066 – Faial, 19º dia – Miradouro do Cabeço Gordo & Caldeira
O copo lá atrás está vazio; parece que tem água, mas não tem. Ali vou verter o delicioso leite.
Aqueles dois frasquinhos contêm mel e um doce de laranja absolutamente delicioso, com finas tiras de casca da laranja. Barrei o fraquinho todo em meia carcaça.
Levantei-me às 5h20. São agora 5h40. Hoje é domingo.
O taxista Paulo vem buscar-me às 6h45 para levar-me ao ponto mais alto da ilha do Faial: Miradouro do Cabeço Gordo, a 1043 metros de altitude. Não vou por menos. A descida ficará por minha conta. E hoje espera-me um grande e magnífico passeio.
Estou a fazer uma torrada nesta máquina. Nunca tinha feito uma torrada num forno destes.
Esta noite adormeci com tampões de cera nos ouvidos. São muitos carros a passar. Há quem não ligue a mínima, nem sequer se lembre de tal, mas eu tenho uma fobia. Carros a passar constantemente, sem sossego, matam-me. Recordo que me puseram no último andar, precisamente para me afastarem da estrada, mas não há vidros duplos, e ouve-se tudo na mesma. Cerca da uma da manhã acordei e retirei os tampões, meio a dormir. Às 4 começou o trânsito novamente. Voltei a colocá-los, até finalmente o despertador tocar.
A primeira etapa será a Caldeira. Depois descerei até um ponto que diz apenas “Reserva Natural – Área Protegida para a Gestão de Habitats ou Espécies dos Capelinhos, Costa Noroeste e Varadouro”.
A seguir, na segunda etapa, irei para o Vulcão dos Capelinhos:
Para já planeio seguir caminhos pedestres, o que, conforme já demonstrei em crónicas anteriores, é um risco, pois podem não ser caminhos adequados para bicicleta. Poderei ter de anular o percurso a meio e regressar à estrada. Mas eu gosto de arriscar. Normalmente as surpresas são boas. Logo verei.
O que falta ali, fui eu que lanchei ontem ao final da tarde – mas foi a própria dona do alojamento que disse que eu podia servir-me durante o dia. Conforme comentei antes, ninguém mais vai tocar neste queijo, serei apenas eu a comê-lo. Ninguém mais tem pequeno-almoço incluído, no alojamento, por causa da Covid-19, conforme expliquei na crónica 65 – os hóspedes que querem pequeno-almoço incluído, vão agora a um café tomá-lo (e está pago previamente), pelo que efetivamente isto é tudo para mim. Vai sobrar. Eu não vou dar conta do recado, com tudo o que ainda tenho para comer.
São 6h48. O Paulo já anda de volta da minha bicicleta. Coitado, a um domingo. Saiu-lhe uma cliente madrugadora.
O Paulo é da ilha do Pico – é picaroto ou picoense, portanto – e vive há 47 anos na ilha do Faial. Conhece as ilhas todas dos Açores. Jogava andebol, quando era novo, e ia de 15 em 15 dias jogar a Lisboa.
São 7h37. O Paulo está a ir-se embora.
A viagem foi 25,1 km, 30€.
E eu fico aqui sozinha no meio das brumas, no ponto mais alto da ilha do Faial.
A bicicleta fica presa com o cadeado naquele ferro. A partir de agora prossigo a pé, vou ver a Caldeira.
Estou no ponto mais alto e curiosamente o meu GPS indica 1035 metros de altitude, quando supostamente é 1043. Oito metros de diferença, exatamente os mesmos oito metros que na ilha do Corvo o GPS também mostrou, no Morro dos Homens. O GPS – na crónica 62 – mostrava 710 metros. Supostamente o Morro dos Homens terá 718 metros. Haverá um erro de 8 metros no meu GPS?
Não vejo nada com o nevoeiro. Mas durante uns breves segundos abriu e eu consegui ver isto. Está ali a Caldeira! E voltou a cerrar tudo novamente.
Por esta altura eu ainda não sei – mas estou a seguir o pior caminho de toda a caldeira, o mais difícil, o mais duro. As sandálias e os pés já estão completamente encharcados e ainda só fiz cem ou duzentos metros. A terra está encharcada em água. Comecei a hesitar. Isto vai ser tudo assim? Eu vim aos Açores andar de bicicleta, não propriamente fazer caminhadas duras. Ainda por cima não vejo nada com o nevoeiro.
E então voltei para trás. Vou dar a volta na bicicleta, por alcatrão, até ao miradouro mais conhecido, onde normalmente toda a gente vai: o chamado “Miradouro da Caldeira”, um pouco mais abaixo.
Depois de voltar para cima – já a deitar os bofes pela boca – eis que o nevoeiro abre, eu olho para trás e vejo este cenário deslumbrante. A cratera. A caldeira vulcânica do vulcão central da ilha: Caldeira do Cabeço Gordo.
Ai!… Brincas comigo, vulcão!
