085 – Pico Cão Grande & Cobra-Preta
Ei-lo, o imponente Pico Cão Grande. São agora 7h11.
Conforme referi na crónica 71: “O Pico Cão Grande é uma elevação de origem vulcânica, localizada no Parque Natural Obô. Eleva-se acima de 300 m de altura em relação ao solo, sendo que o cume está a 663 m acima do nível do mar.”¹
Pedi ao Adosindo para parar o táxi. Tenho de fazer esta estrada de bicicleta. No regresso terei mais tempo, se calhar farei uma boa parte do percurso na bicicleta, mas não quero arriscar a deixar para depois o que posso fazer agora. Sabe-se lá se estará a chover, ou se eu torço um pé a caminho do Pico.
E vai começar a caminhada até ao Pico Cão Grande. Às 7h44. Este é o meu guia, chama-se Cecílio. Estamos em Vila Irene. Íamos até Monte Mário, mas o motorista Adosindo conduz muito lentamente nas estradas de terra e pedras, atrasámo-nos, pelo que encontrámos o Dionísio e mais dois homens, numa moto, a vir direito a nós. Disseram para darmos meia volta e que nos encontraríamos em Vila Irene. Já não fomos a Monte Mário, portanto.
O guia Cecílio pediu 30€ (750 dobras), antes de arrancarmos. É a primeira vez que me dizem o preço. E por hora e meia de caminhada achei excessivo. No Pico do Príncipe paguei 70€ por uma caminhada de 10h, e mesmo ao topo. Aqui é hora e meia a caminhar a direito. Recusei, disse que assim não estou interessada. Ofereci 250 dobras. Não quis. Ofereci 300. Aceitou, muito reticente. Efetivamente só tenho 510 dobras. Preciso de levantar dinheiro. Eu não estava a fazer bluff, eu iria embora andar de bicicleta se fosse aquele preço. Estou ansiosa por fazer 15 ou 20 km de bicicleta nesta zona, e não chove, o que é uma raridade. Se o guia Cecílio não tivesse aceitado este preço, eu ter-me-ia ido embora – por não ter dinheiro comigo, suficiente, e por querer andar de bicicleta.
Mas enfim, lá nos entendemos e vamos então ao Pico Cão Grande.
O guia Cecílio está de chinelos e vai a esta cabana, dum amigo seu, trocá-los por umas botas de borracha. Eu fico à espera. Li na internet que esta zona tem muitas cobras-pretas. Recordo a crónica 59, onde explico que a temível cobra-preta, venenosa, é uma espécie endémica de São Tomé, ou seja – só existe na ilha de São Tomé e em mais lado nenhum do mundo. E parece que existe aqui – nesta zona do Pico Cão Grande – em abundância. Terei a sorte de ver alguma?
“Estou a esticar a veia” – disse o Cecílio a este trabalhador, referindo-se à caminhada.
Conforme escrevi na crónica 71, aqui fica uma grande plantação de palmeiras. Daqui se faz o óleo de palma e o vinho de palma. Este tipo de palmeiras chama-se dendezeiro ou palmeira-de-óleo-africana (Elaeis guineensis), a qual só se dá bem com chuva e calor. “Esta monocultura apesar de desempenhar um papel importante na economia e na alimentação dos são-tomenses é responsável em parte, pela perda da fertilidade dos solos.”²
O guia Cecílio é conhecido por XL – ligado ao vinho da palma, explica-me. Já tem duas netas. Tem 4 filhas e um filho, que é militar. Nasceu em Monte Mário.
São 8h34 e fizemos 4,4 km. Agora vamos entrar na parte da floresta, no Parque Obô. Até aqui só chegaria uma viatura 4×4. E a partir daqui, só a pé.
E está lá um grupo de estrangeiros, conta-me o Cecílio. Estão lá acampados. São cientistas?, perguntei. Não sabe. Trouxeram tudo de carro até aqui, e foram então carregados com coisas às costas, há 2 ou 3 dias.
“Uma cobra-preta, ainda juvenil”, aponta-me o guia Cecílio, tranquilamente. Como se fosse a coisa mais natural do mundo. Eu nem queria acreditar. Pára tudo. Fotografei-a, aqui nesta clareira à direita.
E à noite, ao rever as fotos, achei que a foto não tinha nada, que me tinha enganado e disparado para o chão sem querer. Apaguei a foto.
Ia morrendo quando dei conta. A minha única cobra-preta, que vi – viva – e eu apaguei a foto por engano.
Ainda tentei recuperar a foto no cartão de memória, instalando um software próprio, já em Lisboa, mas nada feito. Eu não poderia ter tirado mais fotos nenhumas, no resto da viagem, com este cartão de memória, para o software conseguir recuperá-la. Ora ainda tenho 4 dias de viagem pela frente, irei tirar muitas centenas de fotos. Perdi a foto. Que desgosto. A minha cobrazinha preta.
Mas pronto, à falta de melhor, e numa tentativa de consolação de mim própria, perdi a foto mas não perdi a memória nem a experiência. Ali estava ela, a uns 7 ou 8 metros de mim. Quieta. Preta. Com uns 40 cm de comprimento. Uma dentadinha daquilo e vou desta para a melhor. “É tão venenosa que, quando morde um homem, os seus olhos explodirão da cabeça e ele morrerá” – foi a descrição dum explorador português em 1506, conforme contei na crónica 59.
