036 – E Assim Termina o Magnífico Dia no Loré

O Valério pediu cinco minutos para visitar alguém da família, no caminho. Eu corri logo para a praia. Até lhe dou meia hora se quiser. Não me canso da praia. Este silêncio de ondas, esta tranquilidade. Seis miúdos tomam banho, muito ao longe.

Entretanto o Valério chamou-me (teve de chamar-me, senão passaríamos ali a tarde toda, eu sentada na praia) e apresentou-me a sua tia.

Arrancamos novamente na pickup – eu em pé no tabuleiro – desta vez para conhecermos as aldeias e as belíssimas praias mais para a frente.

Outra vez este misterioso cacho. Tal como comentado na crónica 20, desconfio que se chama Arisaema triphyllum e é uma planta do sul da Ásia.

Já de regresso a Lospalos, onde vou pernoitar novamente. Pelo caminho, no meio duma aldeia, vejo este macaco. Está amarrado. Não parece, mas ele tem uma amarra na pata de trás. Fiz um “não” com a cabeça, a ver se induzia a senhora que ali estava, dona da casa, a observar-nos, a libertá-lo, mas não sei se a convenci.

Timorenses mortos pelos indonésios. Na parte de trás o Valério diz-me que é uma família inteira.

Que cruel, quem terá cortado a cabeça ao pobre bicho, que não faz mal a uma mosca. Ou melhor, come mesmo moscas. Tirei-o do meio da estrada, levei-o para a berma.

Esta cobra que levo na mão é uma coisa inofensiva, e não merecia este tratamento. Tive o prazer de ser informada por Hinrich Kaiser, especialista alemão em herpetofauna de Timor-Leste, após enviar-lhe um email, que se trata da Lesser Sunda Racer (Coelognathus subradiatus). Herpetofauna é o conjunto dos répteis e anfíbios existentes numa região¹. Esta cobra não é venenosa, e é muito útil para controlar roedores, informou-me. A Lesser Sunda Racer, ou Coelognathus subradiatus, é uma espécie crepuscular a noturna que exibe um grau considerável de plasticidade de habitat, ocorrendo numa ampla variedade de ambientes em quase todas as Pequenas Ilhas de Sonda, que incluem Timor. O seu habitat vai desde plantações costeiras de coqueiros, campos de pastagens de baixa altitude, florestas tropicais húmidas, até elevações de até 1200 m. Esta cobra é frequentemente encontrada nas proximidades de habitações humanas, e esta observação foi confirmada pelas próprias experiências em Timor de Hinrich Kaiser e a sua equipa.
Alimenta-se primariamente de pequenos mamíferos, tais como roedores, os quais são mortos por constrição – a Lesser Sunda Racer é uma espécie relativamente poderosa em força muscular – sendo que aves também podem ser capturadas. Também foi reportado jovens Lesser Sunda Racer em Komodo a caçarem tokés. Uma dieta mais católica foi relatada por de Lang (2011), que listou “pequenos mamíferos, aves, répteis, anfíbios, peixes e até insetos ”.
Quando esta espécie se sente ameaçada, pode elevar a porção anterior do corpo em forma de um S vertical, inflar o pescoço e fazer investidas, mordendo livremente se lhe tocarem. Sendo totalmente não venenosa, esta exibição é largamente um bluff.
A publicação de Hinrich Kaiser indica ainda que o herpetólogo português Bethencourt Ferreira (1897) lhe deu o nome de “timoriensis”, de Timor, provavelmente Timor-Leste, a parte então portuguesa da ilha. Este espécime foi recolhido pelo naturalista e explorador português Francisco Newton, que não conseguiu fornecer uma localização precisa; e foi perdido no incêndio do Museu Bocage em 1978².

O Museu Bocage é a secção de zoologia e antropologia do Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa. Vejo uma notícia no Jornal Público sobre este incêndio: “Bastaram horas para apagar mais de uma centena de anos de trabalho de recolha que fez com que o Museu Bocage, fundado em 1905, fosse a mais rica coleção de zoologia que Portugal teve”³. E eis que é Hinrich Kaiser, e a sua publicação citada nas fontes abaixo, que me ensina isto tudo ao enviar-me um simples email.

