046 – 11º Dia, de Bicicleta até ao Centro de Viqueque

Deixei o despertador para as 5.30h, e acordei cinco minutos antes. Faço progressos, portanto. Já não acordei às 4 e meia. Cinco e meia já é melhorzito. O pequeno almoço está marcado para as 6.30h. A senhora queria que fosse às 7, e eu então disse ao Valério que comeria cereais com leite, no meu quarto. Eu tenho cereais de chocolate comigo, que trouxe de Portugal, e ainda nem os estreei. Até está a apetecer-me. Mas o Valério não quis que eu comesse cereais. Em Timor não deve ser costume comer cereais ao pequeno almoço; então o Valério deve pensar que os cereais não prestam. Os seus quatro filhos comem todos um pequeno almoço bem tradicional, com arroz e pão, com certeza. E bem que se esforça para que eu vá comendo, já ontem ao jantar foi a mesma coisa, pelo que pediu à senhora um esforço adicional em servir o pequeno almoço às 6 e meia. Ora a senhora chegou às 6.35h e então é que começou a prepará-lo. Vamos com calma…

Antes do pequeno almoço já eu e o Valério estamos a carregar a pickup com as bagagens.

São 6.50h quando nos sentamos à mesa. No prato ao centro estão dois ovos cozidos. Eu pedi para serem sempre cozidos, em vez de fritos. A juntar a isto ainda comi duas ou três deliciosas bananas vermelhas, e a manteiga de amendoim. Galos, pássaros e tokés, todos cantam alegremente.

Leite 100% australiano. Já os pacotes de leite com morango ou com chocolate, que bebo durante os passeios na bicicleta, são da Indonésia. Perguntei porque ando eu a beber leite indonésio e australiano. Porque não bebo leite timorense? E responderam-me posteriormente: porque todo o gado bovino sofre de brucelose e só matando todo o gado em toda a ilha de Timor se poderá eliminar esta doença contagiosa. Para o humano não há problema com a carne, desde que bem cozida, mas com o leite sim.
Vejo que o tratamento prolongado com antibióticos é geralmente eficaz, como prevenção da doença. As medidas de controle incluem portanto a vacinação de animais e o abate de animais infetados, bem como a pasteurização do leite e produtos láteos.¹
Temos aqui um ponto fulcral a tratar, portanto. Mais tarde ou mais cedo isto terá de ser controlado em Timor. A brucelose é uma doença que existe em todo o mundo, quer em países ricos, quer em países em desenvolvimento, com especial incidência nestes devido aos baixos meios económicos para lutar contra ela. A brucelose causa perdas devastadoras para a pecuária e para os pequenos proprietários de gado, além de causarem profundo sofrimento emocional nos agricultores cujos rebanhos são afetados. Os animais infetados exibem sinais clínicos de redução da fertilidade, aborto, baixo ganho de peso, perda de força, e um substancial declínio na produção de leite. Os equívocos sociais profundamente arraigados e o medo da intervenção do governo contribuem para que esta doença continue sem controle na maior parte do mundo em desenvolvimento, limitando assim o crescimento económico e inibindo o acesso aos mercados internacionais.²
Vendo tantos búfalos, questionei também se não se produz leite de búfala em Timor. Indicaram-me que as búfalas não estão contaminadas, mas não se consegue produção de leite porque elas vivem à solta, e adicionalmente os donos têm poucas, o que dificulta a recolha para produção e comercialização de leite. Houve inclusivamente há uns anos um programa patrocinado pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) que não resultou por estas razões, e quiçá outras mais que desconhecemos.

Mesmo à saída da pousada está esta placa. O Valério já vai em direção a Viqueque, e agora eu quero ir em sentido oposto visitar este abrigo. Liguei-lhe, para esperar um pouco. E o Valério acabou por regressar, ainda estava perto.

Em toda a história de Timor, a ocupação indonésia durou apenas 24 anos. Vinte e quatro anos aparentemente não é nada, na história de uma nação. Mas foram 24 anos que valeram por muitíssimos mais, de certeza. Nem nós, no conforto das nossas cadeiras e sofás, a ler estas crónicas, imaginamos. Eu olho as montanhas, e olho o mato, e lembro-me. Os guerrilheiros andaram por aqui. E sinto tristeza ao imaginar o sofrimento desse tempo. A aventura e o sofrimento dos guerrilheiros, emboscados no mato. Onde eu ando a passear tão alegremente, tão descontraidamente – neste chão que piso agora, já pisaram eles também. Cada milímetro que eu piso, de passagem, foi pisado milhares de vezes por eles. Histórias horrendas poderiam ser contadas em cada terra que passo. E virei a ter consciência de algumas delas no Museu da Resistência, em Díli, bem como na antiga Prisão de Díli. Onde eu pedalo tão alegremente agora, aconteceram coisas horrentes no passado recente.

Este lago existe mesmo ao lado da pousada onde pernoitei. Antes de partirmos de vez, decidi ir espreitá-lo, e ainda tive de abrir uma ou duas cancelas para lá chegar.

Agora sim, partimos.

Foram 7 km em louca descida, e o GPS indica-me que fiz 37 km/hora de velocidade máxima. Irei chegar aos 50 noutro dia, mas hoje mesmo assim fui ultrapassando tudo o que me apareceu pela frente – carros e motas – na estrada de pedras, aos ziguezagues por ali abaixo. O Valério tem de vir mais devagar atrás, não há suspensões que aguentem. E depois faço grandes travagens, em grande estilo, com o pneu de trás a derrapar para o lado e a deitar terra e pedras por todo o lado. Tenho de fazer boa figura perante os timorenses. Julgavam-me uma menina bem comportada, a brincar com as bonecas? Esqueçam lá isso. Agora só se brincar com bonecos e bicicletas. Ainda preguei alguns sustos a algumas pessoas, com estas travagens barulhentas e cheias de pó. As pessoas pensam que é uma queda, com os pneus a raspar no chão. Viram-se para trás, assustadas. E  eu rio-me, já parada na bicicleta, em pé, com o pó a esvoaçar atrás de mim. Esta bicicleta é uma máquina, diga-se de passagem, esta menina nasceu para voar.

Os carros passam à volta, na terra, em baixo. Ontem o Valério fez este percurso e passou à volta, mas deixou-me instruções de que eu poderia passar na ponte, com a bicicleta.


¹ “Facts about brucellosis” (s.d.). European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC). Página consultada a 8 Novembro 2018,
<https://ecdc.europa.eu/en/brucellosis/facts>

² K. A. Franc, R. C. Krecek, B. N. Häsler, e A. M. Arenas (2018, 11 Janeiro) “Brucellosis remains a neglected disease in the developing world: a call for interdisciplinary action”. National Center for Biotechnology Information (NCBI), PubMed Central (PMC). Página consultada a 8 Novembro 2018,
<https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5765637/>

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