enquanto dizia isto. Mas o urso baixou o focinho para o chão e chorou, de tal forma sofria por se afastar dela.
Depois disso, a mãe-adotiva saía todas as manhãs assim que a madrugada vinha, para olhar o tempo, e se havia apenas uma nuvem no céu do tamanho duma mão, ela não dizia nada.
Todavia uma manhã, quando ela saiu, não havia nem uma nuvem tão grande como uma mão, e então ela entrou e disse:
“Pequeno urso, agora é melhor ires; tens a tua própria família lá fora.
Mas quando o urso estava pronto para partir, a velha mãe-adotiva, chorando muito, mergulhou as mãos em óleo e sujou-as com fuligem, e acariciou o lado do urso quando ele se despedia dela, mas de tal maneira que ele não podia ver o que ela estava a fazer. O urso farejou para ela e foi-se embora. Mas a velha mãe-adotiva chorou durante todo o dia, e os seus companheiros no local lamentaram também a perda do urso.
Mas os homens dizem que, no extremo norte, quando muitos ursos estão no exterior, às vezes aparece um urso tão grande quanto um iceberg, com uma mancha preta de lado.
Aqui termina a história.³
Aqui já entrei no sexto dia na Gronelândia (de oito no total). E começa um novo passeio de barco com o intuito de ver baleias. Mas não houve baleias nenhumas, elas resolveram ir passear para outro lado. Não deixou de ser bonito na mesma, porém, o passeio.
Sobre o colar de “tendões” que a história contém (“sinew”, em inglês), efetivamente é uma característica da cultura Inuit, que a partir dos tendões das renas, por exemplo, faz linhas para costurar, ou mesmo cordas de arco. Deixo um vídeo onde pode ser vista uma Inuit do Canadá a mostrar como se trata os tendões dos animais. Neste vídeo também se vê uma “armação de secagem” onde a mulher idosa do conto pôs o bebé-urso a secar:
https://www.youtube.com/watch?v=tI21FQd0h3I
Num segundo vídeo, pode ver-se o corte dos tendões de um veado:
https://www.youtube.com/watch?v=o8vr3yqMjMA
E neste terceiro vídeo, a partir do minuto 3’50’’, pode ver-se como se fazem cordas a partir dos tendões secos:
https://www.youtube.com/watch?v=MahAjBrW4uw
Sobre o livro dos “Contos Esquimós”, a sua introdução é bastante significativa:
“As histórias foram coletadas em várias partes da Gronelândia por Knud Rasmussen, retiradas dos lábios dos próprios esquimós contadores de histórias. Nenhum homem está melhor qualificado para contar a história da Gronelândia ou as histórias do seu povo. Knud Rasmussen é em parte de origem esquimó; a sua infância foi passada na Gronelândia e, para a Gronelândia voltou uma e outra vez, estudando, explorando, cruzando o deserto do interior gelado, fazendo coleções únicas de material, tangível e de outros tipos, de todas as partes desta terra vasta e pouco conhecida, e as suas realizações nestas várias expedições trouxeram-lhe muita honra e a apreciação de bastantes sociedades eruditas.
Porém é como intérprete da vida nativa, dos hábitos e costumes dos Esquimós, que ele realizou a sua maior obra. “Kunúnguaq” – este é o nome nativo de Knud Rasmussen – é conhecido em todo o país e possui a confiança dos nativos num grau superlativo, tornando-se ele próprio, por isso, um elo entre eles e o resto do mundo.”⁴
A guia que acompanha o grupo.
A partir de agora é tarde livre, o grupo dispersa-se, e eu vou dar uma volta por Ilulissat.
O calor aumenta nitidamente, ao longo dos dias. As calças térmicas já estão no chão.
Quase que não se vêem os pássaros na foto, mas são “Escrevedeiras-das-neves”, ou em inglês “Snow Bunting” (Plectrophenax nivalis). É uma espécie do Ártico, residente aqui na Gronelândia, entre outros países nórdicos. No entanto, pelo que vejo no site da IUCN (International Union for Conservation of Nature) este pássaro também passa por Portugal e Espanha⁵.
Neste link estão listados os pássaros da Gronelândia.
Fazendo busca nesta página por “Snow Bunting”, e clicando nele, pode ouvir-se o seu canto.
Isto parece ser a gordura de baleia ou de foca falada no conto esquimó, mas não tenho a certeza.
