104 – Terceira – Chegada à Terra Chã & Almoço
Não estou a fugir de nenhuma vaca, não. Coloquei a máquina fotográfica no modo de auto-disparo para tirar uma selfie, mas ela não estava a funcionar. Eu clicava e nada acontecia. Até que finalmente dei conta que a máquina já estava em contagem decrescente. Tenho 20 segundos para montar a bicicleta e pedalar. Ora já passaram sei lá quantos segundos, e eu sem perceber que a máquina já estava a contar. Então apanhou-me assim, no ar. Só tenho um calcanhar no chão.
Estão a ver como se tira uma selfie? Tem estes imprevistos.
Pronto, aqui está a selfie, no meio das brumas açorianas. Valeu a pena a correria.
E assim me vou divertindo, o que se há de fazer.
Normalmente encaro com muita satisfação a saída das estradas principais (a linha laranja). Vou agora entrar numa estrada secundária – uma linha branca. Mas não posso de forma alguma queixar-me desta estrada, onde andei a correr para trás e para a frente a tirar selfies e não passou um único carro.
Aqui no telemóvel vê-se que é meio dia e faltam 9,4 km para o meu destino. A bateria do telemóvel está a meio e tem um pequeno relâmpago desenhado: significa que estou a carregá-la. O saco plástico ali pendurado no guiador tem um power bank. E vê-se o cabo. É um sistema artesanal de carregamento de telemóveis, podemos chamar-lhe assim. Mas resulta.
Podemos admirar uma magnífica paisagem, a ver-se até quilómetros de distância.
Não vejo nada, pois claro.
Tudo deserto. Porém ao meu lado esquerdo está uma casa onde se ouvem várias vozes femininas. Na porta diz “Unhas de Gel / Maquilhagem”. Há uma janela pequena aberta. Eu bem que chamei. Disse bom dia, e gritei e fiz trinta por uma linha. Mas as meninas lá dentro, a tratarem das unhas de gel, não me ouviram nem por nada. Vou passar nesta povoação sem falar com ninguém? Nem sei que povoação é esta!
Encontrei então este casal, que ao ouvir-me gritar na rua veio espreitar o que se passava. Toda a gente me ouve menos as meninas das unhas de gel, que não se calam um segundo. Vocação é vocação.
E aqui este amigo felpudo, enorme, chamado Nesh, faz um escarcéu dos diabos à minha aproximação. Mas só quer festas e brincadeira. Pôs-se a jeito, com o rabinho nas grades, e enquanto estava distraído eu toquei-lhe na perna com o dedo. Ele virou-se de rompante, muito surpreendido. É da raça Barbado, aqui da ilha Terceira, explicaram-me a Filomena e o António, os seus donos.
De acordo com o Clube Português de Canicultura:
Com o início do povoamento das ilhas açorianas, foi necessário controlar e recolher as várias espécies de gado aqui introduzidas logo após a sua descoberta. Diversos tipos de cães, entre eles alguns utilizados no continente no maneio do gado, terão chegado aos Açores. O “Barbado” provavelmente evoluiu de cães trazidos pelos povoadores a partir do século XV e que eram utilizados na recolha de gado bravo. Não nos devemos também esquecer que ao longo dos séculos seguintes vários povos acompanhados pelos seus cães, em trânsito pelas ilhas, terão influenciado decisivamente o que é hoje o Barbado.¹
Perguntei à Filomena e ao António Mendes que terra é esta. É o Caminho de Cima, responderam-me. E explicaram-me que nem sempre está nublado aqui, às vezes está sol aqui e nublado nos Biscoitos. Perguntaram-me se eu quero comer alguma coisa, e eu disse que se tiverem bananas – algo prático de comer e que alimenta bastante – eu aceito.
Agradeci ao simpático casal, despedimo-nos e prossigo viagem.
A chegar à Terra Chã, o meu segundo – e último – destino de hoje! São 12h57.
“Terra Chã” significa terra baixa e o nome foi-lhe atribuído pelos primeiros povoadores da ilha, que a consideraram baixa quer quanto ao clima, quer em relação ao terreno, que fica numa encosta da serra.²
Dois acontecimentos históricos estão na origem dos nomes de dois locais da freguesia: Lugar das Casas Queimadas e Lugar das Guerrilhas. O primeiro provém do incêndio lançado a uma casa de moradia situada numa quinta no Caminho dos Regatos , então pertencente a André Machado Lemos, que ali vivia com a sua família. Era o ano de 1828. Os miguelistas lutavam contra os constitucionais, apoiantes do Duque de Bragança. Ao dirigir-se para as Doze Ribeiras, um emissário liberal foi atacado por um guerrilheiro que se apoderou da mensagem que aquele levava, vindo a refugiar-se na casa de André Lemos. Sabendo do acontecimento, os anti-miguelistas, de espírito revoltado e sem apurar culpas, incendiaram aquela casa com todo o recheio e os próprios ocupantes. Mas, num rebate de consciência acabaram por salvar a família Machado Lemos. A sua casa ficou então conhecida por “Casa Queimada”, e daí o nome ao lugar.
