002 – Chegada à Ilha de São Tomé

Desta vez levo a minha bicicleta, vai no avião comigo. Até hoje tenho sempre alugado uma no destino. É uma autêntica peripécia, posso dizê-lo. Foi a primeira vez que o fiz, e se tiver de repetir faço-o, mas é de evitar. Carregada com bagagens e mais uma bicicleta, é obra. Ainda por cima o voo parte às seis da manhã. Significa isto que tive de chegar ao aeroporto às quatro da manhã. Significa isto que tiveram de trazer-me ao aeroporto às três e meia da manhã. Eu acordei às duas e meia da manhã (ainda consegui dormir, sim, talvez duas ou três horas). Ora eu não quis ninguém no aeroporto a estas horas indecentes. Estas viagens são aventuras minhas, são esquemas meus, invenções minhas, é bom que me desenrasque. Queres levar a bicicleta, Rute? Então leva. Mas não vais meter ninguém ao barulho. Sobretudo porque quando aterrar em São Tomé, terei outro avião para a ilha do Príncipe – vou já direta – e aí não terei ninguém para ajudar-me. É bom que aprenda já no aeroporto de Lisboa.

Mas o que vale é que há sempre uma réstia de bondade e benevolência na humanidade, e fui ajudada no aeroporto de Lisboa, às 4 da manhã, por duas pessoas. Uma rapariga de mochila às costas levou-me o carrinho das bagagens enquanto eu levava a bicicleta a andar pelo chão, até às escadas rolantes. Depois um homem foi mais rápido, agarrou na bicicleta no ar e pronto, nem quis levá-la a andar (macho que é macho…). Levei eu as bagagens e ele a bicicleta no ar, com uma só mão, até à fila do check-in. Sendo negro, perguntei-lhe para onde vai (será já um simpático e prestável santomense?), mas não, ele vai para outro destino.

E esqueci-me que ainda é necessário retirar o ar dos pneus, e efetivamente pensei que fosse algo mais simples. Teve de vir um funcionário do check-in ajudar-me. Vieram dois até. Um tentou perceber como funciona – porque a bicicleta tem um sistema qualquer de segurança para não perder ar, além de que tem uma espuma anti-furos dentro; e o seu colega ficou a ajudar-me. Uma fila de gente atrás de mim – foram-se despachando nos outros balcões. Só tenho a agradecer a simpatia e paciência destas pessoas. No stress do seu trabalho, vêm ajudar-me. Podiam simplesmente dizer: desenrasca-te. Mas não, saem do seu lugar e vêm ajudar-me. E ficámos os dois com as mãos sujas de espuma do sistema anti-furos. Dei-lhe um lenço de papel, fiquei eu com outro. O suor já me escorre pelas costas e pernas. Já me é familiar esta sensação de que está um bicharoco a descer pela minha perna. É uma gota de suor.

E tive que aprender a montar e desmontar uma bicicleta, pois claro, porque o avião do Príncipe é pequeno, com vinte ou trinta lugares, com todos os milímetros bem contadinhos, pelo que tive de desmontar a bicicleta no aeroporto de São Tomé, e depois tive que montá-la à chegada, no Príncipe. Tive aulas! É verdade, antes de partir tive aulas com um mecânico de bicicletas. Duas horas de aulas numa oficina, durante as quais montei e desmontei a minha bicicleta umas dez ou quinze vezes. Fiquei toda suja de óleo, mas cumpri a missão. Caramba, quando chegar ao aeroporto de São Tomé, hei-de conseguir também. Levo umas luvas de plástico, e lenços para limpar as mãos. Neste primeiro voo – direto entre Lisboa e a ilha de São Tomé, é mais simples: basta tirar os pedais, o guiador tem de estar rodado a 90 graus e conservado firmemente nesta posição, e os pneus têm de estar vazios. Senão ainda explodem no ar. Contactei a companhia aérea STP Airways com bastante antecedência, cinco meses antes desta viagem, para ter esta informação e ver a viabilidade da coisa.

Depois quando mudar de avião para o Príncipe, é que se complica. Aterro às 11 da manhã em São Tomé, e tenho o voo para o Príncipe às 13H35. Em pleno aeroporto terei que deitar mãos à obra e desmontar os pneus.

E porque decidi levar a minha bicicleta desta vez? Porque fiz pesquisa na internet e não encontrei empresa nenhuma de aluguer de bicicletas em São Tomé e Príncipe. Ambos os hotéis onde vou ficar (nas duas ilhas) dizem-me que me arranjam uma bicicleta. Certo. Mas é de que tamanho? Eu ando em bicicletas do tamanho M ou S, depende. É de boa qualidade? É de homem ou de mulher? As mudanças são boas? A corrente não vai estar sempre a saltar, pois não? E os pneus são anti-furo? Ou vou ficar apeada sozinha no meio da floresta com furos?

