121 – Graciosa, 33º dia – A Despedida

Hoje é domingo, 2 de agosto de 2020. Tenho um voo às 13h40 para Lisboa.
Deixei o despertador para as sete, mas acordei às cinco como habitual. Deixei-me ficar e fui dormindo até às 6 e pouco.
E vou dar a minha volta de despedida. Despedida da ilha Graciosa e dos Açores. São 7 da manhã agora.

Guardar o capacete para quê? Pernoita ali. Preso a nada.

São 7h09.

Igreja de São Mateus.

Esta igreja é originária do século XVI, porém foi reconstruída no século XIX. Alberga várias esculturas flamengas e barrocas do século XVI assim como um órgão do século XVIII. A imponência deste templo reflete a importância que teve a vila da Praia em tempos idos. Apresenta-se como a mais alta construção da ilha e como um edifício imponente que domina a paisagem.¹

À esquerda, a Ermida de Nossa Senhora dos Remédios / Império do Espírito Santo de Nossa Senhora dos Remédios.

Ermida reconstruída em 1933, substituindo uma outra muito mais antiga, e adaptada a Império, conservando, no entanto, a planimetria e características de ermida. A fachada principal segue uma linguagem arquitetónica com uma geometria simplificada própria do modernismo dos anos 1930. A frontaria não possui quaisquer dos típicos elementos alusivos ao Espírito Santo.²
Este Império foi fundado em 1895³. É um dos três Impérios existentes em Vila da Praia, que referi na crónica anterior.

Hoje estou à paisana. O único equipamento ciclista que tenho são as luvas. Nunca mais comentei, mas desde a ilha do Pico que deixei de fazer pensos de proteção para as esfoladelas dos pés. As tais que ganhei no ilhéu Bom Bom, na ilha do Príncipe. As feridas não abriram mais. Mas mudei de estratégia: todos os dias, após o banho, em vez de colocar creme hidratante nos pés, passei a colocar pomada cicatrizante. Daquelas pomadas indicadas para tratamento de feridas superficiais não infetadas, queimaduras de 1º grau, ou escaldões da praia. É um medicamento, pois. E apliquei em toda a extensão de ambos os pés, diariamente, não apenas na zona das esfoladelas. Os pés andam sujeitos a condições agrestes, nestas viagens, ainda por cima com sandálias. E o que é certo é que deu um grande resultado. Aparentemente foi desta que curei as esfoladelas de recordação da ilha do Príncipe. Nas próximas viagens, se me lembrar, repetirei esta aplicação de pomada.

Fiz 3 km e voltei para trás. Fui vendo o nascer do sol a iluminar gradualmente as montanhas e as casas. Já me assola uma certa nostalgia. Esta maravilhosa viagem está a terminar. Não sei se alguma vez voltarei a percorrer estas estradas.

Esta casa já foi nova. Com um telhado novo. Que família terá vivido aqui? Que bulício terá havido aqui? Bebés que nasceram, crianças que brincaram. Onde estarão agora? Já envelheceram? Já morreram? Agora nascem plantas lá dentro. Que histórias tens tu para contar, casinha?

São agora 8h10.

O posto da GNR.

Eis o meu espólio alimentar inter-ilhas. Ainda tenho a garrafa de vinho branco delicioso, da Graciosa. A manteiga anda comigo desde a ilha das Flores, mas eu deixei de comer pão. Será que aguenta até Lisboa? Em Lisboa uso muita manteiga para cozinhar e temperar, e também para comer com bolachas de água e sal, ou tostas. É raríssimo comer pão.
Em cima do chocolate estão nozes. Vieram de Lisboa. Não me digam que vão regressar a Lisboa.
Tudo o que não é líquidos vai comigo. Às 11h40 vem o taxista João buscar-me. Ainda dou um desbaste considerável neste espólio, agora a meio da manhã. O queijo do Corvo vai comigo na bagagem de mão. Levará umas dentadinhas pelo caminho. Está previsto eu aterrar no aeroporto de Lisboa às 21h15. Tenho uma dúzia de voos e ligações.

