039 – Uma Pausa Muito Verde & Ajuda Externa (cont.)

Continuando a crónica anterior, sobre a Ajuda Externa.
Deixo duas análises: a primeira retirada do livro “Timor-Leste por trás do palco: cooperação internacional e a dialética da formação do Estado”; a segunda retirada do La’o Hamutuk (e que efetivamente também consta num dos capítulos do livro anterior). Ambos os links estão indicados nas fontes abaixo.

“Em nenhum caso até hoje, a assistência internacional foi tão intensamente presente na construção das estruturas básicas do Estado quanto em Timor-Leste, no processo que se iniciou em 1999 e, ao que parece, deverá perdurar por mais alguns anos. Na recente experiência timorense, a chamada Assistência para o Desenvolvimento Internacional (AID) foi responsável pelo financiamento da reconstrução de infraestruturas física e administrativa do país, destruídas pelos conflitos que se seguiram ao referendo de agosto de 1999 e pela saída em massa dos funcionários públicos indonésios. Quando o governo independente assumiu o país, em 2002, após mais de dois anos de administração transitória das Nações Unidas, cerca de 80% do orçamento de Estado vinha das doações internacionais intermediadas pela ONU.

Em 1975, depois de aproximadamente 450 anos de uma ausente presença colonial portuguesa, o território hoje conhecido como Timor-Leste é invadido por forças militares que o anexam à República Indonésia. A despeito de uma intensa resistência interna (formada por três frentes: uma guerrilha armada; uma rede civil clandestina de apoio à guerrilha; e uma frente diplomática de timorenses exilados na Austrália, em Portugal e Moçambique), a Indonésia mantém o controle sobre o que dizia ser a sua 27ª província até ao final dos anos 1990. Em 1999, as Nações Unidas negoceiam com o governo indonésio a realização de uma consulta popular, cujo resultado, se contrário à anexação, obrigaria a Indonésia a retirar-se do território. É o que acontece em agosto daquele ano. A retirada, contudo, não é pacífica e resulta em grandes massacres e destruição física. A ONU apoia o envio de uma coalisão militar internacional de imposição de paz (INTERFET), que foi seguida por dois anos de uma missão de administração transitória (UNTAET), organizada pelas Nações Unidas para reconstruir o país, montar as estruturas básicas de um Estado independente, disponibilizar ajuda humanitária e promover a escolha do seu primeiro governo autónomo, a ser empossado a 20 de maio de 2002.

Montar um Estado a partir do que se considerava um marco zero foi a tarefa que deu asas à mente e ao espírito de milhares de técnicos estrangeiros contratados por um cipoal de organismos internacionais – agências do sistema ONU, a própria ONU, organizações não-governamentais internacionais, além de projetos do Banco Mundial e do Banco de Desenvolvimento Asiático, Missões Religiosas, entre outros. No auge da Administração Transitória, mais de 11 mil funcionários internacionais circulavam pelo território timorense, movimentando uma economia paralela muitas vezes superior à própria economia do futuro país independente.

Na formação do Poder Judiciário, por exemplo, era preciso levar em conta toda uma geração de advogados timorenses formada nas universidades indonésias. Neste caso, enquanto o futuro país não promulgasse as suas próprias leis, a Administração Transitória decidiu manter operante o sistema legal vigente até 1999. O imponderável, aqui, viria um ano depois da independência, em 2003. O país contava então com quatro tribunais instalados ao longo do território, operados por juízes, promotores e defensores timorenses formados na Indonésia que nem sequer falavam português. Assumindo a posição máxima do Sistema Judiciário, como Presidente do Tribunal de Recurso, estava, contudo, um timorense de outra cepa – um integrante da diáspora timorense em Portugal, que fizera carreira como respeitado magistrado em terras lusitanas. Assessorado por um cooperante português, o presidente do Tribunal de Recurso decide, no julgamento de um caso específico, que o sistema legal vigente até 1999 não poderia ser o indonésio, uma vez que a ocupação indonésia não fora reconhecida internacionalmente. Propunha-se, do dia para a noite, que o sistema legal vigente passasse a ser o português, para desespero da quase totalidade dos operadores desse sistema.

