063 – 14º Dia, Ataúro como Local de Degredo

Choveu torrencialmente durante a noite. Às 4 da manhã alguém deixou cair algo de lata e automaticamente os galos começaram todos a cantar. Mas é um grande cantorio. E os galos lá ao longe respondem aos desta ponta. Há aqui uma rivalidade de cantorio entre eles, apercebo-me.
Eu dormi com a rede anti-mosquitos posta. Tive uma noite descansada. O gerador incomodou-me um bocado, trabalha toda a noite, só pára entre o meio dia e as seis da tarde. Se desligarem o gerador, não há luz durante a noite. E durante aquele intervalo de horas, de dia, não há eletricidade.
Cumpri o meu ritual habitual de protetor solar e repelente de insetos, e fui tomar o pequeno almoço, marcado para as 7.30h. Tarde, para meu gosto. E às 7.55h ainda não tinha chegado ninguém. Esta malta não liga a horários. O Natalino terá saído às 7, de bicicleta, para ir comprar os bilhetes do barco, de regresso a Díli. Partimos ao meio-dia.

O meu quarto é a casinha do meio, do lado direito.

Este nem se digna a abrir os olhos, comigo ali ao pé a tirar-lhe uma fotografia. Está bem tratadinho e é seguro de si. Não sente medo nem comigo a rondá-lo. É um dos cães da guesthouse. Dá gosto ver cães assim, livres, gordos e seguros de si, a ignorarem-me redondamente.

Matabicho à vista!!! (Entenda-se: “pequeno-almoço”! Não é nenhum bicho, é mesmo o pequeno almoço que finalmente está a ser tratado).

Manteiga é que não há em Timor. Ainda só comi manteiga verdadeira no hotel em Los Palos. Pãozinho quente com manteiga derretida… Ai ai. Aqui pedi manteiga e trouxeram-me esta margarina culinária. Pronto, a embalagem diz em português, inglês e francês “Margarina para Propósitos Múltiplos” – Product of Indonesia.

Ann-Kathrin Zieger, da Alemanha, uma artista residente que está a trabalhar n”As Bonecas de Ataúro”. Mais à frente irei visitar o atelier, mostrarei algumas fotos, e falarei deste projeto. A Ann – que assina como “Ann Cut Design” – recebeu-nos, a mim e ao Natalino, ontem à chegada. Eu sem conhecer nada, perfeitamente estranha, a tentar perceber o que se faz por aqui, e a Ann já mais que batida, há quase dois meses a viver aqui, a dar-me dicas sobre o que fazer. A Ann está a ensinar as mulheres locais a coser e a fazer estampagem de tecidos. Era suposto trabalhar apenas até às 14 horas, contou-me, mas tem trabalhado muito mais. Todo o seu trabalho é pago, e tem alojamento e comida incluída. Quando se for embora vai trabalhar para a Alemanha, teve uma boa oportunidade de emprego, contou. Vai ensinar crianças na área das artes.

As Bonecas de Ataúro, projeto sobre o qual falarei mais à frente quando visitar o atelier.

Entretanto o Natalino chegou. Disse que não conseguiu comprar os bilhetes, que a bilheteira estava fechada e só abre às nove. Pelo que voltaremos lá às 9h30, eu desta vez irei consigo.
A Ann entretanto contou-nos uma história engraçada, a propósito já nem sei do quê: aborreceu-se com os militares que têm o quartel aqui em frente da pousada, os quais passam um mês em Ataúro, em treinos e formação. Eles punham música em altos berros às quatro da manhã. Eles gozaram e responderam-lhe “Vai dormir, malai!”. (Recordo que “malai” significa “estrangeira” em tétum). Ora as mulheres locais revoltaram-se com isto e foram lá todas chatear-se com eles. Que elas próprias precisam de dormir, e que a Ann está a trabalhar com elas, a contribuir para este projeto de Ataúro, das Bonecas. As mulheres de Ataúro saem prejudicadas se o projeto não funcionar.
E nunca mais houve barulho.

Cá está o cão castanho que estou empenhada em engordar.
O Natalino quase que não come nada. Comeu apenas um pão e metade da omelete. Comi metade do pão dele e dei o resto ao cão – meia omelete e meio pão, portanto. E eu teria comido tudo se não houvesse um cão para dividir…

Eu arranco para um passeio matinal de bicicleta, e aproveito para ir com o Natalino até ao porto, pois ele quer comprar os bilhetes do barco. Também vai de bicicleta.

