006 – São Miguel, 3º dia – Cemitério da Ribeira Grande & Farol do Cintrão

Hoje é 6ª feira, 3 de Julho. Tenho um destino ambicioso: a Cascata da Ribeira da Ponte. A aplicação Maps.me indica-me três caminhos possíveis:

Este é o caminho que o Maps.me indica para bicicletas.  Tem a opção “bicicleta” selecionada na parte de cima, se repararem. Leva-me pelo centro da ilha, onde as altitudes são muito grandes: 800 metros de subida acumulada. 68 km de distância.

Este é o caminho pedestre, ou seja, para peões. Tem 53 km e não indica a elevação. É mais curto e vai rente ao mar. É arriscado seguir com a bicicleta por caminhos pedestres. Há escadas, muros a saltar, e nas estradas posso ir em contramão.

E finalmente este é o caminho para carros. Vai pela estrada principal. É o mais curto, tem 42 km. Nos percursos para carros não indica a elevação, dado que para um carro não é relevante. No pedestre indica sempre, ele deve estar meio atrapalhado nos cálculos, para não mostrar essa informação. O Maps.me é baseado nos mapas da OpenStreetMap.

Bom, vou arriscar e escolher o caminho pedestre. O da bicicleta é uma volta gigante, e na estrada principal é impensável, com os carros a toda a velocidade a passarem rente a mim. Nem consigo ter prazer nenhum no passeio, indo pelas estradas principais. A minha bicicleta é de montanha, pesada, de pneus largos, mais lenta. Não é uma bicicleta de estrada, leve, de pneus finos, para acelerar.

Despertar às 5h20, pequeno-almoço 15 minutos depois. A Rossana deixa-me tudo pronto na véspera, a meu pedido.

Pedi à Rossana para experimentar um ovo mexido, em vez de cozido. Ficou feito na véspera. Ontem acabei por deitar fora o ovo cozido do pequeno-almoço, após dar-lhe uma dentada. Desde que comi os dois ovos cozidos no avião, fatiados na sandes feita por mim, enjoei os ovos. Porém, hoje nem mexido vai. Não o comi, não me apetece ovos, é curioso. No ano passado em São Tomé e Príncipe comi todos os dias dois ovos ao pequeno-almoço.

São 6h12. Esta é a vista do meu quarto.

Parto na bicicleta às 6h45. Antes de mais vou ao Farol do Cintrão, que na aplicação do Maps.me se chama Farol da Ribeirinha, não sei porquê.

São 7h. A caminho do farol do Cintrão, passei pelo cemitério. E está aberto. Ah pois, primeira paragem já, claro.

O túmulo da esquerda, em cima, indica:
Maria Amélia Medeiros P., nasceu em 1885 e morreu em 1974.
Plínio Maria da Ponte, nasceu em 1886 e morreu em 1936.
São os mais antigos.

Os caixões pequenos, em pedra, são onde são guardadas as ossadas mais antigas, depois de desenterradas. Ao fim de 5 anos são exumados, explicou-me o coveiro Carlos Santos, que irá aparecer nas próximas fotos.

Aqui nos Açores, virei a constatar, existia esta tradição de fazer caixas redondas com fotos e flores.

À esquerda: Carlos Santos, coveiro há 26 anos. Em 1978 fez tropa na ilha Terceira, com a especialidade de cozinheiro. O Carlos já vinha duma família de vários cozinheiros. No entanto mudou a carreira da família, hoje é coveiro.

À direita: António Raposo, o qual estava de passagem à porta do cemitério quando eu o abordei, na estrada, perguntando pelo coveiro. Acabou por entrar e fazer a visita connosco. Agora está reformado, mas era polícia e fez a Escola da Polícia no continente, em Torres Novas. Foi transferido para Lisboa, trabalhou na esquadra do Rego, perto do Hospital Curry Cabral, e em 1978 voltou aqui para a Ribeira Grande. Ainda esteve em Ponta Delgada também, e esteve nos EUA a trabalhar, com a mulher, mas não gostaram e regressaram.

Ambos foram-me mostrando os principais túmulos. Este indica:
À memória de Adolfo Coutinho de Medeiros. Primeiro português morto a combater em França 8-11-1914 na Primeira Grande Guerra. Nasceu nesta vila em 1890.
(Nesta foto não tenho a certeza se é 1890 ou 1893).

 O coveiro Carlos indicou-me que este cemitério foi inaugurado a 20 de abril de 1788, e que este é o terceiro cemitério da Ribeira Grande. O primeiro foi na igreja, depois outro dentro da localidade, o qual fechou, e finalmente este onde nos encontramos agora.

