090 – Roça Agostinho Neto

A entrar na Roça Agostinho Neto. São 9h35. Tenho 24 km na bicicleta.

Cruzei-me com duas conterrâneas gémeas – portuguesas – e fotografei-as. São a Cristina e a Daniela, de 26 anos. Estão a viajar com um guia santomense, numa pickup.

Lá em cima, o antigo hospital da Roça Agostinho Neto. Esta roça é classificada como roça-avenida por se encontrar dividida por esta longa avenida ao centro, ladeada por sanzalas, por armazéns e pelas habitações dos feitores, trabalhadores e encarregados. No lado oposto, está localizado o “pavilhão de festas” e um pequeno jardim botânico, que vou visitar agora.

Fui abordada pelo Júnior, vice-presidente da associação dos guias da Roça Agostinho Neto. Eu pedi-lhe para ir dizendo as coisas devagar, de maneira a que eu conseguisse ir anotando no telemóvel:
Explicou-me que Agostinho Neto foi o primeiro presidente angolano. Antes a roça chamava-se “Rio do Ouro”, porque se encontra no meio de dois riachos, e porque o cacau era considerado ouro. Em 1975 deu-se a independência de São Tomé e Príncipe e também de Angola. O presidente angolano veio cá fazer uma visita. Posteriormente adoeceu e morreu. O Dr. Manuel Pinto da Costa, antigo presidente de São Tomé e Príncipe, deu então o seu nome a esta Roça, em sua homenagem.
A Roça foi fundada em 1865 pelo português Gabriel de Bustamante e explorado posteriormente pelo Marquês de Valle Flôr.
Nessa altura havia separação entre brancos e negros, e aqui era a zona dos portugueses.
Explicou-me também que o hospital foi construído nos anos 1920 e que fechou em 1993. Tinha duzentas camas, duas enfermarias, e era o maior do país.

O Júnior leva-me a visitar o jardim botânico. Descubro finalmente o nome deste fruto – cabaças – o qual já agarrei em Timor (crónica 96 de Timor!!) e que nessa altura não sabia o nome, e ninguém soube dizer-me. São cabaças!! Obrigada, Júnior!

A parte mais divertida desta visita foi mesmo andar pendurada a fazer de Tarzan. Ou melhor, de Jane. O objetivo é ficar em cima daquela coluna com um vaso. O Júnior conseguiu, eu não!!

Terminada a visita do Jardim Botânico (o salão de festas está fechado), despeço-me do guia Júnior e prossigo caminho na bicicleta em direção ao antigo edifício do hospital. Esta roça é tão grande que dá mesmo jeito ter uma bicicleta. No chão vêem-se ainda os antigos carris do que era o mais desenvolvido sistema ferroviário de toda a ilha. Fazia a ligação entre a roça e o porto, em Fernão Dias.

Do lado da avenida estão as sanzalas, onde viviam os escravos. Citando uma dissertação de mestrado em Turismo, da santomense Maria Manuela Trindade, da Universidade do Porto:

Para além da casa dos patrões também existiam nas roças as chamadas sanzalas, residência dos trabalhadores/escravos, para indivíduos solteiros e para famílias. Começaram por ser apenas pequenas casas em madeira, tipo cabanas, e mais tarde evoluíram e passaram a ser conjuntos de habitações, constituídas por quatro, oito ou dez unidades agrupadas. Essas casas eram parecidas com os bairros operários portugueses, funcionavam em filas paralelas e longitudinais ou à volta de um terreiro, com um só piso. Cobertas por telas de duas águas ou cerâmica, as casas normalmente tinham uma janela e uma porta, canteiros, mas não possuíam instalações sanitárias, nem água canalizada e também não tinham cozinha. Os trabalhadores cozinhavam em cozinhas improvisadas ou a céu aberto.¹

O edifício do antigo hospital da Roça Agostinho Neto.