Homenagem aos Desterrados de Ataúro, 1980-1987, dedicado à Resistência Timorense. Ataúro efetivamente tem um passado negro, dado ter sido local de deportações  durante a ocupação indonésia. A ilha do Ataúro – dada a pequenez da sua superfície e a carência de meios de comunicação, é um campo de concentração natural. O mar substitui o arame farpado e a espingarda vigilante das sentinelas.¹

Deixo uma carta de 1984 de presos políticos de Ataúro dirigida ao Bispo D. Ximenes Belo, por altura da sua visita a Ataúro. A carta está escrita em português. Relembro que durante a ocupação indonésia, o uso do português foi proibido, impondo-se a língua indonésia. O português era usado como língua de resistência, pela Fretilin e pelas outras organizações da resistência nas suas comunicações internas e no contacto com o exterior. Este uso do português, muito mais do que o do tétum, conferiu-lhe uma enorme carga simbólica.²

A carta indica:
“Agradecemos à Igreja Católica em Timor, que através da sua representação em Ataúro, nos tem diminuído os nossos problemas pelas ajudas humanitárias, dentro das suas possibilidades, é claro, desde que pisámos esta terra em 1980”. (…) “[Agradecemos também à] Cruz Vermelha Internacional que veio realmente suprir a fome e a doença que causaram em nós muitas mortes antes da sua chegada, neste campo de concentração dos presos políticos”.

Nesta carta os presos referem que souberam de outros prisioneiros que foram mandados embora de Ataúro, no entanto não chegaram a casa. Terão sido transferidos para outros locais ou prisões. Esses prisioneiros não puderam levar nada consigo, “aquilo que com muito sacrifício se conseguiu adquirir aqui, como porcos, cabritos, galinhas, camas, cadeiras, milho, etc. (…) cada pessoa só tinha direito de levar consigo 2 ou 3 casais de galinhas”. Acrescentam que tendo deixado “pais, mulheres e filhos por lá, vivendo em miséria e desprezados não só pelo inimigo direto, mas também pelos timorenses”, deixam o pedido ao Bispo para que interceda junto das autoridades indonésias para que os deixem voltar, mas não para serem enviados para outros locais. Para isso, mais vale ficarem em Ataúro.
Finalmente, no sexto ponto, reiteram o pedido sobre os rapazes estudantes que já completaram o curso em Ataúro, para que possam continuar os estudos em Díli.

Deixo também um vídeo da RTP, com uma reportagem feita em 1983 pelo jornalista Rui Araújo, precisamente aqui, em Ataúro, e que portanto é outra relíquia:
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/timor-timur-parte-i/

Citando o site da RTP:
“Em destaque a situação na ilha de Ataúro, onde se encontram presos timorenses familiares de guerrilheiros do movimento de luta pela independência FRETILIN, o controlo militar exercido pela Indonésia na ilha, a precariedade na agricultura que se traduz na falta de alimentação para a população, a presença da língua portuguesa e da religião católica no território, e as conversações internacionais em curso para restabelecer a paz”.

Voltarei a este tema – os deportados de Ataúro – mais à frente, quando chegar a Díli e visitar a antiga prisão.

Um parque de campismo para os turistas.

Chegámos ao porto, onde o barco atracará novamente. Não há bilheteira nenhuma, quando o barco chegar é que venderão os bilhetes, claro. E afinal parece que o barco sai às 9 de Díli, pelo que nós só partiremos de Ataúro às duas da tarde. Relembro que os barcos e os horários não são muito certos em Timor. Ou nada certos.


¹ Barreto, Madalena Salvação (2014, Agosto) “Deportação, colonialismo e interações culturais em Timor: o caso dos deportados nas décadas de 20 e 30 do século XX”. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL). In Atas da 1ª Conferência Internacional “A Produção do conhecimento Científico em Timor-Leste‟, Julho 2015. Coordenação de Francisco Miguel Martins e Vicente Paulino. Edição: Unidade de Produção e Disseminação do Conhecimento do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa da UNTL. Página consultada a 3 Dezembro 2018,
<http://repositorio.untl.edu.tl/handle/123456789/180>

² “Línguas de Timor-Leste – Português” (s.d.). Wikipedia. Página consultada a 3 Dezembro 2018,
<https://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADnguas_de_Timor-Leste#Portugu%C3%AAs>

³ Carta dos Presos Políticos de Ataúro a D. Ximenes Belo (1984, 14 Dezembro). Cidac, Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral. Documento consultado a 3 Dezembro 2018,
<http://xdata.bookmarc.pt/cidac/tl/TL4941.pdf>

⁴ Araújo, Rui e Feyo, José Manuel Barata (1983, 22 Março) “Timor-Timur – Parte I” [Reportagem de televisão]. A Grande Reportagem. RTP. Vídeo consultado a 3 Dezembro 2018,
<https://arquivos.rtp.pt/conteudos/timor-timur-parte-i/>

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