046 – Corvo, 14º dia – Nas Terras do Pedro
Hoje é 3ª feira, 14 julho. Despertador às 6h, dormi 9h. Ontem defini este percurso para hoje: a cratera da única montanha vulcânica existente na ilha do Corvo, já extinta – o Monte Gordo. À cratera deram-lhe o nome de Caldeirão.
Ando a preparar pensos de proteção para as minhas duas esfoladelas nos pés, de estimação, feitas na ilha do Príncipe, e que andam a querer reabrir. No entanto hoje de manhã um dos adesivos ter-se-á a colado a qualquer coisa e eu nunca mais o vi. Já não tive paciência de revirar o quarto todo a tentar descobrir onde é que o adesivo se colou. Parti com um só penso no pé direito, o mais delicado.
São 7h39. Decidi sair um pouco mais tarde do que o habitual, hoje, porque se espera que a cratera do vulcão esteja tapada com nuvens durante a manhã. Ontem só abriu cerca das 13h. Não me interessa portanto ir muito cedo lá para cima, apanhar frio, para ter de esperar. Também não é suposto ir já direta, porque chegarei cedo demais com certeza. Vamos ver o que acontece pelo caminho, que distrações irei tendo.
A ilha das Flores lá ao fundo. O tempo está bom, já há um bocadinho de sol!
É uma grande subida logo de manhã. São 8,4 km sempre a subir, até ao Caldeirão, que está a cerca de 700 metros de altitude.
Eu já estou de manga à cava, pois claro. E subo esta parte mais íngreme com a bicicleta pela mão.
Um porquinho muito lindo que anda aqui a passear!… Um porquinho muito lindooooooo!… (agora baixa o tom) Que anda aqui a passear!…
No silêncio da manhã, cantei em alto e bom som, e a minha canção ecoou pela montanha.
– O que andas aqui a fazer, Rute? – perguntou-me ele.
– Vim conhecer a tua terra!
– Espera aí que eu vou apresentar-te a minha família.
Uns porquinhos muito lindos que andam aqui a passear!… Uns porquinhos muito lindooooooos!… Que andam aqui a passear!… – cantei-lhes. E eles ouviram com atenção, observando-me.
Não há vivalma mesmo. Cantei-lhe também. Uma vaquinha muito linda que anda aqui a passear!…
Aqui não mora ninguém. Pelo que percebo eram antigos armazéns, ou mesmo hoje continuam a ser, onde são guardadas as alfaias. Algumas casas estão abandonadas, outras continuam a servir. Vejo ali uns telhados bem estimados.
Este mapa tirei-o dum panfleto do Ecomuseu do Corvo. Eu estou na zona amarela, à esquerda. Saí lá de baixo, da vila, onde está a linha do aeroporto. Estou a aproximar-me da zona onde existem hortas de fruto. E dirijo-me para as Lagoas.
Ainda está nublado lá para cima.
Desde cedo que a fixação dos povoadores na ilha do Corvo se revelou condicionada pelas características do território e dos recursos que continha. Para que o empreendimento fosse bem sucedido foi necessário encontrar resposta a três questões: o que comer, onde se abrigar e o que vestir. É da procura por resposta a estas questões que resulta a organização do território patente ainda hoje em dia, onde são claras as marcas humanas. O povoado foi instalado a este da fajã lávica (conforme explicado na crónica 35, uma “fajã” é uma terra baixa e plana resultante de desprendimentos de uma encosta ou arriba, ou de escoadas de lava que penetraram no mar), único local da ilha com acesso ao mar, para que a oeste ficasse disponível o maior número de terrenos férteis para cultivo, o que solucionava as duas primeiras questões. A criação de gado ovino, lançado na ilha aquando da sua descoberta, respondeu à terceira questão, pelo que, durante séculos, os corvinos se serviram da lã destes animais, que pastavam livremente no baldio (área de propriedade e gestão comuns), para confecionar as suas vestes.
Com o crescimento da população foi necessário também cultivar nos terrenos mais elevados, as chamadas terras de cima, permanecendo o baldio para a criação de gado.¹
Cada corvense tem direito a algumas cercas destas, onde pode colocar o seu gado.
Um farol? A apontar ali para a direita? Quero ir ver o farol.
Deixei a bicicleta presa com o cadeado e fui a pé.
– Não é por aqui, Rute – disse-me ele.
– Mas está ali uma placa.
– Não é por aqui, Rute.
– Mau!… mas está ali uma placa.
Onde está o farol? Quero ver o farol!
Bom, desisti e voltei para trás. Não há caminhos, não há saída, teria que saltar muros.
– Onde é que anda o farol? Porque é que a placa aponta para ali, cavalinho?
– A placa é para os carros, Rute. É para virar à direita na próxima saída, não é já aqui neste caminho pelo meio dos pastos!
Estava eu a regressar à estrada e à bicicleta, quando avistei este senhor. Bom dia! – gritei-lhe. Esta foto foi tirada com o zoom no máximo, ele está um pouco longe e não me ouviu. Gritei novamente. Ao fim de alguns “Bons Dias” bem sonoros, olhou na minha direção. Mas não me disse nada. Ai!… Não quer falar comigo? Agora vou lá ter com ele.