Um cartaz afixado na entrada do mercado, sobre o facto do Glaciar Sermeq Kujalleq estar a derreter, e consequentemente a reduzir de tamanho e a acelerar de velocidade (por deslizar mais facilmente). As notícias que podemos acompanhar nos media são alarmantes. Esta é de Fevereiro de 2018:
Polo Norte está 30 graus acima do normal
Estes episódios de subida das temperaturas não são uma boa notícia para o gelo do Ártico, cuja superfície nunca foi tão reduzida nesta época desde o início dos registos, há mais de 50 anos.
Para ter uma medida mais precisa, é preciso ir ao extremo norte da Gronelândia, “onde se registaram 6,2º C no domingo”, acrescentou Kapikian. “É um valor excecional, cerca de 30º C acima do que é normal para a época, acentuou.
Em torno do arquipélago norueguês de Svalbard, a leste da Gronelândia, a superfície de gelo medida na segunda-feira era de 205.727 quilómetros quadrados, ou seja, menos de metade da superfície média do período 1981-2010, segundo os registos noruegueses.
“É difícil dizer que um acontecimento está ligado ao aquecimento global. Mas esta tendência que observamos, um Ártico quente, um continente frio, pode estar ligada às alterações climáticas”, respondeu Marlene Kretschmer, climatologista no Instituto de Potsdam para a investigação sobre as alterações climáticas.
De forma global, os climatologistas consideram provável ver o Oceano Ártico sem gelo no verão até 2050.⁶
E veja-se esta notícia sobre os Ursos Polares, de Fevereiro de 2019:
Ursos polares que invadiram ilhas russas: solução pode ser o abate
Medo de sair à rua. Medo de ser atacado. Receio de deixar os filhos ir à escola. Este é o ambiente que se vive na região de Novaya Zemlya, na Rússia. A região declarou estado de emergência depois de ter sido invadida por mais de 50 ursos polares. Nos últimos dois meses, a população tem sido assolada por ataques e invasões às suas casas.
Esta invasão por parte dos ursos polares está ligada às alterações climáticas. Com o gelo do Ártico a derreter, os animais são obrigados a invadir a terra para procurar alimento e estão a passar por um período de carência alimentar, de acordo com um estudo realizado no ano passado e partilhado na revista Science. A região do Ártico está a aquecer duas vezes mais rápido que o resto do planeta, segundo vários estudos científicos.⁷
Isto é uma tristeza infinita.
Conforme referido acima, a pesca e a indústria pesqueira são a principal atividade económica na Gronelândia.
Uma das casas mais antigas da Gronelândia.
O cão da Gronelândia.
¹ “Much at stake in Greenland halibut overfishing” (2017, 25 Agosto). World Wide Fund For Nature. Página consultada a 18 Março 2019,
<http://wwf.panda.org/?309430/Much-at-stake-in-Greenland-halibut-overfishing>
² “Greenland in Figures 2018 – Fishing”. Statistics Greenland, 15ª Edição, pág. 25. Página consultada a 18 Março 2019,
<http://www.stat.gl/publ/kl/GF/2018/pdf/Greenland%20in%20Figures%202018.pdf>
³ Rasmussen, Knud (1921) “Eskimo folk-tales”. “The Woman who had a Bear as Foster-Son”. Pp 40-43. Edited and rendered into English by William Worster, Publisher: Gyldendal, Copenhagen. Livro online disponível em “Internet Archive”. Consultado a 18 Março 2019,
<https://archive.org/details/eskimofolktales00rasm/page/40>
⁴ Worster, William (1921) “Introduction to Eskimo folk-tales, by Knud Rasmussen”. Pág. 11. Publisher: Gyldendal, Copenhagen. Livro online disponível em “Internet Archive”. Consultado a 18 Março 2019,
<https://archive.org/details/eskimofolktales00rasm/page/n11>
⁵ “Snow Bunting”, BirdLife International 2016. The IUCN Red List of Threatened Species 2016. Página consultada a 18 Março 2019,
<https://www.iucnredlist.org/species/22721043/89345729#habitat-ecology>
⁶ “Polo Norte está 30 graus acima do normal enquanto Europa treme de frio” (2018, 27 Fevereiro). Jornal de Notícias. Página online consultada a 18 Março 2019,
<https://www.jn.pt/mundo/interior/polo-norte-esta-30-graus-acima-do-normal-enquanto-europa-treme-de-frio-9149626.html>
⁷ “Ursos polares que invadiram ilhas russas: solução pode ser o abate” (2019, 14 Fevereiro). Diário de Notícias. Página online consultada a 18 Março 2019,
<https://www.dn.pt/mundo/interior/ursos-polares-invadem-ilhas-russas-solucao-pode-ser-o-abate-10575952.html>