002 – São Miguel – Ribeira Grande

Voo às 13h35 de Lisboa para São Miguel. Duração: 2h25.

No tapete da bagagem fora de formato, a bicicleta não cabe. Continuo a protestar: como é que fazem um tapete rolante para bagagens fora de formato… em que as bagagens fora de formato não cabem. Eu já sei disto desde a viagem do ano passado, para São Tomé e Príncipe (crónica 2), e tenho a ferramenta comigo para desmontar o pneu da frente. Recordo que a bicicleta está artilhada com um sistema de segurança anti-roubo: tem um sistema nas duas rodas e no assento, que impede de roubá-los. Toda a gente sabe que a bicicleta pode ficar presa a uma árvore, mas que as rodas ou o assento podem ser roubados na mesma. Pois na minha não. Tem um sistema de segurança que não permite retirá-los. Tem um segredo: só quando a bicicleta está deitada no chão é que podem ser retirados (rodas e assento). Ora se estiver presa com o cadeado a uma árvore, têm que serrar a árvore ou o cadeado, para conseguir deitá-la no chão e finalmente retirarem as rodas ou o selim. E precisam da ferramenta. Por isso eu deitei imediatamente a bicicleta no chão do aeroporto e retirei-lhe a roda da frente.

O que eu não estava à espera é que este funcionário não deixasse passar o pneu. Só a bicicleta é que tem uma etiqueta do avião, agora o pneu não tem. Vou pedir uma etiqueta à senhora do check-in, disse eu. Pode ir, mas não pode deixar aqui a bicicleta, disse-me ele.
A bicicleta desmontada em duas peças no chão, eu carregada com 3 malas e um saco. Agora tenho de carregar tudo até ao balcão do check-in, e depois carregar tudo novamente para aqui.
Então chame a polícia, disse-lhe eu. E fui-me embora para o balcão do check-in, que é ali ao lado, o funcionário esteve sempre a ver-me, e eu a ele. Efetivamente eu estive a falar com um grupo de agentes da PSP que patrulhava o aeroporto, e os agentes já me conheciam portanto, já me tinham visto com a bicicleta e com as bagagens. Olhe, pode chamar a polícia, disse-lhe eu. Eu vou buscar a etiqueta para o pneu, que a sua colega no ano passado não pediu. Cada ano tenho uma surpresa nova neste aeroporto de Lisboa.

Foi rápido, a senhora que me atendeu no check-in pôs uma etiqueta à volta do pneu e eu voltei para o tapete das bagagens fora de formato. Passou. A bicicleta passou finalmente. É sempre uma dor de cabeça. Um dia terei que conversar com algum responsável do aeroporto de Lisboa para resolver estes procedimentos duma vez por todas. Cada funcionário diz uma coisa diferente.

O avião – um Airbus A321 – partiu com 25 minutos de atraso, às 14h.

Vou à janela com dois lugares vazios ao meu lado. À minha frente vai um homem a tossir o caminho todo, e também a espirrar. Está a usar duas máscaras, uma transparente, outra de tecido. Eu a ver a minha vida a andar para trás. Já fiz uma análise à Covid-19 e deu negativa (claro, senão não estaria aqui), e vou ter que fazer outra seis dias depois. Fechada num avião com alguém a tossir e a espirrar à minha frente o voo todo, estou frita. É bom que isso seja uma alergia, amigo.

O avião aterrou às 15h30, hora dos Açores. Em Portugal continental é uma hora a mais, são agora 16h30. Durante o voo serviram apenas uma garrafa de 33 cl de água. Por causa da pandemia agora não há refeições. Eu levei uma sandes de pão alentejano, manteiga dos Açores, queijo, alface e dois ovos cozidos fatiados. A manteiga dos Açores foi para Lisboa, e regressa agora aos Açores dentro da minha barriga. Também trouxe duas bananas, mas não me apeteceu comê-las. (Não posso passar fome…).
Desta vez não trago 5 frascos de anti-mosquitos, como é hábito nas minhas viagens. N’a pas de malária. Já nem estou habituada a viajar sem a ameaça da malária. Trago meio frasco de anti-mosquitos na bagagem do porão, para alguma melga açoriana mais teimosa. Quase que tive de inventar líquidos para trazer comigo na bagagem de mão. Nas outras viagens é um drama, eu quero levar tudo na bagagem de mão, com receio que a do porão se perca. Aqui nos Açores não seria grave. Tenho farmácias por todo o lado, e não há malária, não são necessários anti-mosquitos potentíssimos.