A escolha dos modelos para a formação de instituições basilares do Estado era, aliás, frequentemente condicionada pela nacionalidade dos cooperantes. Assim, enquanto a maioria dos assessores internacionais atuando no Ministério do Plano e Finanças era oriunda de países da Commonwealth, os modelos de elaboração e gestão orçamentária seguiam padrões anglo-saxónicos. Por outro lado, o predomínio de assessores portugueses e de países da CPLP no Ministério da Educação produzia um sistema educacional latinizado. A distribuição das nacionalidades dos assessores em diferentes setores correspondia às prioridades de cada país doador e ao volume de recursos doados, o que criava outra das consequências imponderáveis: se um país doava 90% dos recursos para um setor, julgava-se no direito de indicar igual proporção de assessores da sua nacionalidade; como grande parte do recurso doado destinava-se ao pagamento de assessores, um montante significativo dos recursos não ficava em Timor-Leste, mas voltava para a economia do país doador, fenómeno endémico em vários países dependentes técnica ou financeiramente da cooperação internacional.

O padrão salarial da cooperação, a propósito, era frequentemente causador de mal-estar e ressentimento entre os timorenses. Obrigada a pagar aos seus contratados valores definidos internacionalmente, a cooperação criava situações nas quais um funcionário do governo local ganhava 80 dólares para desempenhar uma determinada função, ao passo que o funcionário internacional incumbido de estar ao seu lado recebia em média oito mil dólares.”¹⁶

Passemos agora à análise do La’o Hamutuk.
Em primeiro lugar comecemos por apresentar este think-tank timorense, que já citei várias vezes na crónica anterior. Quem é o La’o Hamutuk? Ainda não existe uma página na Wikipedia dedicada à apresentação do La’o Hamutuk. Na sua página apresentam-se como “Instituto de Timor-Leste para Monitorização e Análise do Desenvolvimento”.  O La’o Hamutuk (“Caminhar Juntos” em tétum) visa monitorizar e analisar as principais instituições internacionais presentes em Timor-Leste, as quais trabalham na reconstrução e desenvolvimento do país. Segundo a sua página, o La’o Hamutuk acredita que o povo de Timor-Leste deve ser o último decisor no processo de reconstrução e desenvolvimento, e que este processo deve ser democrático e transparente. Os timorenses do La’o Hamutuk, bem como o pessoal internacional que ali trabalha, têm responsabilidades iguais e recebem salários e benefícios iguais. Finalmente, o La’o Hamutuk é um centro de recursos, fornecendo literatura sobre modelos de desenvolvimento, experiências e práticas, bem como facilitando ligações de solidariedade entre grupos timorenses e grupos no estrangeiro com o objetivo de criar modelos de desenvolvimento alternativos¹⁷.

Seguem alguns extratos:
“A Administração Pública, por seu turno, é um problema muito complexo da fase de transição até agora. O problema não é apenas sobre como criar instituições estatais, mas também sobre recursos humanos, a estrutura legal de cada instituição e o comportamento humano. A complexidade dos problemas resulta do legado de séculos de colonização e décadas de ocupação, o que influenciou a mentalidade e comportamento dos timorenses. Durante a ocupação indonésia, muitos timorenses eram funcionários públicos, mas as suas posições não eram de decisores devido à centralização do poder em Jacarta. Durante a ocupação, foi considerado patriótico deixar de fazer o seu próprio trabalho, e em vez disso agarrar no dinheiro da Indonésia e usá-lo para apoiar a resistência. O sistema indonésio foi impulsionado pela corrupção, e a burocracia portuguesa é mundialmente famosa pela sua ineficiência. Modelos pouco bons de onde se aprender. Isto piorou com a violência em 1999, quando mais de 75% das infraestruturas públicas foram destruídas e mais de 7.000 funcionários públicos fugiram para a Indonésia.