Claro que estou triste por partir.

A bicicleta. Estou sempre com medo por causa da bicicleta. Ela agora tem que passar, tem de ir comigo para Lisboa. Mas atendeu-me uma senhora já experiente na coisa, felizmente. Tive que assinar a papelada toda, com o termo de responsabilidade, como é hábito. As pessoas mais velhas têm mais experiência, já lhes terá passado muitas coisas pelas mãos, bicicletas eventualmente, são mais desembaraçadas. Conforme contei noutra crónica qualquer, os mais novinhos ficam muito atrapalhados, põem-se a ler as regras no computador, têm receio de fazer alguma coisa mal, a bicicleta é um bicho de sete cabeças, uma máquina diabólica, e tudo é pretexto para impedi-la de passar.

Acabei com as nozes no aeroporto, aqui na sala de espera da Graciosa! Já não regressam a Lisboa! (Ou regressam na minha barriga…).
Partimos a horas – efetivamente até uns minutos antes.
O avião tem 7 filas. Faz escala na ilha Terceira.
Um açoriano sentado atrás de mim, a caminho de Fátima, disse, a cumprimentar outro:
Haja saúde e paz! E máscaras para a cara!

A Caldeira da Graciosa! Por onde andei na crónica 111 e seguintes!

E aproveito esta pausa par contabilizar os quilómetros feitos na ilha Graciosa:

Dia 30
Voo Para a Graciosa / Polos do Museu da Graciosa
Bicicleta 10,1 km
Táxi 20,4 km

Dia 31
Graciosa: Caldeira e Caldeirinha
Bicicleta 35,3 km
Não houve táxi

Dia 32
Graciosa: Farol da Barca, Baía da Caldeirinha, Jorge Gomes e Guadalupe; Praia
Bicicleta 33,3 km
Não houve táxi

Dia 33
Graciosa, passeio matinal & ida para o aeroporto
Bicicleta 5,65 km
Táxi 9 km

Total Ilha Graciosa
Bicicleta 84,35 km
Carro 29,4 km

Fiquei enjoada no avião com tanta ondulação no ar, nunca me tinha acontecido. Fiquei enjoada como se fosse num barco.
E nunca passei frio nos voos da Sata. Pelo contrário, faz calor, o que me deixa contente. A hospedeira abana-se com a porta da casa de banho. É assim a vida, uns gostam outros não. Mas ela, coitada, tem a fatiota vestida; eu estou de calções e tshirt.

A chegar à ilha Terceira. Este primeiro voo durou uns 20 minutos, ou coisa que o valha. Tive que sair do avião e passar nos raios-x outra vez. O novo voo partirá às 14h45 para Ponta Delgada, na ilha de São Miguel.

O Bairro Americano da Base Aérea das Lajes. Não andei por ali na bicicleta, agora nesta viagem, mas em 2019, quando passei quatro dias de férias na ilha Terceira, com um amigo, andei ali de carro.

Leio a seguinte descrição no jornal “Expresso”, de 2018:
Era uma espécie de enclave dos EUA na ilha Terceira, nos Açores, um condomínio fechado com muros e gradeamentos e moradias amplas com jardim e vista para o mar, tipicamente americanas – grande cozinha, lavandaria no primeiro andar, ventoinhas no teto em todas as divisões, tomadas elétricas de 110 volts em vez dos 220 volts portugueses. Há moradias T2, T3 e T4, dimensões que eram atribuídas de acordo com a patente militar. Festejava-se o Halloween, o Dia de Ação de Graças, o 4 de julho (aniversário da independência dos EUA). E a escola era frequentada por alunos da pré-primária à universidade.
Em setembro de 2017, a última centena de moradores abandonou o Bairro Americano. São os militares da Força Aérea dos EUA que ainda hoje trabalham na Base das Lajes, depois do processo de redução drástica da sua atividade iniciado em 2015. Passaram a receber um subsídio de renda e vivem em casas por toda a ilha. A base chegou a ter mais de 2000 militares americanos e de 2000 trabalhadores portugueses. Hoje são apenas 169 militares americanos e 410 civis.⁴

