011 – O Primeiro Cemitério
Esta casinha azul clara parece uma lanterna – uma luz acesa, no meio deste cinzento todo, ou castanho. Estas casinhas azuis claras, tão bonitas – ou também verdes claras – destacam-se fortemente na paisagem e são típicas de Timor-Leste.
Por esta altura eu seguia na pickup, com o Valério, e quando avistei o cemitério dei um berro. Assustei-o. Pedi para parar, claro. O Valério quis fazer marcha atrás ainda uns metros, já que não conseguiu estacar no momento do meu berro, e parou para eu sair. O meu primeiro cemitério timorense. Vamos lá ver o que fazem estas gentes nas lides fúnebres. É um tema que me interessa bastante em todas as minhas viagens. Cada país, cada cultura, tem os seus hábitos. A forma como as pessoas lidam com os mortos – família e amigos – varia tanto.
“RIP” é a sigla para “Requiescat in pace”, expressão em latim que significa “descansa em paz”. Costuma ser mais usada em inglês – “Rest in Peace”. Em Portugal normalmente não se usa esta abreviatura nas campas.
É um bocado difícil não me deixar encantar por todas estas cores. Na China o branco é a cor do luto (recordo a crónica 18 da China, com um cemitério chinês), aqui em Timor não sei. Não encontro nada na internet sobre o assunto, a não ser um blog da escritora e jornalista Ângela Carrascalão, no entanto os seus textos falam apenas duma zona específica – Ramelau Hun, e dum caso específico: a morte da mulher. Ora seguindo um trabalho feito por alunos da Faculdade de Direito da Universidade Nacional de Timor-Lorosae (Ângela Carrascalão também é professora de Direito Internacional Público nesta universidade) esta zona do “Ramelau Hun“ abrange um conjunto de regiões entre as quais Ainaro, Letefoho e Atsabe. Deixo o mapa nesta crónica, mais abaixo, para orientação. Naquele blog é explicado que tendo havido troca de bens entre as famílias dos noivos quando se casaram¹, quando a mulher morre, há a devolução desses bens. Porque o valor da mulher é inestimável e esse valor tinha sido emprestado ao marido em vida. Os pais e os irmãos da mulher receberão búfalos, dinheiro e belak (um objecto fundamental nestas cerimónias – um medalhão timorense em ouro que simboliza a beleza e o valor da mulher); o 2º grupo, constituído pelos pais e irmãos da mãe da mulher, ou seja, os seus avós e tios, terá direito a bens da mesma qualidade, embora recebam em menor quantidade; o 3º grupo, constituído pelos pais e irmãos da avó da mulher (seus bisavós e tios-bisavós), receberá também bens de igual qualidade, ainda que em menos quantidade que o 2º grupo. A reposição e distribuição de bens por ocasião da vida e da morte são uma prática continuada e exigem a obrigatoriedade do seu cumprimento. Todos obedecem, cientes de que darão hoje e receberão amanhã.²
É pouca informação, mas é o que temos. Naturalmente que hoje em dia as coisas tenderão a simplificar-se. A pessoa morre, há um funeral, é enterrada e pronto. Sejamos pragmáticos porque estamos no século XXI. Estou mesmo a ver esta gente toda a trocar búfalos e medalhões de ouro… A explicação das cores aguerridas dos túmulos é que era interessante sabermos. Se alguém souber, que me diga e eu atualizarei estas crónicas.
Deixo no entanto o testemunho recente dum amigo timorense, que vive atualmente no estrangeiro, e que tentou ajudar-me dando a seguinte indicação:
“Só te posso contar da minha experiência em Portugal aquando da morte dos meus avós.
Tem em consideração que Timor-Leste é um dos países com maior percentagem de católicos no mundo, portanto seguimos praticamente a religião católica trazida e difundida pelos portugueses missionários, pelo menos nas cidades, pois não sei como será nas aldeias mais afastadas dos centros urbanos.
Então do que me lembro, para o funeral utiliza-se roupa preta. O velório é feito durante toda a noite e só termina com o início do funeral onde toda a gente acompanhará o carro funerário até ao cemitério para o enterro (não sei se a cremação já é aceite mas nunca vi ou soube de um caso de um timorense que tivesse sido cremado). A família do defunto receberá todos os que quiserem dirigir-se à sua casa para comerem e beberem, de modo a agradecer a presença de todos no adeus final à pessoa falecida.
O luto da família prossegue por mais um mês, com a excepção das crianças que é somente por uma semana. Durante o luto deverão andar vestidos de preto, mas para quem não possa (por exemplo por motivos profissionais) poderão usar uma fita preta na roupa (eu andei com uma fita preta enrolada no braço quando ia para a escola). Não é permitido durante o luto mostrar sinais de alegria extrema em público, portanto ir a festas e afins durante o luto, será visto como um ato de desrespeito para com a pessoa que morreu e não é aceitável pela sociedade.
E pronto, isto é do que me lembro e acho que é mais ou menos o que se passa com os portugueses.
Ah, se quiseres podes adicionar mais uma informação que acho bastante curiosa na vida dos timorenses. No final do ano, choram-se os mortos no adeus ao ano velho, antes de se festejar a entrada no novo ano, e isso é feito do seguinte modo:
– No dia 31/12 às 23:59 relembramo-nos das pessoas que morreram nesse ano e que não irão poder entrar no ano novo. Nesse último minuto do ano, a maior das pessoas chora pelos amigos e familiares que faleceram nesse ano.
– No dia 01/01 às 00:00 a tristeza dá lugar a uma enorme explosão de alegria para se poder receber o ano novo em festa, de modo a que este possa trazer a felicidade esperada”.
Já ficámos melhor, muito obrigada Vítor Montalvão, o autor desta breve e elucidativa descrição. Temos portanto duas descrições: uma mais antiga e rural, outra mais recente e urbana. Nada mau.
Aqui retomo a bicicleta e vou fazer mais seis ou sete belíssimos quilómetros ao longo da praia. O Valério vai-se embora e esperará por mim ao fim desses quilómetros, altura em que começa a subir a montanha, por estradas de terra, e eu passarei novamente para a pickup. No fim dessa subida voltarei uma vez mais à bicicleta e seguirei nela até chegarmos ao hotel. Toda a viagem vai sendo assim, alternando entre bicicleta e pickup, na medida do possível, dependendo da qualidade das estradas, da inclinação, e do tempo que tenho até chegar ao próximo destino. O Valério habituou-se à minha permanente questão, durante toda a viagem, cada vez que vou na pickup: já posso ir de bicicleta? Já é altura de ir de bicicleta? As crianças perguntam três mil vezes quanto tempo falta para chegar. Eu vou sempre a perguntar se já posso passar para a bicicleta.
Zona de Ramelau Hun, local das tradições fúnebres descritas acima.
¹ Carrascalão, Ângela (2006, 17 Dezembro), “Raízes de Timor”. Página consultada a 18 Setembro 2018, <http://timor2006.blogspot.com/2006/12/razes-de-timor.html>
² Carrascalão, Ângela (2006, 19 Dezembro), “Os Costumes de Ramelau Hun – última parte”. Página consultada a 18 Setembro 2018,
<http://timor2006.blogspot.com/2006/12/os-costumes-de-ramelau-hun-ltima-parte.html>