O túmulo do historiador Gaspar Frutuoso, o qual citei na crónica 2 ao transcrever os textos da Câmara Municipal da Ribeira Grande. A lápide (na foto abaixo) indica:

“Historiador das ilhas dos Açores e Doutor graduado em Phylosophia e Theologia pela Universidade de Salamanca. O qual nasceu na cidade de Ponta Delgada em 1522 e faleceu nesta villa em 24 d’Agosto de 1591. Tendo recusado o bispado d’Angra, que em seu favor quizera resignar o Exmo Bispo D. Manoel D’Almada preferiu à mitra a vigararia da matriz d’esta villa que serviu por quarenta annos”.

Muita da produção literária e teológica de Gaspar Frutuoso ter-se-á perdido, mas até nós chegou a sua obra maior, embora parcialmente amputada, as Saudades da Terra, manuscrito que teve uma existência atribulada após a morte do autor e que foi objecto de diversas cópias. Gaspar Frutuoso, com as Saudades da Terra, pretendeu fazer um elogio aos Açores e às suas gentes, servindo o texto como um instrumento para a promoção do arquipélago junto da corte castelhana. Mobilizando a sua formação intelectual e toda uma vasta rede de contactos, Gaspar Frutuoso produziu uma narrativa no interior da qual as ilhas açorianas surgem devidamente integradas no mundo atlântico e insular de Quinhentos.

O início da redação da obra pode situar-se na década de 1580 e, desde então, quase até à morte, o cronista foi elaborando e atualizando os seis livros que compõem as Saudades da Terra. O Livro I é dedicado à história geral e do Atlântico, com ênfase nos arquipélagos das Canárias e de Cabo Verde e nas ilhas de Castela; o II tem como objeto a Madeira; o III aborda a ilha de Santa Maria; o IV, mais desenvolvido e rico de pormenores, concentra-se na história e geografia de S. Miguel; o V, conhecido como a «História de Dois Amigos da Ilha de São Miguel», é uma peça literária distinta, um texto ficcional que representa uma pausa na narrativa histórica anteriormente desenvolvida; e, por fim, o VI tem como fulcro as ilhas dos grupos central e ocidental.¹

O coveiro Carlos explica-me que Manuel Nunes Coelho – que nasceu em 1910 e morreu em 1986 – vendia gravatas, roupa, quinquilharia, chapéus, tecidos. Era de Pedrógão Grande, no continente. Veio para a Ribeira Grande com 25 anos e aqui teve uma vida próspera.

O túmulo mais antigo deste cemitério, o qual está à entrada. Indica:
14 de Maio 1862
Maurícia do Canto.

Não diz a data de nascimento. Se calhar conheceu o Beethoven, que morreu 35 anos antes.

Após esta encantadora – e inesperada – visita guiada ao cemitério da Ribeira Grande, prossigo viagem. Tenho um longo caminho hoje, mas farei apenas o que me apetecer. Não podem haver pressas. Agora vou para o segundo desvio: o farol do Cintrão.

Miradouro da Ponta do Cintrão. Estrutura construída em 1943 pela União das Armações Baleeiras de São Miguel. Servia de posto de vigia às companhias baleeiras dos finais do século XIX e primeira metade do século XX. Proporciona uma vista sobre a costa norte.²

O farol do Cintrão entrou em funcionamento em 1957. A torre tem 14 metros de altura³.

Em circunstâncias normais eu faço questão de tirar uma foto junto ao farol, mas aqui ao lado, a uns 50 metros, há uma vacaria, e estão uns três cães enormes a ladrar e a puxar as correntes com muita violência. O portão está aberto e está lá o dono com as vacas. Mas ver cães tão grandes e tão agressivos – quando eu passei quase que rebentaram com as correntes – assustou-me. Qual dono qual carapuça, quanto mais depressa sair daqui, melhor. Se uma corrente daquelas se parte, com o portão aberto, bem que posso dizer adeus às minhas perninhas, pois não sei se o dono consegue controlar a raiva daqueles bichos. Esta é uma zona deserta, se calhar ele tem medo que durante a noite lhe assaltem a propriedade, para ter aquelas feras todas. As vaquinhas têm de estar protegidas, não deixo de compreender. Se calhar já teve problemas no passado.
Então tirei esta foto e pisguei-me, acelerando o mais possível na entrada do portão. Talvez os cães pensem que é uma mota e não uma bicicleta, e que não vale a pena virem atrás de mim.


¹ “Frutuoso, Gaspar” (s.d.), Direção Regional da Cultura, Governo dos Açores. Página consultada a 17 Setembro 2020,
<http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=9828>

² “Miradouro da Ponta do Cintrão” (s.d.). Câmara Municipal da Ribeira Grande. Página consultada a 17 Setembro 2020,
<https://www.ribeiragrande.pt/geo/miradouro14/>

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