Perguntei ao Cecílio se alguma vez ele foi mordido, ou se sabe de algum caso. Respondeu-me que é muito raro haver ataques da cobra-preta ao homem. Mas conhece um homem que foi mordido numa palmeira, enquanto tratava da extração de vinho. É o único caso que conhece. Porém esse homem foi imediatamente levado ao hospital, sem demoras, e deram-lhe um soro, que lhe permitiu viver. Tem de ser muito rápido. Se porventura não houvesse um carro para levá-lo imediatamente ao hospital, esse homem teria morrido, disse-me.
Vejo esta notícia de Maio de 2019: A Organização Mundial da Saúde (OMS) quer reduzir para metade até 2030 as mortes por mordida de cobra. Estima-se que 5,4 milhões de pessoas por ano são mordidas por cobras, 2,7 milhões são envenenadas, 100.000 morrem e 400.000 ficam desfiguradas ou incapacitadas para a vida. [A estratégia inclui] planos ambiciosos para aumentar as taxas de tratamento e acesso a antivenenos nas regiões afetadas. (…) Acentua também a necessidade de aumentar a conscientização em relação à prevenção, primeiros socorros e onde procurar tratamento adequado (…)”
Adeus cobrazinha juvenil. Ainda é pequenina, ainda está a aprender a dar dentadinhas. Tão mortal que ela é, a viver aqui tão contente e feliz no meio desta floresta. Eu é que estou a mais, não é verdade? A mãe e o pai devem estar aqui algures, também. No Pico do Príncipe a coisa é mais simples: não existem cobras-pretas no Príncipe.
Esta cena já me é familiar. No Pico do Príncipe – igualmente no Parque Natural Obô (o parque tem o mesmo nome nas duas ilhas), também tive de atravessar um riacho destes. Ou rio. Mas dessa vez tive 10h de caminhada extremamente dura, até 947 metros de altitude. Hoje preparei novamente os pensos para cobrir as esfoladelas em cada pé. Já estavam quase curadas, mas creio que hoje vão ressuscitar.
Chegámos! São 9h25 e temos 6,11 km de caminhada. Durou 1h40, portanto. Efetivamente pensei que fosse mais perto. Nunca me disseram quanto tempo durava, em média, na altura em que eu andava a tentar combinar este passeio. O pico vê-se ali tão perto, da estrada. E nunca imaginei que fosse andar outra vez pendurada na floresta, julgava que era algo muito mais simples.
E cá está o grupo de estrangeiros. E pelos vistos estão a filmar algo. Nesta foto vê-se uma das operadoras a pedir-nos silêncio.
Estão a escalar o pico!!! São três mulheres alpinistas norte-americanas! Sasha DiGiulian, Angela Vanwiemeersch e Sav Cummins. Esta última tem fotos detalhadas no seu site, desta expedição a São Tomé e Príncipe. A Angela tem no Instagram.
Entretanto foi publicada esta notícia num jornal santomense:
Sasha DiGiulian, alpinista norte americana de renome internacional, confirmou o feito histórico. «Chegámos ao topo, são 663 metros». Boa parte da escalada ao Cão Grande foi feita debaixo de chuva. As alpinistas disseram que nunca antes tinham estado na selva. O Cão Grande é rodeado pelo obô de São Tomé, o parque natural. «Havia vida selvagem, cobra-preta, foi uma experiência nova… O Cão Grande foi um obstáculo de envergadura mundial», explicou a alpinista Angela Vanwiemeersch.⁴
Quando chegaram ao topo aparentemente não viram nada, pois o pico manteve-se coberto de nuvens, conforme escreveu Angela Vanwiemeersch no seu Instagram:
“Durante toda a nossa ascensão, vimos as nuvens a fluírem. No topo, não havia nada para ver. As nuvens envolveram-nos. Quando finalmente saímos da selva, tivemos a sorte de ver o topo do pico. Mas apenas por um segundo, antes de perder-se novamente no místico.”⁵
¹ “Pico Cão Grande” (s.d.) Página consultada a 7 janeiro 2020,
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Pico_C%C3%A3o_Grande>
² Costa, Erizalva (2014) “A Exploração dos Recursos Naturais e a Preservação Ambiental: O caso de São Tomé e Príncipe”. Dissertação de Mestrado em Economia e Gestão do Ambiente. Faculdade de Economia, Universidade do Porto, p. 35. Documento consultado a 7 janeiro 2020,
<https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/77581/2/33655.pdf>
³ “OMS quer reduzir para metade até 2030 as mortes por mordida de cobra” (2019, 23 Maio). Agência Lusa. Jornal Expresso. Página consultada a 7 janeiro 2020,
<https://expresso.pt/internacional/2019-05-23-OMS-quer-reduzir-para-metade-ate-2030-as-mortes-por-mordida-de-cobra#gs.ddj2mt>
⁴ Veiga, Abel (2019, 29 Agosto) “Alpinistas dos EUA escalaram o pico Cão Grande”. Téla Nón. Página consultada a 7 janeiro 2020,
<https://www.telanon.info/desporto/2019/08/29/29877/alpinistas-dos-eua-escalaram-o-pico-cao-grande/>
⁵ Vanwiemeersch, Angela (2019, 6 outubro) “Nubivagant” Perfil Instagram “angela_vanwiemeersch”. Página consultada a 7 janeiro 2020,
<https://www.instagram.com/p/B3ONfJFDtlw/?utm_source=ig_web_copy_link>