Entretanto vejo no site “The Reptile Database”⁴ que existem 53 répteis identificados em Timor; e claro que o amigo Toké está lá, identificado como “Gekko Gecko” (o qual já apresentei na crónica 30). E alertaram-me para a existência duma cobra-verde venenosa. É a Lesser Sunda Pitviper, ou Trimeresurus insularis, descobri entretanto. Hinrich Kaiser refere em vários estudos seus, juntamente com outros especialistas, a existência desta víbora verde em Timor-Leste, bem como a sua venenosidade: “Atualmente esta é a única cobra terrestre a ocorrer em toda a ilha de Timor, inclusive na ilha de Ataúro, capaz de dar uma mordedura letal a um humano. As mortes após as suas mordeduras estão registadas em Timor-Leste e, no mínimo, uma mordedura e o subsequente envenenamento podem ser uma experiência desagradável.”²
Atenção que há outra víbora parecida, a Trimeresurus albolabris, venenosa, em que o “The Reptile Database” faz referência específica a Hinrich Kaiser indicando que “Not on Timor”, ou seja, não existe em Timor.

Foto da Lesser Sunda Pitviper, conhecida por víbora verde, ou cobra verde:
(Foto retirada de: “Herpetological Diversity of Timor-Leste: Updates and a Review of Species Distributions”²)

Chegámos às 18 horas ao hotel em Lospalos. Desta vez está aqui alojado um grupo de coreanos. O hotel, tão silencioso, tem agora grande animação. Fui propositadamente ao restaurante ter com eles, já que hoje não me apetece jantar. Estou tão cheia do almoço, que nem quero ouvir falar em comer. Mais daqui a pouco vou beber um pacote de leite com morango, uma bolacha, e está a andar. Recordo que tenho pensão completa incluída nesta viagem, mas se não me está a apetecer comer, não como.
“Hello!” – cumprimentei-os. Eu em pé, a olhar para eles, sentados a comer. “De onde são?” – perguntei-lhes em inglês. Eu sou perfeitamente insensível às diferenças entre os olhos, nas várias nacionalidades orientais. Para mim são todos chineses, na minha ignorância. “Somos da Coreia do Sul”, responderam-me. E vieram em estudo, são estudantes, disseram-me. Se calhar são professores. E não conseguimos falar mais nada porque eles não falam inglês. Mas disseram que não estão de férias. Not holidays!
Com sorte o amigo Toké da noite passada vai cantar as serenatas para um dos quartos deles. Já tem mais público alvo!!

A gorda e feliz cadelinha de olhos tortos e dentes de fora (a mesma da crónica 21). Todos eles entram e saiem do hotel livremente. São cães gordos e felizes. E mandam nisto tudo. Controlam a zona e distribuem muitas lambidelas. Até dá gosto ver esta tropa toda, tão decidida.


¹ “Herpetofauna”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [online], 2008-2013. Página consultada a 24 Outubro 2018,
<https://dicionario.priberam.org/herpetofauna>

² O’Shea, Mark et al. (2015) “Herpetological Diversity of Timor-Leste: Updates and a Review of Species Distributions”, Asian Herpetological Research 2015, 6(2): 73–131. Informação retirada das páginas 106, 107 e 119. Documento consultado a 24 Outubro 2018,
<https://www.researchgate.net/publication/279749008_Herpetological_Diversity_of_Timor-Leste_Updates_and_a_Review_of_Species_Distributions>

³ Machado, Ana (2005, 5 Junho) “Memória e cinzas no centenário do Museu Bocage”. Jornal Público. Página consultada a 24 Outubro 2018,
<https://www.publico.pt/2005/06/05/jornal/memoria-e-cinzas-no-centenario-do-museu-bocage-24054>

⁴ “The Reptile Database – Distribution: Timor” (s.d.). Página consultada a 24 Outubro 2018,
<http://reptile-database.reptarium.cz/advanced_search?location=Timor&submit=Search>

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