Faz frio, estão 19 graus.

À chegada aos Açores agora é obrigatório fazer uma análise à Covid-19. Ou então trazê-la feita de Lisboa. Eu trouxe-a feita, porque se a fizesse aqui teria de ficar dois dias de quarentena, fechada em casa, até receber o resultado. O tempo está a contar, não posso passar dois dias fechada em casa. Em dois dias faço muitos quilómetros de bicicleta em São Miguel. Além de que se porventura a análise desse positiva, eu seria obrigada a ficar 14 dias de quarentena aqui em São Miguel, com estadia e alimentação paga por mim. Efetivamente tenho um seguro de viagem que me cobriria essas despesas, mas seria muito aborrecido, e adicionalmente também seria um risco para todos eu vir infetada de Lisboa, a contaminar toda a gente nos aeroportos e no avião. Então paguei a módica quantia de 101€ por uma análise à Covid-19, em Lisboa. Se a fizesse agora, aqui no aeroporto, seria gratuita. E o melhor de tudo é que entrou em vigor uma nova regulamentação, a partir de hoje – 1 de Julho 2020 – em que a análise já é gratuita também em Lisboa. A nova norma entrou em vigor hoje! Basta apresentar o bilhete de avião e a análise é feita gratuitamente em Lisboa.

Nesta foto eu estou na fila das pessoas que já têm a análise feita. A fila da esquerda é para quem vai fazê-la agora.

Estou despachada, já mostrei o resultado da minha análise à Covid-19 e prossigo viagem. Calhou-me um táxi-carrinha, ótimo, dá para levar a bicicleta sem problemas.

São 17h, nesta foto encontra-se a Rossana, a dona do meu alojamento local na Ribeira Grande, e o taxista Rui Sebastião, com quem já combinei vir buscar-me amanhã às 7h15 para levar-me a um ponto alto: a Lagoa Canário. A partir daí seguirei o meu caminho na bicicleta.

Apercebo-me que posso assaltar um banco com a máscara da Covid. Mal se vêem os olhos! Estou desaparecida atrás da máscara!

O papel que me deram nos barracões da Covid, para eu fazer a próxima análise. Tenho que enviar um email para aquele endereço sublinhado, na Ribeira Grande, para marcar o dia e a hora da análise.

Este alojamento possui um quintal e uma pequena oficina onde eu posso guardar a bicicleta. Como estou num segundo andar, não carrego a bicicleta para o meu quarto. Mas eu vou deixá-la aqui na entrada, porque para o quintal tenho de dar uma volta pela rua, e abrir outra porta. Está bem, está. De manhã, eu carregada de coisas, com três litros de água, é muito caminho e porta para andar. A Rossana pôs-me à vontade e deixou-me ter aqui a bicicleta, nos cinco dias que vou estar em São Miguel (quatro noites). Recordo que o programa das estadias se encontra na crónica 1, do prólogo.
Nesta foto a bicicleta já está montada. O pneu, o guiador, os pedais, o suporte do telemóvel, o suporte traseiro da água, e pneus cheios. Os pneus têm que ser esvaziados durante o voo. Uma trabalheira.
E tão limpinha que está a bicicleta. Há onze meses que não tem uso, coitada. Vais já conhecer as terras de São Miguel, minha amiga. Esse brilho e limpeza vai já desaparecer.

E repare-se na fita-cola do assento. É a fita-cola do Rato Cabinda! Conforme mostrei na crónica 59 de São Tomé e Príncipe! Ainda não a tirei nem substituí o selim! Já tenho outro selim em casa nas mesmas condições, mais vale andar com a fita-cola, senão ainda arranjo uma coleção de selins, e isto não é propriamente barato. É um selim em gel, muito fofo, e com as minhas constantes paragens para observar e fotografar, estraga-se facilmente. Agarra-se-me aos calções e quase que mos leva também. Ora mal sabíamos nós – o Rato Cabinda e eu, que a sua fita-cola, além de fazer o resto de São Tomé e Príncipe, ainda iria viajar aos Açores. Não lhe mexo, fica ali que não me incomoda.

São 19h, vou dar uma volta pela Ribeira Grande.

A ilha de São Miguel tem 137.307 habitantes¹, e o gentílico é micaelense.

