030 – Nono Dia, a Caminho do Loré
Hoje espera-me um dos mais magníficos dias desta viagem: vou ao Loré, ainda dentro do Parque Natural Nino Konis Santana (para mais detalhes sobre este Parque remeto para a crónica 18).
Continuo na minha rotina de adormecer às 21h e acordar às 4.30h. Dormi bem, mas é cedo demais. A questão é que aguentar-me até às 21h já é uma luta. É um sono imperioso, uma ordem autêntica. Queres dormir, dorme, pronto. Aqui não tenho maneira de controlar a coisa. Os comprimidos para dormir que o médico da consulta do viajante me receitou, para atinar com o horário asiático, de nada me valem. Neste caso eu precisaria é de um comprimido para me manter acordada. Ou de uns cafés. Mas não vejo necessidade disso – ao menos acordo com tempo, faço as malas com calma. Todos os dias tenho de fazer as malas.
Esta noite foi atribulada, mesmo assim. Travei conhecimento com o senhor Toké. O senhor Toké é um lagarto-cantor. E como ele cantou toda a noite. Não cheguei a vê-lo. Aliás, eu nem acendi a luz, eu tinha tanto sono que nem me mexi, continuei a dormir e deixei-o cantar. Mas o cantorio dentro do meu quarto acordou-me algumas vezes. Há tantos quartos livres neste hotel – esta noite sou inclusivamente a única hóspede – e o lagarto tinha de vir fazer as serenatas precisamente para o meu quarto. O seu canto pode ser ouvido neste link da Wikipedia. O seu nome deriva precisamente do canto: “toké toké toké” várias vezes seguidas. Em inglês o seu nome é Tokay Gecko, e em português Lagartixa-Tokay. Mais à frente, em Viqueque, irei ver um com clareza, e fotografá-lo-ei em grande plano. Deixo já essa foto, para conhecermos um dos cantores, pronto para o Festival Eurovisão da Canção. Ou melhor, como estamos na Ásia, é o Festival Ásia-Pacífico da Canção. Este Toké que vi em Viqueque, quis agarrá-lo, mas o Valério disse que não. Mas afinal até há quem o tenha como animal de estimação, e portanto eu provavelmente podia tê-lo agarrado.
Este réptil vive no sudeste asiático e tem a sua importância cultural. O folclore regional atribuiu poderes sobrenaturais aos Tokés. É um símbolo de boa sorte e fertilidade. Acredita-se que seja descendente de dragões. Esta espécie é caçada para efeitos medicinais em algumas partes da Ásia, nomeadamente na China, e também é caçado como animal de estimação. Nas Filipinas, por exemplo, o Toké já é uma espécie ameaçada devido à caça indiscriminada. A coleta, o transporte e o comércio sem licença destas lagartixas podem ser punidos com até doze anos de prisão e multa de até um milhão de dólares¹.
O amigo Toké de Viqueque.
Quando acordei às 4 e meia da manhã, vislumbro uma sombra debaixo da porta. Ainda às escuras. Bom, deve ser uma folha das árvores do jardim. Com aquele tamanho tem de ser uma folha das árvores, que voou com o vento e ficou encostada à minha porta. Qual quê. É mesmo uma rã. Que pena não se ter deixado agarrar. (Eu agarro na bicharada toda, cobras inclusive, desde que os próprios bichos deixem!). O quarto disponibiliza um spray contra baratas e outros rastejantes. É significativo. Pelo que antes de sair da cama e pôr os pés no chinelos, observo o chão e os próprios chinelos atentamente.
Agora é um tokezinho pequenino, na base da sanita. Esta noite está a ser animada. Se calhar esta bicharada toda mora aqui, no meu quarto. Eu é que estou de passagem, efetivamente. Este tokezinho estava na parede, depois teve de fugir enquanto eu me lavava. Foi para a sanita. Ainda tive que me desviar dele, para não fazer-lhe mal. Vivemos todos em simbiose, não há necessidade de nos desentendermos. Afinal de contas eles comem os mosquitos. Que maravilha. Posso ter alguns Tokés todas as noites comigo, mas convinha é cantarem menos, ou então mais baixinho. Que grandes goelas o bicho tem.
As malas ficam sempre fechadas com o fecho, claro. Senão ainda levo algum Toké comigo para o próximo destino. E tudo está arrumado sempre no mesmo sítio, para ser imediatamente encontrado. É necessária grande disciplina a guardar as coisas, não pode haver preguiça, têm de ir sempre para o mesmo sítio. T-shirts, calções, chinelos, protetor solar, shampoo, o gancho do cabelo. O elástico do cabelo. Tudo tem de estar sempre no mesmo local, para eu não andar meia hora à procura todos os dias, nesta lufa-lufa de fazer e desfazer as malas diariamente. Hoje, de qualquer forma, não preciso de fazê-las, pois voltarei aqui, esta noite, para pernoitar.
Hoje só tive uma tomada no quarto, pelo que tive de gerir quatro carregamentos entre si. Dois telemóveis, pilhas do GPS (que efetivamente não está a funcionar como GPS pois não tem os mapas de Timor carregados – está sim ligado ao satélite a contar os km que faço), e bateria da máquina fotográfica. Tenho de comprar da próxima vez uma extensão para vários equipamentos.
Pequeno almoço às 6h30. Às 6h25 ainda nem as luzes estão acesas. Está tudo às escuras e eu esfomeada e com a pica toda, acordada já há duas horas, e desejosa de partir na bicicleta. Telefonei ao Valério às 6h28, e foi ele quem acordou a senhora. Ela chegou rodeada de cinco ou seis cães gordos e saudáveis. Chegou depois o padeiro para entregar pão quente. Ataquei violentamente o pão quente com manteiga. Manteiga verdadeira. O cão ao meu lado pouco recebeu, e até tive de pedir mais um pão para mim. Mas eles estão gordos e contentes, não precisam.
Parti na pickup com o Valério, às 7h, e ainda vamos buscar uma senhora que nos acompanhará durante o dia de hoje, será a nossa cozinheira e ajudante.
Hoje é domingo, é dia de missa – às 7h30. Vê-se muita gente a caminhar ao longo das ruas, todos bonitos e perfumados, a caminho da missa.
Finalmente conheço a mãe do Valério. O Valério pernoitou aqui, claro.
Aqui está a Arminda, a nossa companhia de hoje. É irmã da cunhada do Valério. Trouxe frango e comida para ser cozinhada na aldeia piscatória que visitaremos em breve.
Ainda a caminho do Loré. O Valério deu-me instruções para eu esperar aqui – ou pelo menos esperar numa ponte. Calculo que seja esta. É que eu vou muito mais depressa do que a pickup, neste tipo de estradas. Eu vou a voar por ali abaixo, ao passo que a pickup tem de ir devagar. Não há amortecedores que aguentem com velocidades, nestas estradas. Só mesmo uma bicicleta de BTT.
¹ “Tokay Gecko” (s.d.). Wikipedia. Página consultada a 16 Outubro 2018,
<https://en.wikipedia.org/wiki/Tokay_gecko>