Teoricamente, os doadores são motivados por razões humanitárias para dar assistência a Timor-Leste, porque Timor-Leste é o país mais pobre da Ásia. Mas, na realidade, a ajuda bilateral tem sido usada como uma ferramenta para promover os interesses dos doadores, tal como estabilidade regional e também para promover o dinamismo de mercados, apoiar as economias domésticas dos doadores, promover a sua cultura e criar condições às quais o governo timorense deve obedecer. No final, isto é o que chamamos de “ajuda condicionada”.

Por exemplo, a ajuda da Austrália a Timor-Leste foi vista como uma forma de fortalecer a posição da Austrália nas negociações sobre o petróleo no Mar de Timor. A ajuda australiana a algumas ONGs locais foi criticada porque a Austrália usa a ajuda para pressionar a sociedade civil de Timor-Leste para que não protestasse contra a ocupação australiana do Mar de Timor. Embora a Austrália seja um dos cinco maiores doadores para Timor-Leste, o dinheiro total doado pelo governo australiano é menor do que o da Austrália retirou dos campos petrolíferos do Mar de Timor que pertencem a Timor-Leste ao abrigo do direito internacional.

Portugal é outro dos cinco maiores doadores. Como antigo governante colonial, Portugal deveria ter a responsabilidade de reconstruir Timor-Leste, mas a sua presença é retratada como generosidade. Portugal deixou Timor-Leste em 1975 sem cumprir a sua responsabilidade de concluir o processo de autodeterminação. A educação tem sido o principal setor de apoio de Portugal. Mas o interesse de Portugal é promover a língua portuguesa em Timor-Leste, através do sistema educativo. Portugal exportou os seus professores para Timor-Leste primeiro para formar os estudantes timorenses, mas quando isso não funcionou bem, foram transferidos para formar os professores timorenses.

As mesmas coisas são feitas pelo governo brasileiro, juntamente com Portugal. A presença do Brasil é feita através da Agência de Cooperação Brasileira; os objetivos do Brasil são a promoção da língua portuguesa em Timor-Leste e alguma formação profissional.

A ajuda não vem apenas em dinheiro, mas chega com agências governamentais e funcionários internacionais cuja forma de pensar está muito longe da dos timorenses. Na realidade, mesmo que o governo de Timor-Leste assine contratos, as agências governamentais dos doadores têm mais poder para controlar o dinheiro do que o governo de Timor-Leste. Em alguns projetos bilaterais, o governo não tem permissão para tomar decisões e está limitado a funções cerimoniais.

As agências governamentais doadoras não têm obrigação legal de prestar contas e de serem transparentes para com a população local. É por isso que não é razoável esperar que as suas ações beneficiem a população local, a menos que isso também beneficie os interesses do doador. O que aconteceu foi que o dinheiro marginalizou o papel dos timorenses na construção da nação, fazendo com que algumas pessoas perdessem o senso de nacionalismo que era muito alto durante a resistência.
Assim, a assistência internacional a Timor-Leste não tem a ver com cooperação e nem apenas com cooptação, mas também com negócios. Através dessa ajuda, Timor-Leste foi cooptado a adotar padrões e ideologias globais estabelecidos pelos países ricos e a negligenciar a sua realidade e valores locais. Mas também é uma questão comercial, porque o dinheiro que vem para Timor, vem com pessoal internacional, empresários, equipamento importado, e a maior parte do dinheiro acaba por regressar aos países doadores. Embora a comunidade internacional tenha gasto quatro mil milhões de dólares em Timor-Leste, o dinheiro teve um efeito muito pequeno na economia local. A maior parte do dinheiro foi para pagar funcionários internacionais e comprar equipamentos de países doadores. E o desenvolvimento da economia local continua baixo, com alto desemprego e outros problemas sociais.”²