Continuando com o estudo da santomense Maria Manuela Trindade:
O bem-estar e a saúde eram uma das preocupações dos roceiros, devido aos vários tipos de doenças endémicas. A manutenção de uma mão-de-obra saudável exigia que em todas as roças houvessem hospitais ou um posto de saúde. Os hospitais situavam-se dentro do espaço roceiro, mas afastados das sanzalas, de forma a separar os indivíduos doentes dos saudáveis. Eram construídos nos locais mais elevados, arejados, e apoiados em arcos de alvenaria de pedra, por causa das condições de higiene e humidade que a madeira não permitia. Os hospitais, normalmente, eram compostos por um corpo central e três alas, uma feminina, uma masculina e, uma ala superior para os trabalhadores europeus. Os hospitais de maiores dimensões eram compostos por maternidades, laboratórios, farmácias, bloco operatório, cantinas, consultório e casa do médico.¹

Como não dá jeito subir as escadas com a bicicleta, dei a volta pela estrada. Em primeiro lugar, um rapaz, lá em cima, foi fazendo psst psst e mandando beijos. Esta agora… E depois eu quis fotografar a igreja que existe ao lado do hospital, mas este grupo não deixou. Rodearam-me imediatamente – ou melhor, rodearam a bicicleta – e queriam à viva força que eu lhes tirasse uma fotografia. Eu queria fotografar a igreja, sem ninguém, com a bicicleta encostada nela, mas eles não o permitiram, com o estardalhaço. Eu impacientei-me. Tirei-lhes a foto só para me largarem. Aborreci-me, porque queria mesmo fotografar a igreja tal como a tinha acabado de ver, sem ninguém. E fui-me embora para o hospital, desisti de fotografar a igreja.
Mas nós vamos fazer as pazes mais adiante, felizmente. Quando eles se acalmarem e eu também.

Neste hospital existia a maternidade mais utilizada em São Tomé e Príncipe. Milhares de santomenses, durante a década de 1980, nasceram aqui. Hoje está em ruínas e o edifício é habitado por algumas pessoas.

Este é o Luís, nada mais nada menos do que o rapaz do psst psst e dos beijos. Afinal mora aqui e costuma mostrar o hospital aos visitantes. Oferece-se para mostrar-me o edifício.

A roça Agostinho Neto foi uma das maiores e mais importantes produtoras de cacau do arquipélago, chegando a atingir cerca de 12 mil toneladas por ano. Após a independência das ilhas, o partido único socialista MLSTP, comandado pelo presidente Pinto da Costa, adotou medidas para a nacionalização das roças, em 30 de setembro de 1975. Os antigos proprietários das roças abandonaram as plantações, as terras foram distribuídas pelos trabalhadores das roças, em 1990, sob ordens do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. No entanto, os trabalhadores não conseguiram gerir as propriedades, levando ao seu abandono.¹

Divisão usada como cozinha pelos habitantes do edifício.

Divisão usada para os moradores secarem a roupa.

O meu inesperado guia, o Luís dos psst psst, perguntou-me se já experimentei várias comidas de São Tomé e Príncipe, inclusive búzios do mato. Tenho que experimentar. Ele disse que se houvesse mais tempo antes de eu partir me convidaria, com a sua dama, para comer búzios do mato e também calulu.
Calulu vou comer no restaurante da Nelta. Mas ainda tenho que resolver essa dos búzios.
Despedi-me do Luís, agradeci-lhe e prossegui viagem.

Ei-la, finalmente: Igreja da Nossa Senhora do Carmo. O grupo da foto acima desistiu de mim, viu-me tão impaciente e aborrecida que se foi embora.
Mas eles vão abordar-me agora novamente, já com mais calma. E eu também, mais paciente. Perguntei-lhes “o que há ali?” – apontando para a estrada que faz uma curva e desaparece.

Há uma barragem, disseram-me. É do tempo da Roça, mas não está a funcionar. Eles levaram-me a vê-la. O mais novo, vendo-me hesitante em transpôr isto, não foi de meias medidas, agarrou ele próprio na bicicleta e transpôs o canal com ela.

De tshirt azul e vermelha são gémeos!


¹ Trindade, Maria Manuela (2017, setembro) “Um projeto de patrimonialização e desenvolvimento turístico da Roça Agostinho Neto – São Tomé e Príncipe”. Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Turismo, orientada pela Professora Doutora Inês Amorim. Documento consultado a a 14 janeiro 2020,
<https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/108980/2/232046.pdf>

<< >>