O segundo local está na origem das guerrilhas que ocorreram na Ilha Terceira, exatamente na Terra Chã, durante a emigração liberal. Foi praticada por miguelistas que semearam a intranquilidade e a perturbação nas fileiras inimigas. Ficaram célebres dois guerrilheiros naturais da Terra Chã, “Boi Negro” e o “Rasgado”. O Dr. Valadão Júnior chamou à Terra Chã na sequência de tais acontecimentos, o “alfobre de guerrilhas”. Por isso, um dos seus lugares tomou o nome de Guerrilhas.³
Um Império do Espírito Santo, construído no século XIX. Estes Impérios são particularmente abundantes na ilha Terceira. (Ver crónica 89 para mais detalhes).
O João Pereira vai começar a pintar o chafariz. Eu perguntei-lhe onde é que existe um restaurante bom e barato, aqui na Terra Chã. Apontou-me um mais à frente.
O João nasceu aqui na ilha Terceira e vive na Terra Chã há 35 anos. Nasceu na Conceição. Após o sismo de 1980 as pessoas que perderam as casas foram alojadas aqui em bairros sociais. Nesse sismo de 1980 o João tinha 14 anos e estava a ver um filme na Fanfarra Operária. Saiu antes de terminar porque já tinha visto o filme, e foi a sua sorte, estar na rua, contou-me.
Sobre este sismo de 1980, foi catastrófico, atingiu uma magnitude de 7,2 na escala de Richter e teve o epicentro a cerca de 50 km de Angra do Heroísmo. Este sismo matou 73 pessoas e causou elevados danos materiais nas ilhas Terceira e de São Jorge, e danos menores na ilha Graciosa. Mais de 15.000 edifícios ficaram total ou parcialmente destruídos. As freguesias mais afetadas foram Doze Ribeiras, Santa Bárbara, Serreta e Cinco Ribeiras, situadas na metade ocidental da ilha Terceira, e a freguesia do Topo, localizada na ponta oriental da ilha de São Jorge, onde atingiu intensidade máxima de VIII na Escala Macrossísmica Europeia (EMS-1998). O sismo de 1980 provocou um tsunami de fraca magnitude, somente detetado instrumentalmente pelos marégrafos de Angra do Heroísmo e da Horta, não provocando quaisquer danos.⁴
Ao João falta-lhe conhecer três ilhas do arquipélago, disse-me, enquanto conversávamos um pouco: Flores, Corvo e Santa Maria. Foi a todas em passeio, não em trabalho.
E o João também sugeriu que eu levasse uma pedra de lava de recordação, tal como o taxista Manuel da ilha de São Jorge me disse para eu fazer. Já tenho excesso de peso na bagagem – respondi eu – e uma parte é de queijos!!
Igreja Paroquial de Nossa Senhora de Belém, do século XIX.
A minha bicicleta está ali à frente. É ali o restaurante onde vou almoçar.
O curioso nesta lista é que não diz “Pão com manteiga”, diz “Papo seco com manteiga”. Papo seco com presunto! Papo seco com bolo de torresmo!
Eu escolhi um prato típico da ilha Terceira, e que efetivamente já tinha comido há sete meses atrás, em dezembro, quando cá estive na ilha: alcatra. A alcatra é geralmente de carne de vaca, mas também de peixe. O prato é típico por ser cozinhado lentamente num tacho de barro, para apurar e espessar o molho composto por toucinho, cebola, alho, louro, pimenta e vinho, entre outros ingredientes. Acompanha geralmente com pão ou massa sovada. Este método de confeção é igualmente aplicado a outras iguarias: galinha, feijão, coelho, polvo e favas.⁵
Esta refeição custou 8€.
Eu estava a mastigar quando a senhora que atende veio tirar-me esta foto, a meu pedido. Ela ainda disse que esperava, mas eu disse que não valia a pena. Pois fiquei com bochechas.
Perguntei por sobremesas, mas só têm gelado.
¹ “Barbado da Terceira” (s.d.) Clube Português de Canicultura. Página consultada a 11 fevereiro 2021,
<https://www.cpc.pt/racas/racas-portuguesas/barbado-terceira/>
² “Terra Chã”. Junta de Freguesia da Terra Chã. Roteiro cultural, 1999. Página consultada a 11 fevereiro 2021,
<http://www.juntafterracha.com/>
³ “Dois acontecimentos históricos”, Junta de Freguesia da Terra Chã. Roteiro cultural, 1999. Página consultada a 11 fevereiro 2021,
<http://www.juntafterracha.com/index.php?abrir=1.1.1>
⁴ “Sismo de 1 de janeiro de 1980 foi há 40 anos” (2020, 1 janeiro). IVAR – Instituto de Investigação em Vulcanologia e Avaliação de Riscos. Página consultada a 11 fevereiro 2021,
<http://www.ivar.azores.gov.pt/noticias/Paginas/20200101-40-anos-sismo-1980.aspx>
⁵ “Gastronomia” (s.d.) Visit Azores, Sítio Oficial Turismo dos Açores. Página consultada a 11 fevereiro 2021,
<https://www.visitazores.com/pt/the-azores/the-9-islands/terceira/food-and-drinks>