Resumindo e concluindo.
Dezanove anos depois da dolorosa libertação da Indonésia e consequente independência, eis que eu faço umas centenas de quilómetros de bicicleta por todos os cantos da ilha. E vejo um país pobre, sim. Mas um país a funcionar. Criado a partir da destruição quase total. Criado a partir do nada, praticamente. Tem muitos contras, a ajuda internacional? Sim, tem. Mas há alguém, ou alguma coisa, perfeitos? Também não é preciso morder a mão que nos alimenta. Se calhar dar umas palmadas, orientar no sentido correto, tentar melhorar o sentido das coisas. Ler a literatura disponível sobre estes anos, sobre tudo o que foi feito, dá uma noção de que tanta coisa ficou por fazer, ou tanta coisa não foi acompanhada devidamente. Mas o país está em pé e as infraestruturas básicas a funcionar.
Ao longo da história, Timor-Leste foi lutando sucessivamente contra sucessivos ocupantes – a aliteração é propositada – Primeiro foi o colonialismo português (as lutas e revoltas contra a colonização serão abordadas em breve, nestas crónicas), depois foi a ocupação japonesa (outro tema que também será abordado, vamos com calma) e finalmente a ocupação da Indonésia, mais recente, e a qual abordei resumidamente na crónica 14. É um pouco difícil ter um desenvolvimento normal nestas circunstâncias. Vamos ver se Timor-Leste consegue agora respirar fundo e seguir a sua vida em paz e sossego. Vamos ver se internamente também não há problemas. Já houve aí um susto recente, em 2006, com uma crise de violência que revelou divergências culturais e étnicas entre a população. A idade média da população, conforme contei na crónica 14, é hoje de 17,4 anos. Daqui a uns anos Timor poderá estar muito diferente, com esta juventude a frequentar as universidades, a aprender línguas, a tornar-se adulta e a assumir as rédeas.
Entretanto, aqui estou a eu, a comer e a beber, a divertir-me e a passear, em liberdade. Tenho eletricidade. Tenho um cartão timorense com internet. Tenho alojamentos onde ficar hospedada, com gente aí a trabalhar. Água a correr das torneiras. Vejo escolas e hospitais. Estradas é que ainda está complicado, porém há obras a fazerem-se já em muitas zonas, e tenho mostrado com frequência as máquinas a trabalharem. Sejamos positivos. Reparem que o turismo é a última coisa a desenvolver num país. Se já há turismo, não estamos mal. Em apenas dezanove anos há normalidade, portanto. Pobreza também, sim – e esta é a próxima etapa a resolver.

O transporte público tem de ser feito muitas vezes em camiões. Um autocarro não aguenta estas estradas.

Por momentos ainda pensei que o Valério estava a rezar em direção a Meca. Mas não. O Valério riu-se quando lhe sugeri isto. O Valério faz inclusivamente criação de porcos. Aparentemente está a acender um cigarro.


¹⁶ Simião, Daniel Schroeter, da Silva, Kelly Cristiane et al. (2007) “Timor-Leste por trás do palco: cooperação internacional e a dialética da formação do Estado”. Prólogo. Belo Horizonte, Editora UFMG. Livro consultado a 29 Outubro 2018,
<https://books.google.pt/books?id=lFxlCcjIaNIC&printsec=frontcover&dq=v%C3%A1rios+autores+google+book+timor&hl=pt-PT&sa=X&ved=0ahUKEwjmrMW3p73dAhVOOhoKHag3BjUQ6AEIMjAC#v=onepage&q=v%C3%A1rios%20autores%20google%20book%20timor&f=false>

¹⁷ “What is La’o Hamutuk?” (2002, Dezembro). The La’o Hamutuk Bulletin Vol. 3, No. 8. Nota de Rodapé. Página consultada a 29 Outubro 2018,
< https://www.laohamutuk.org/Bulletin/2002/Dec/bulletinv3n8.html#Analyzing>

² Neves, Guteriano Nicolau S. (2006, Julho) “The Paradox of Aid in Timor-Leste”. La’o Hamutuk. Página consultada a 28 Outubro 2018,
<https://www.laohamutuk.org/reports/06ParadoxOfAid.htm>

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