Vim a saber mais tarde que há uma loja que aluga bicicletas, algures em São Tomé. No Príncipe, nada. Mas nunca eu poderia partir para uma viagem de bicicleta… sem bicicleta. E se depois a bicicleta de mulher, do meu tamanho, de boa qualidade, já estivesse alugada?

Tudo isto são riscos grandes na aventura a que me proponho, pelo que levo a minha. Fica o assunto resolvido. Tive aulas com um mecânico e paguei uma pipa de massa para transportá-la nos aviões, com certeza muito mais do que pagaria se alugasse uma no destino. Cem euros ida e volta no avião de São Tomé, e 170€ ida e volta no avião do Príncipe, mais pequenito, mais caro. Neste é ao peso: são 5€ por quilo. Foram 270€ ida e volta, portanto. A bicicleta pesa 17 kg com o cadeado, que se vê mal nesta foto, debaixo do ferro. Parece uma bateria, mas não é: é um cadeado que pesa 2 kg, e o qual mostrarei com detalhe mais adiante. A bicicleta está toda artilhada para esta emocionante viagem.

Com as revisões que foi necessário fazer-lhe, antes e depois da viagem (25€ uma revisão antes de partir, 50€ outra depois de chegar, juntamente com uma limpeza profunda, óleo e corrente inclusive) o transporte da bicicleta ficou na módica quantia de 345€. Caríssimo, portanto.

Começam já as surpresas. Conforme referi acima, neste primeiro voo – direto entre Lisboa e a ilha de São Tomé (o voo dura seis horas), é mais simples: basta tirar os pedais, o guiador tem de estar rodado a 90 graus e conservado firmemente nesta posição, e os pneus têm de estar vazios. Paga-se 50€. E a bicicleta tem de passar no tapete dos raios-x das bagagens fora de formato. O que a malta não está à espera é que este tapete seja pequeno demais para uma bicicleta. Que raio de fora de formato será este. Nem cabe uma bicicleta. Resultado: a Segurança que está a controlar o tapete diz-me que não cabe e que tenho de tirar os pneus. Ai.

Mas eu não hesitei. Tive aulas para quê? Vou já pôr em prática os ensinamentos. Tiro a bicicleta de cima do tapete rolante, deito-a no chão, e saco imediatamente das ferramentas na minha bolsa de cintura – e mãos à obra. A Segurança a olhar para mim. Eu de saia. A Rute de sainha, de joelhos no chão em pleno aeroporto de Lisboa, de ferramentas na mão, a desmontar pneus. Foi lindo de se ver. Ainda hoje solto uma gargalhada ao lembrar-me deste inesperado episódio às 4 e pouco da manhã, com uma multidão de gente a circular à minha volta.

A Segurança terá ficado surpreendida com a minha rapidez de decisão, sem hesitação, com a minha total competência na área mecânica (tudo isto é novo para mim, mas ela não sabe), porque saiu do seu lugar e veio ter comigo, agarrou ela própria na bicicleta, levou-a e colocou-a em cima do tapete rolante. Bastou tirar o pneu da frente – “Basta esse, já deve caber” – disse-me ela, e levou a bicicleta.

É importante referir já que a bicicleta está artilhada com um sistema de segurança anti-roubo. Além do cadeado de 2 kg que parece uma bateria, tem também um sistema nas duas rodas e no assento, que impede de roubá-los. Toda a gente sabe que a bicicleta pode ficar presa a uma árvore, mas que as rodas ou o assento podem ser roubados na mesma. Pois na minha não. Tem um sistema de segurança que não permite retirá-los. Tem um segredo: só quando a bicicleta está deitada no chão é que podem ser retirados (rodas e assento). Ora se estiver presa com o cadeado a uma árvore, têm que serrar a árvore ou o cadeado, para conseguir deitá-la no chão e finalmente retirarem as rodas ou o selim. Por isso eu deitei imediatamente a bicicleta no chão do aeroporto para retirar-lhe as rodas. Tenho esta pequena complicação pelo meio, que exige algum jeito e conhecimento.

Leve-leve, Rute. Leve-leve tudo se faz.

Diga-se também que este sistema anti-roubo é mais vocacionado para cidades grandes, como Lisboa, muito mais do que pequenas terras como São Tomé e Príncipe. A própria marca deste sistema anti-roubo tem um gráfico no seu website que explica isto e sugere o cadeado correto para cada ocasião. Este é um cadeado para Lisboa, onde todas as bicicletas desaparecem, ou pelo menos as rodas e assentos desaparecem. Mas eu não ia comprar dois cadeados, sobretudo porque são caros. O que me serve num local, vai servir nos outros todos. Este é de aço puro e levará umas horas até ser serrado. Entretanto chego eu à bicicleta.

