054 – Corvo, 16º dia – Nas Lides do Campo com João e Filipe

Hoje é 5ª feira, 16 de julho.
Despertar às 5h40. Hoje é um dia livre, chamemos-lhe assim. Supostamente ia fazer mergulho, mas o Carlos Toste diz que o mar não está bom nestes dias. Já desisti, vou ter que desenrascar-me noutra ilha. Hoje não tenho nada planeado, portanto, vou andar pela vila, vou meter-me com as pessoas. Estes dias normalmente transformam-se em dias riquíssimos, vamos ver como corre hoje, é sempre uma incógnita. Se ninguém quiser falar comigo estou tramada. Ainda vou estar no Corvo amanhã, 6ª feira, e no sábado de manhã vou-me embora. Tenho barco às 7 da manhã, da Atlânticoline, para a ilha das Flores, e daí vou de avião para o Faial. Existem voos diretos entre o Corvo e o Faial, mas apenas nos dias úteis. Não abdico de forma alguma da sexta-feira aqui na ilha do Corvo. Efetivamente tenho planos bem concretos: quero ir ao Miradouro do Morro dos Homens, que ninguém conhece por este nome, pelos vistos, nem o taxista a quem telefonei a perguntar, nem a Vera. É o ponto mais alto da ilha do Corvo, com uns 720 metros. Hão de dar-lhe outro nome qualquer, mas este é o nome que me aparece no mapa. Porém hoje dão nublado todo o dia, e ir lá para para cima só com nuvens, vento e frio, não vale a pena. Nem se vê nada. Decidi ficar na vila, portanto.

É a primeira aranha que me aparece nesta viagem, coitadita. Eu deixei-a ficar. A casa de banho não tem janela, a aranha deve ter vindo lá de fora da janela do quarto. Fica todos os dias aberta. O Pedro Melo Lindo disse que esta é a única ilha onde as crianças ainda podiam andar livremente, sem perigo. Na ilha das Flores já não é assim, acrescentou.

Esta noite ouvi barulhos estranhos. Parece um curto-circuito, ou uma osga a cantar. Serão os meus vizinhos novos que estão a jogar algum jogo eletrónico? Ou morcegos?
Bom, só mais tarde virei a descobrir que são os famosos cagarros – um pássaro que canta durante a noite, e que constitui a ave marinha mais abundante nos Açores.

Cagarro
Foto retirada de SREC Azores Gov.

Os cagarros são aves marítimas que vivem quase toda a sua vida no mar, indo a terra apenas na época de reprodução e nidificação. Os Açores são um famoso local de nidificação, e pensa-se que a população desta zona represente 65% da população mundial da espécie, pelo que é fundamental conservar a população destas aves nesta zona.
Geralmente, estas aves regressam às suas colónias em Março, onde se reencontram com o seu parceiro, que é escolhido para toda a vida. No entanto não permanecem em terra. Em Maio ou Abril o casal aumenta as visitas a terra e prepara o ninho onde irá pôr o seu único ovo.
A cria nasce no final de Julho e, normalmente, em Outubro ou Novembro deixa o ninho para partir com o seu grupo e atravessar o oceano Atlântico.
Os cagarros são famosos pelos seus cantos, normalmente entoados quando estão a namorar com o seu parceiro e são descritos como sendo semelhantes a um coaxar de uma rã, e quando estão no mar voam entre as ondas, planando e quase não batendo as asas.
No entanto, devido à ação humana e ao facto de cada casal apenas ter uma cria por ano, a população está a diminuir. Estas aves parecem ser muito atraídas pelas luzes e durante a noite (altura em que vêm a terra preparar os ninhos e namorar) vão muitas vezes contra os postes que iluminam as estradas, sendo depois atropelados. Morrem muitos juvenis deste modo, quando saem dos ninhos pela primeira vez.¹

Ontem à noite ainda comi um iogurte com Chocapic e uma fatia de pão de forma com queijo e presunto. Eu tinha pedido à Vera para retirar o fiambre, não vale a pena, não aprecio, vai fora. O presunto é delicioso, foi o que veio no barco, pelos vistos.
Passei a deixar um aviso no telemóvel todas as noites para tirar a manteiga do frigorífico. Hoje a manteiga está boa para barrar.
Já estou a comer muito mais. O meu organismo já entrou no ritmo. No início em São Miguel eu quase não comia nada, os pequenos-almoços ficavam quase intactos. Mas agora já como tudo.

As duas senhoras turistas açorianas – da ilha do Pico – desceram do quarto às 6h45, estava eu a tomar o pequeno-almoço, e disseram-me que eu gosto também de levantar-me cedo. Falámos baixo para não acordar os restantes. Elas foram à padaria buscar pão, não quiseram esperar pelas sete, hora a que uma senhora vem trazer pão fresco. Vão-se embora hoje e também querem pão para levar. Eu já estou habituada a comer o de ontem, sinceramente nem noto grande diferença.
Acabei por ficar apenas com o nome da senhora da esquerda – Livramento – que me deixou o seu número de telemóvel para quando eu estiver na ilha do Pico, ligar-lhe. A senhora da direita ainda deve estar aborrecida comigo por eu lhes ter pedido para falarem um pouco mais baixo, naquela noite às 11 da noite. Estavam na borga a divertir-se! Acho muito bem. Até dá gosto ver turistas açorianas, que não têm propriamente 20 anos, aqui a passearem. Viajar é cansativo – as bagagens, os aviões – as mudanças de quarto. Nem toda a gente gosta. Pelo que ver estas senhoras a passear e na borga até às tantas, é engraçado. Efetivamente vem esta gente mais nova dormir cedo (eu!!) e estragar-lhes a festa!