Mais recentemente, em outubro de 2020, leio o seguinte:
Cinco anos depois da redução do contingente dos Estados Unidos da Base das Lajes, a ilha Terceira ainda sofre as consequências da saída dos militares norte-americanos.
O turismo não compensou a quebra na economia da ilha, o que provocou centenas de despedimentos e um impacto de cerca de 15 por cento do PIB da Terceira.⁵

Cheguei às 15h30 a Ponta Delgada. O voo seguinte, para Lisboa, é às 18h.
Estas tshirts das vaquinhas custam 40€. Até gostaria muito de ter uma, mas 40€ é muito. E nem diz Açores. Com este verde todo, também podem ser vaquinhas da Irlanda ou da Escócia, portanto, terras que eu ainda não conheci. Eu só quero vaquinhas açorianas.

No café do aeroporto, um pastel de nata custa 1,80€. Folhados a 2,10€. Ainda não percebi qual é a diferença entre um café no aeroporto de Ponta Delgada, ou um café na cidade de Ponta Delgada. Ou qualquer outra cidade do mundo. Será o aluguer do espaço, dentro de um aeroporto, que torna tudo tão caro? No centro de uma cidade, o aluguer do espaço será mais barato? Mas porquê estes preços exorbitantes dentro dos aeroportos? Há de haver uma razão. Deve ser o aluguer do espaço, que deve ser muito caro. E para o café ter lucro, precisa de vender a estes preços. Bom, recorro ao meu espólio alimentar inter-ilhas, que viaja comigo. E aposto que nunca viram alguém comer um queijo do Corvo à dentada no aeroporto. Nem do Corvo nem no aeroporto, nem em lado nenhum certamente. As poucas pessoas que passaram por mim ficaram de olhos arregalados com o meu queijo do Corvo. São pequenos luxos. Vão comer folhadinhos gordurosos ali ao café do aeroporto, que eu como bananas dos Açores, queijo do Corvo e queijadas da Graciosa.
Dois pardais vieram espreitar e eu atirei-lhes um pedaço de casca do queijo: o primeiro não quis, o segundo levou-a.

Aqui no aeroporto de São Miguel vi à venda queijadas da Graciosa, queijadas de Vila Franca do Campo e nada mais. Quando as pessoas provarem os doces do marido da Rossana, e os doces da Ana, de Santo António, aqui na ilha de São Miguel, também vão ver o que é bom.

E há um voo direto daqui de São Miguel para Boston, nos EUA. Estavam a chamar para a porta 2.

Nos três voos fui sozinha na minha fila de lugares, sem ninguém ao meu lado. Esqueci-me do ipod na mochila laranja, que vai no porão. Nesta viagem não ouvi música.

A ilha de São Miguel.

Adeus Açores!

Fui feliz, nesta viagem de 33 dias pelas 9 ilhas dos Açores.

A chegar a Lisboa! São agora 19h48!

As praias da Costa da Caparica! Que se prolongam por alguns quilómetros. Já devo ter passado ali uns bons meses estendida na areia, ao sol. Todos os bocadinhos reunidos, ao longo da minha vida, já devem dar uns bons meses de vida ali estendida.

A passar o rio Tejo.
Atrás de mim vai um passageiro – açoriano, vim a saber – inerte. Não se mexe. Magro, dos seus 30 anos. É preciso pôr o cinto, é preciso ter a máscara na cara. Mas qual quê. Não responde. A tripulação veio verificar se ele respira e se está quente. Então? Não me digam que o homem morreu agora, sentado no banco atrás de mim.
Então ao que parece é a primeira vez que ele viaja de avião – disse outro passageiro noutro banco, que o conhece. E estava de tal forma nervoso que tomou uma série de comprimidos para dormir. Agora ninguém consegue acordá-lo.