O nascer do sol. Aí vou eu, São Tomé e Príncipe! Eu e a minha bicicleta!

O meu lugar é ao centro, mas ao meu lado esquerdo existem 4 lugares livres, pelo que mudei para a janela. (Esta tripulação não me conhece e ao meu desassossego de lugares dentro dum avião…) Virei a conhecer mais tarde um casal português, com uma filha, que comprou o voo um mês antes e já nem havia opção de voo direto nestas datas. Está tudo esgotado há muito tempo. Pelos vistos estas quatro pessoas faltaram. Esse casal português teve de ir noutro voo com escala. Eu comprei este voo cinco meses antes. Só existem voos diretos ao sábado. Os voos diretos são mais caros, mas dou-lhes sempre preferência pelo conforto que trazem. Sobretudo agora com a bicicleta, não daria jeito nenhum andar a mudar de avião.

Entretanto, depois de eu ter comprado os voos, estes foram alterados para as sextas-feiras. Resultado: cheguei um dia antes ao Príncipe. Era suposto chegar sábado, mas como o voo direto foi antecipado para sexta-feira, eu cheguei sexta-feira também ao Príncipe, o que significou ter de pagar uma noite adicional no Príncipe. E perdi uma noite em São Tomé, no último dia da viagem. Eu tinha alojamento pago até sábado, sem direito a reembolso, e afinal regressei a Portugal na sexta-feira antes. Esta alteração de voos implicou um custo de duas noites de alojamento, portanto. Ainda ando a tentar resolver isto com o seguro de viagem.

8H15 pequeno-almoço.

Está um frio dos diabos dentro do avião. Vou para um país tropical tapada com dois cobertores, esta gente é doida. Observo à minha volta e efetivamente as pessoas estão todas tapadas também com os cobertores azuis escuros disponibilizados no avião. Portugueses e santomenses – povos de terras quentes – a congelarem que nem pinguins dentro do avião. Para quê este frio nos aviões, é absurdo.

10H15 almoço. Este é um almoço bem matinal, mas enfim, não sobrou nada no meu tabuleiro, desapareceu tudo. Eu estou sempre pronta para almoçar às dez da manhã. Sobretudo porque acordei às duas e meia da manhã. Para mim já é hora do lanche. E estava outro passageiro a comentar atrás de mim que não lhe perguntaram se queria massa, serviram-lhe carne e pronto. Pelos vistos havia massa e questionaram outros passageiros. A mim também não me perguntaram nada. Mas para mim está ótimo, eu como tudo mesmo.

Seis horas depois… terra à vista!

Aterrámos 4 minutos antes da hora prevista. São 11 da manhã, hora local. Fazem uns deliciosos 28 graus. Pinguins portugueses e santomenses vão finalmente descongelar.
A diferença horária entre Portugal e São Tomé e Príncipe é mínima: uma hora de diferença. Aqui é uma hora a menos. Em Portugal é meio dia, portanto.

Perguntei a este Polícia se podia fotografá-lo. Porquê? – perguntou-me ele a rir-se. Porque acabei de chegar, são as primeiras impressões – respondi eu. Efetivamente também o achei bonito, este primeiro santomense que me aparece à frente, mas nem me atrevi a dizer-lhe isto. Virei a descobrir em breve que são atrevidos, os homens santomenses, é preciso ter cuidado com eles! 🙂

Chegou tudo bem, bagagens e bicicleta com uma roda solta. Fui imediatamente ajudada pelos santomenses que voaram comigo: um homem tirou a bicicleta da passadeira, uma rapariga apanhou a roda, e arrumaram-me tudo perto de mim. Esta hospitalidade e simpatia dos santomenses promete. A minha mala chegou no fim, já quase tudo vazio e deserto. Eu já a ver a coisa mal parada. Bom, é mais importante a bicicleta, essa já a tenho comigo, pensei. Se tiver que usar todos os dias a mesma roupa, paciência. Tudo o que é importante está comigo na mochila de mão, inclusive os calções e as luvas de ciclismo.
Mas não, lá veio a mala também.

Agora tenho que ir tirar a roda de trás, a mais complicada porque tem as mudanças. Tem o sistema de segurança anti-roubo, que me causa um nervoso miúdo, a verdade seja dita, e mais as mudanças. Eu tenho que saber lidar com o sistema de segurança. Nem sempre é fácil, exige alguma precisão. Nas minhas aulas com o mecânico nem sempre consegui. Às vezes é só à terceira ou quarta tentativa. Isto é mesmo à prova de roubo, nem eu própria consigo tirar a roda.

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