Entretanto descobri que estes saquinhos onde vem o pão são pequenos e dão jeito para o telemóvel, nos dias em que chove. O telemóvel vai no guiador da bicicleta, e este saquinho é maneirinho, pode dar jeito. Guardei-o.

Vou já de boleia! Isto foi rápido!
Fui de bicicleta até à rua da padaria (que efetivamente é nas traseiras da minha casa), onde há bastante movimento logo pela manhã, com toda a gente a ir comprar pão, quando chegam o Filipe e o João, nesta carrinha. Eles vão às terras tratar das suas lides habituais. Perguntei-lhes se posso ir com eles.  Por esta é que eles não estavam à espera. Nem eu. Uma pendura.
São 7h37.

Sabe bem fazer as subidas sentada num carro…

Uf, do que eu me livrei… esta subida tão grande.

O João pensa que eu quero sair e tirou-me a bicicleta da carrinha. Mas o João vai-se embora, tratar de outras terras e animais, e eu quero ir também. Voltámos a colocar a bicicleta na carrinha. (O João pensava que se tinha visto livre de mim, mas não é assim tão fácil). O Filipe já ficou lá em baixo, noutro terreno, a tratar de qualquer coisa.

O João diz-me para eu sentar-me dentro da carrinha, mas eu gosto mais de ir aqui. Descobri o prazer de andar no tabuleiro duma pick-up em Timor-Leste, conforme contei na crónica 35 dessa viagem. A partir dessa altura quis sempre ir no tabuleiro. Parece que vou num avião, em pé lá atrás.
E hoje estou vestida à paisana. Não trouxe os calções de ciclismo. Supostamente ia passar o dia na vila. Não valia a pena estar toda equipada.
Ontem besuntei-me toda com protetor solar e quase não apanhei sol. Hoje não pus. Não tenho referido isto nas crónicas, mas é uma tarefa matinal, ainda de noite muitas vezes. É uma seca dos diabos, mas eu sei que ao longo do dia irei agradecer. Estou a usar um bom protetor solar, de fator 50.

Nesta foto vê-se o fio elétrico que impede as vacas de sair dali. Vê-se o ferro com a ponta vermelha, e o fio é vermelho também.

São engenhocas, diz-me o João, que entretanto deixou cair a chave para dentro de água e teve de mergulhar o braço para recuperá-la.

O João desativou o fio elétrico da vedação e retirou-o, e as vacas foram imediatamente para aquela área, antes vedada pelo fio elétrico, comer.
Perguntei ao João se já conhece as restantes ilhas dos Açores. Só lhe falta conhecer Santa Maria, respondeu-me.

Voltámos para baixo, para o terreno onde o Filipe tinha saído.

Quarta paragem. Há muitas lides, todas as manhãs, em vários locais, apercebo-me. Agora é necessário mudar umas vacas de terreno. Já comeram tudo no terreno onde estão, agora virão para aqui. O Filipe está a tirar as pedras do muro para abrir uma entrada.

As vacas são encurraladas neste caminho, com o Filipe do outro lado para elas não passarem, e o João pulveriza-as com um líquido contra as moscas. As vacas não gostam de moscas, disse-me. Pois, nem as vacas nem ninguém, é um horror. Então as moscas que estavam pousadas nas vacas começaram todas a voar e vieram para nós – para mim, para o João, e com certeza para o Filipe também. Elas escondem-se nas barrigas – disse o João, apontando o líquido para as barrigas das vacas – e chamou-lhes, às moscas, um nome qualquer, feio, que eu não me recordo.

Esta erva será comida em 3 dias, estimam o Filipe e o João, pelo que as vacas ficarão aqui 3 dias.
São agora 9h10 e vamos embora, terminaram as lides da manhã. Que pena.
O Manuel Rita, que me deu boleia ontem, na crónica 51, passou entretanto na carrinha, e eu chamei o João e o Filipe, bati no capô, para pararem que eu vou atrás dele na bicicleta, mas ambos informaram-me que o Manuel Rita não tem gado. Irá tratar de qualquer coisa ou levar alguém, disseram-me. Eu nem reparei se ia alguém com ele.

O Filipe e o João deram-me entretanto uma notícia que me deixou apreensiva: dizem-me que não existe nenhum barco às 7 da manhã, da Atlânticoline, para as Flores. Mas eu tenho um bilhete que diz “Sábado, 18 de julho, 7h”. Eu tenho que chegar cedo às Flores, porque tenho um voo daí para o Faial, às 11h05, depois de amanhã, sábado. Um barco terá que levar-me no sábado de manhã para as Flores, portanto. Como é que não existe barco?
Enviei um email à Atlânticoline, com o bilhete, questionando-os.


¹ “Cagarro – Calonectris diomeda” (s.d.) Secretaria Regional da Educação e Cultura, Governo dos Açores. Página consultada a 25 novembro 2020,
<http://srec.azores.gov.pt/dre/sd/115152010600/nova/Site_AP12A/Lista%20Aves/Cagarro.htm>

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