Fui pela estrada, à procura de alguma entrada para a o seu terreno. A bicicleta continuou presa ao poste.
Afinal a entrada é onde eu fotografei há pouco os patos.
Abri a cancela e entrei. (Se queria ver-se livre de mim, ao não me dizer adeus, não surtiu bom efeito). Voltei a fechar a cancela para os patos não irem para a estrada. Ainda vou ser corrida daqui, querem ver?… E fiquei parada à entrada, já depois de avistar o Pedro, que está um pouco mais acima. Chama-se Pedro, sim. Disse-me entretanto. Pedro Melo Lindo. E convidou-me a entrar. Pelos vistos não me viu há bocado, lá ao longe.
Estão a ver as placas de trânsito lá em cima? A bicicleta está ali, e era por ali que eu andava.
– Olá, Rute! – cumprimenta-me esta porquinha. – O que andas aqui a fazer?
– Vim visitar-te!
– Andavas perdida ali nos pastos?
– É verdade.
E o Pedro riu-se com a nossa conversa.
Um dos gatos veio comer esta comida do porco, que tem curgetes. Um gato a comer curgetes do porco, tal é o desespero. “Os gatos não são meus!”, disse-me o Pedro.
O pai do Pedro era de São Miguel, e a mãe das Flores. O avô era picaroto, ou seja, da ilha do Pico.
O Pedro tem três filhos: o Paulo com 45 anos; o Ludigério com 35; e uma filha, Marla Maria, com 47. A Marla tem um filho que está a estudar Eletromecânica em Aveiro. Tem pelo menos mais uma neta, pelo que percebi, criança ainda.
O Pedro mergulhava para apanhar algas, as quais vendia para São Miguel, e daqui iam para o continente. Várias pessoas vendiam algas para medicamentos. Fazia-se muito dinheiro com isso, conta-me. Agora terão arranjado alternativas mais baratas, pois já não se faz isto.
Conhece as ilhas todas e foi 19 vezes a Lisboa. Vai para a ilha do Pico uma vez por ano passar 3 ou 4 meses porque tem lá uma cunhada. Irmã da mulher. É o filho que fica a tomar conta dos animais. Também tem vacas um pouco longe daqui, é o filho que trata delas.
A atual mulher (divorciou-se da primeira) era do Faial, mas rebentou o vulcão há sessenta e tal anos e as pessoas fugiram. Assim conheceu a atual mulher na ilha do Corvo.
– Olá cabrinha, está tudo bem?
– Sim, Rute. Andavas ali perdida no meio dos pastos, eu estava a ver-te.
– Eu sei, também te vi a ti.
– Então, Rute, vieste visitar-nos?
– É verdade.
– E andavas perdida ali nos pastos.
Ai, estou tramada.
O da direita está com um problema no nariz. Está em sangue.
Campanhas de esterilização, meus amigos. Apanhar, esterilizar, devolver.
“Goze a vida”, despediu-se de mim o Pedro.
Mas não sabemos o que nos espera na morte, respondi eu. Pode ser algo ainda melhor. Não acredito muito, respondeu-me. Mas contou-me uma história que lhe contaram a si também:
A história do Jorge Matacão e do Jorge Mariano. Eram amigos, jogavam às cartas. Combinaram que o que morresse primeiro vinha dizer ao outro como era. O tempo passou-se e o Matacão morreu primeiro, e o Mariano 15 dias depois também morreu mas estava saudável.
Esta história foi verdade, aconteceu na ilha das Flores, disse-me o Pedro. Que conclusão podemos tirar desta história?, perguntou-me.
Que o amigo veio avisar o outro de que a morte era algo tão bom, que o outro morreu logo ao fim de 15 dias, mesmo estando saudável.
Exatamente.
O Pedro tem 80 anos e não tem problemas de saúde, são só as pernas. As pernas são o seu problema. Não quer ser operado. Conhece outras pessoas que foram operadas e não ficaram nada bem, um está numa cadeira de rodas.
Explica-me que as parcelas de terra são da Câmara e que cada lavrador pode ocupá-las com 16 cabeças de gado.
Comprou o carro por 800€ em segunda mão. Chega a vir 3 e 4 vezes cá acima, por dia.
Enquanto conversávamos, passaram duas carrinhas de turistas para cima, a toda a velocidade, no seu turismo rápido. Já chegaram os barcos, portanto. Os turistas vão lá acima, andam por aí, e às 16h vão-se embora. Também quero evitar cruzar-me com as hordas de turistas rápidos, quando posso ter o Caldeirão só para mim. Não há pressa. O Pedro explicou-me o caminho para o Farol, e vou fazê-lo entretanto. Afinal não é assim muito perto. No mapa não consta, não faço ideia onde fica, mas vou seguindo o caminho.
¹ “A Ocupação do Território” (s.d.) Ecomuseu do Corvo, Panfleto. Circuito Interpretativo, Vila do Corvo. Governo Regional dos Açores. Panfleto consultado a 15 novembro 2020.