Eu passei um fim de semana de férias na ilha de São Miguel em 2018, com uns amigos, de mota. Nessa altura ficámos alojados em Ponta Delgada, e corremos a ilha toda de mota. O meu objetivo agora com a bicicleta é diferente. Não irei a Ponta Delgada, por exemplo. Eu prefiro campo e caminhos de terra, com a bicicleta de montanha. Quanto menos alcatrão, melhor. Quem não veio a São Miguel, terá que vir, não fica portanto dispensado só por ver estas crónicas 🙂
Estive igualmente na ilha Terceira, em 2019, quatro dias de férias, também com um amigo, e de carro. São as únicas duas ilhas que conheço até agora.

Vou pedir àquele grupinho que ali vem que me tire uma foto.

Escolhi a Ribeira Grande para ficar alojada por dois motivos: primeiro porque em todas as ilhas procurei um ponto central para ficar, e assim poder ir de bicicleta para todos os lados, sem estar particularmente longe de nenhum. Em segundo lugar, porque, como referi, já fiquei alojada em Ponta Delgada, e cidades com trânsito e barulho não é o meu interesse numa viagem de bicicleta. Já muito trânsito existe aqui na cidade da Ribeira Grande, que é mais sossegada.

Ermida de Santo André.

Esta placa é a que se encontra ao lado da porta da Ermida.

O povoamento da ilha de São Miguel começou na década de 1440 na vila da Povoação. Conforme indica o site da Câmara Municipal da Ribeira Grande:
“Os primeiros que vieram arrotear a ilha, segundo o cronista Gaspar Frutuoso, terão primeiro escolhido a costa sul para se fixarem, deslocando-se de leste para oeste, da Povoação para Vila Franca, e só depois terão ido desbravar a costa norte. Dada a fertilidade do solo e a abundância de água na área que baptizariam de Ribeira Grande, os povoadores ter-se-ão fixado nesta planície da parte central norte da ilha.
A chegada em 1474 de novos povoadores oriundos da ilha da Madeira terá promovido um crescimento acelerado da ilha de São Miguel. Um quarto de século depois, em 1499, é feita a vila de Ponta Delgada. Oito anos depois, em 1507 a Ribeira Grande seria oficialmente elevada a vila.”²

O arco e a torre pertencem ao edifício onde funciona a Câmara Municipal da Ribeira Grande. O edifício foi construído nos séculos XVI e XVII.

Igreja Matriz de Nossa Senhora da Estrela, do século XVI.

De regresso ao alojamento, espera-me uma deliciosa queijada típica aqui da Ribeira Grande, de feijão, feita pelo marido da Rossana, que se chama Eduardo. Uma perdição. Vou perguntar à Rossana se posso comprar algumas. Comi também as duas bananas que trouxe de Lisboa, e que supostamente deviam ter sido comidas no avião. Há mais de dois anos que deixei de jantar, essa refeição desapareceu do meu mapa. Comer um bolo e duas bananas já sai muito do normal, mas nos próximos dias vou fazer exercício físico intenso, vou já abrindo estas exceções.

São 21h15, anoitece. Ao tomar um duche estranho não ser necessário fechar a boca para evitar beber água. Nas últimas viagens que fiz, na Ásia e África, eu não podia beber água da torneira, e portanto é necessário ter muito cuidado durante o duche. Aqui já posso beber água quente do banho, como gosto de fazer.

Há muitos pássaros a cantar e a mexerem-se no telhado. Enquanto estava ao telefone, para Lisboa, do outro lado ouviam os pássaros a cantar. Estes pássaros açorianos cantam que se fartam e até se ouvem na chamada para Lisboa. Os seus corpinhos com penas em grande agitação no telhado. Alguns deles são pombos. Arrulham e raspam nas telhas. Mas ao anoitecer faz-se silêncio. Vamos todos dormir.


¹ “População residente, estimativas a 31 de Dezembro 2019”. Pordata, Base de Dados de Portugal Contemporâneo. Página consultada a 13 setembro 2020,
<https://www.pordata.pt/Municipios/Popula%C3%A7%C3%A3o+residente++estimativas+a+31+de+Dezembro-120>

² “Ribeira Grande – A História” (s.d.). Câmara Municipal da Ribeira Grande. Página consultada a 13 setembro 2020,
<https://www.ribeiragrande.pt/historia/>

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