052 – O Frio Muito Frio de Hato Builico

Tivemos 40 km de estrada maravilhosa, depois de Same. Está a anoitecer. Depois tivemos uns terríveis 18 km até chegarmos à zona do Ramelau, a montanha mais alta de Timor, zona em que irei pernoitar, para amanhã de manhã fazer a subida a pé da montanha. Entretanto anoiteceu mesmo, escuro como breu e um frio de rachar, numa estreita estrada de terra e pedras, com grandes ravinas por vezes. Só passa um carro de cada vez. Se nos cruzamos com algum, temos de encontrar uma reentrância para um dos carros se meter e deixar passar o outro. Pelo sim pelo não, pus o cinto de segurança. Já há algum tempo que ando sem cinto de segurança na pickup. Aparentemente não é preciso, ainda não existirão regras quanto a isto. E o cinto provocou-me uma alergia qualquer no pescoço e no ombro (eu sempre de manga à cava) que fiquei cheia de borbulhas. Nunca mais pus o cinto. Até agora. E por esta altura já arrebanhei todas as camisolas e casacos que encontrei, inclusive o próprio casaco do Valério. Eu não aguento este frio, já não estou habituada a isto.

Há uma autêntica multidão a caminhar pelas estradas de terra. Durante alguns quilómetros fomos sempre passando por pessoas a caminhar. Houve alguma festa, ou algum acontecimento especial em que se reuniu muita gente. E aqui estão vestidos a rigor, com os trajes tradicionais. Parámos a pickup para eu sair e fotografá-los. Se calhar são os liurais, ambos os homens com aqueles símbolos na cabeça. Reparem é que eles estão bem agasalhadinhos. (Diz a Rute a tiritar de frio, em calções).

Chegámos às 19h à pousada. Há 12 horas que viajamos, portanto. Arrancámos às 7 da manhã. Conforme comentei na crónica 47, foram 114 km na pickup e outros 54 na bicicleta, totalizando 168 km.

É o capuchinho vermelho, este. Ou esta. O casaco foi roubado ao Valério. E tenho não sei quantas camisolas por baixo. Não trouxe calças, tenho que aguentar-me de calções e sandálias. Devem estar uns 12 graus, se calhar. Eu aguento lá este frio, depois dos adoráveis calores do resto de Timor.

A água veio quentíssima, que maravilha. Eu completamente enregelada. Mas o que eu não sabia é que a água iria acabar em poucos minutos. Eu cheia de sabonete no corpo. Nem água quente, nem água fria – nada. A tremer convulsivamente de frio fui telefonar ao Valério. Não há água? Então o Valério telefonou à senhora que nos tinha vindo receber. Voltou a água. Pelos vistos desligaram a água. Mas agora a água veio quase fria. Acabou-se: tirei o sabonete do corpo e acabou-se o banho. Fico como estou, mal e porcamente lavada, nem cabelo nem nada, com três quilos de terra em cima. A tremer de frio, com o gelo que faz. A casa de banho tem uma janela no topo, sem vidro. Está ao ar livre. A brisa fresca – ou devo dizer: gelada? – entra livremente na casa de banho. Vesti duas t-shirts e quatro camisolas. Até a camisola desportiva do ciclismo eu vesti, para dormir. Se acordasse numa qualquer urgência durante a noite, pareceria que ia participar numa prova de ciclismo, toda equipada. E estou de calções. Com as meias pretas que me deram no avião. Tapei-me com dois cobertores e mais a toalha de banho. Dormi tapada com a toalha de banho, além dos cobertores. Acho que não estou a gostar deste Ramelau. Quero calor, sou um lagarto ao sol, sou um animal ectotérmico, como vi no Jardim Zoológico de Lisboa – preciso de muito sol e calor, 40 graus de preferência, para aquecer-me. Lembram-se do “Lagarto Comum do Sol” da crónica 29? Sou da mesma família. Somos parentes.
A única vantagem que encontrei neste clima gelado é que o anti-mosquitos assim já não é necessário. Os mosquitos ficam com as asas congeladas, qual é o mosquito que consegue voar com este frio.

No silêncio desta sala os talheres fazem grande eco. Só se ouvem os talheres a tilintar. Acabámos por rir-nos à gargalhada, eu e o Valério. Veio uma senhora receber-nos, quando chegámos, mas depois foi-se embora. Ninguém cozinha por aqui, pelos vistos. Estas foram as refeições que trouxemos do restaurante em Same. E mais a carne de vaca que sobrou do almoço.
Em conversa com o Valério, este contou-me que treina crianças no futebol – crianças com cerca de 8 anos de idade. Contou-me também que o seu pai, que entretanto faleceu, caçava vacas e porcos, com os quais alimentava a família. Perguntei-lhe se não eram búfalos e javalis, mas não, eram vacas e porcos. São dez irmãos, conforme já comentei na crónica 21. Doze pessoas para alimentar todos os dias é obra. Eu disse ao Valério que a sua mãe devia ter tido uma trabalheira desgraçada a cozinhar e cuidar de 12 pessoas. E perguntei-lhe porque é que ele saiu um rapagão tão grande. Os timorenses normalmente são pequenos. Como é que ele saiu com este tamanhão todo. Nas fotos com as pessoas na rua eu sou quase sempre mais alta – e eu estou longe de ser muito alta. O Valério deve ter comido bifes todos os dias, desde pequeno, para crescer desta maneira. Parece o meu guarda-costas. Quando o Valério se aproxima as pessoas até se endireitam. O Valério riu-se e respondeu que o seu pai também era alto. A mãe, que vimos na crónica 30, não é muito alta, digamos que é normal.

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