A minha bicicleta veio no meio dos carrinhos de bebés.
E eu esqueci-me do capacete no compartimento por cima dos assentos. Saí do avião e sentei-me no autocarro, em frente ao avião. Veio um membro da tripulação perguntar no autocarro de quem é o capacete. Para a próxima prendo a fivela do capacete na alça da mochila. Vão os dois agarrados. Já não ir com ele na cabeça é uma sorte. Havia de ser lindo. Que eu saiba não existem regras que impeçam de usar capacete durante o voo. Se o avião cair, é uma proteção adicional. Nem me importava de emprestá-lo ao rapaz aterrorizado com o avião, talvez ele sentisse uma segurança adicional, coitado. A propósito, quando o avião parou, ele foi de tal modo sacudido, e levou uns tabefes, que lá acordou. Agora vai aos ziguezagues a andar. Ainda adormece no autocarro.

Faz uma enorme ventania, aqui em Lisboa. O avião balançou imenso na aterragem, e eu fiquei com cabelos no ar ao descer as escadas do avião. E muito frio, fui toda encolhida. Muito frio mesmo. Venho eu do calorzinho ameno dos Açores para este frio e ventania de Lisboa. Enganei-me na paragem, vou voltar para a Graciosa!

Cheguei às 22h a casa. Estavam dois gatos no meu terraço. São meus conhecidos. São silvestres, andam por aí e eu dou-lhes comida e água. Peço o apoio da Associação Animais de Rua, ou da Câmara Municipal de Lisboa, para esterilizá-los. Na minha ausência, ficou o meu vizinho do lado a alimentá-los. E outros vizinhos, de outros prédios, também os alimentam. A primeira coisa que fiz foi renovar a água e dar-lhes comida. Vocês estão aqui todos os dias de plantão? Apoderaram-se do meu terraço? Ou na vossa omnisciência felina sabiam que eu regressava hoje?

Aumentei 1 kg de peso.
Voltei com 4 barras de proteína e 6 géis energéticos.
Voltei com 5 tshirts e 3 camisas de alças por usar. As de alças foi pura distração, perdidas no meio da bagagem.


¹ “Igreja de São Mateus” (s.d.) Explore Graciosa. Página consultada a 9 março 2021,
<https://www.exploregraciosa.com/igrejas-conventos/igreja-de-sao-mateus/>

² “Ermida de Nossa Senhora dos Remédios / Império do Espírito Santo de Nossa Senhora dos Remédios”. SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitetónico. Direção-Geral do Património Cultural. Página consultada a 9 março 2021,
<http://www.monumentos.gov.pt/site/app_pagesuser/SIPA.aspx?id=33905>

³ “Império do Espírito Santo de Nossa Senhora dos Remédios”. Roteiro das Festas do Divino Espírito Santo – Açores / Comunidades. Governo dos Açores. Página consultada a 9 março 2021,
<http://roteirodesazores.com/festa/imperio-do-espirito-santo-de-nossa-senhora-dos-remedios/>

⁴ Azevedo, Virgílio (2018, 7 setembro) “Base das Lajes. A nova vida do Bairro Americano”. Jornal Expresso. Página consultada a 9 março 2021,
<https://expresso.pt/dossies/diario/2018-09-07-Base-das-Lajes.-A-nova-vida-do-Bairro-Americano>

⁵ “Ilha Terceira ainda não recuperou do encerramento da base dos EUA”. RTP – Rádio e Televisão de Portugal. Página consultada a 9 março 2021,
<https://www.rtp.pt/noticias/pais/ilha-terceira-ainda-nao-recuperou-do-encerramento-da-base-dos-eua_v1267956>

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