Quase que consigo ouvir o riso trocista do vulcão, a troçar de mim e das minhas fraquezas de bípede humana.
Toca para baixo outra vez.
Não se vê vivalma, é muito cedo ainda, e eu aos ziguezagues para baixo e para cima, no ponto mais delicado do caminho.
Caminha, bípede humana. O vulcão já te recebeu.
Ali à frente, junto à estrada, fica o “Miradouro da Caldeira”.
Ali nas antenas está a minha bicicleta. Nesta foto consegue-se perceber que este bocado é dos piores caminhos, com tudo muito escorregadio e mais aquele buraco – entrada para a cratera – ali ao pé. Eu nem via buraco nenhum, com o nevoeiro.
A partir daqui já é fácil.
O Miradouro da Caldeira.
Ora vou já cantar uma cançãozinha.
Uma vaquinha muito linda que anda aqui a passear!…
Ena tantas. Umas vaquinhas muito lindas que andam aqui a passear!…
Está tudo deserto, só eu e as vaquinhas, pelo que lhes cantei em alto e bom som.
– Cantas muito bem, Rute.
– Obrigada, vaquinha, sei que estás apenas a ser gentil.
– Andas a passear, Rute?
– Ando, vaquinha, vim conhecer a tua terra.
Sandálias encharcadas. Aquele penso de proteção já foi ao ar. Aqueles pensos estão ali apenas para proteção (há alguém que ainda não saiba das esfoladelas feitas na ilha do Príncipe, com a areia?… Quem não souber, pode ir à crónica 9 ver a explicação).
A minha bicicleta está junto às antenas, ali no topo. Mas eu não tenciono dar a volta completa à caldeira. Tenho um programa muito cheio, hoje, a viagem tem que prosseguir sem estes 8 km a pé.
Uma vaquinha muito linda que anda aqui a passear!…
Uma vaquinha muito lindaaaaaaaaaa!…
Que anda aqui a passeaaaaaaar!…
Cantei a todas as vaquinhas. Não quero que nenhuma fique triste.
Uma vez mais, as antenas lá em cima servem de ponto de orientação. Ali é o ponto mais alto da ilha do Faial.
Esta foi a melhor selfie de toda a viagem.
A máquina está a apontar para baixo, claro. A caldeira é que interessa. Conforme expliquei anteriormente, a máquina tira nove fotos seguidas no modo de auto-obturador. À nona foto – a última! – eu lembrei-me: será que a máquina está apanhar-me toda? E decidi baixar-me:
Vou voltar para trás. Já chega. Temos de descontar ali 200 ou 300 metros com as minhas indecisões desta manhã, a andar para trás e para a frente. Fiz portanto 2,5 km à volta da caldeira. Agora volto para trás e faço outros 2,5 km.
Espera aí, Rute, não te vás já embora, deixa-me trocar umas palavras contigo – disse-me ela, vindo apressada na minha direção.
Eu tratei logo de cantar-lhe a minha canção, que ela ouviu com atenção.
O nevoeiro levantou e vê-se a ilha do Pico.
– Deixa-me tirar esta fotografia, vaquinha.
– Onde vais agora, Rute?
– Vou descer a montanha, e depois vou ao Vulcão dos Capelinhos.
– Disseram-me que tens uma bicicleta!
– Como sabes, vaquinha? Sim, tenho, está ali em cima ao pé das antenas.
– Foi um melro mensageiro que nos avisou.
– Onde anda ele?! – perguntei eu imediatamente, olhando à volta, ansiosa por rever o melro. Mas este deve ser outro melro, deve ser um mensageiro talvez do Vulcão do Cabeço Gordo, e não o melro do Grande Senhor do Reino dos Pássaros.
– Estará algures!… – A vaquinha olhou à volta e não o encontrou. – Vais gostar de conhecer o Vulcão dos Capelinhos – acrescentou. É um miúdo ainda. Entrou em erupção há 62 anos. Explodiu lava com toda a sua garra de miúdo. Ainda é muito falado e lembrado aqui. Irás divertir-te com ele.
– Obrigada, vaquinha, fico ansiosa. Adeus, vive bem.
E vaquinha ficou entretida a lavar a barriga e as patas.
Agora toca a subir isto tudo outra vez. São 10 da manhã. Ali em baixo aparecem os primeiros caminhantes. Estão a começar pelo lado mais delicado, fazem bem, ficam já despachados quando ainda não estão cansados.
Se alguém quisesse levar-me a bicicleta, levaria. Basta içá-la e o cadeado sai pelo ferro. Não tive para me chatear. Se eu tivesse receio pela segurança da bicicleta, traria o cadeado de aço de 2 kg. Ficou no alojamento. Aquilo é apenas para dar sinal de que tem dono, não está abandonada. Os dois cantis ficaram inclusivamente ali. Também podiam envenenar-me a água, é verdade. Mas enfim, não me parece que alguém viesse a este deserto de antenas com veneno no bolso à espera de encontrar uma bicicleta com água. É tudo uma questão de probabilidades.