013 – Quinto Dia, a Caminho de Com
Adormeci às nove da noite, e acordei às quatro e meia da manhã. Dormi outra vez que nem um anjinho, mas ainda estou com os sonos um bocado destrambelhados. Às nove eu já não me aguento em pé. Mas este horário não é mau de todo, convém é acordar um pouco mais tarde, porque às quatro e meia da manhã ainda não posso fazer nada. Só amanhece às seis e meia. É noite cerrada. Enfim, é demasiado cedo para ir andar de bicicleta. Resta-me esperar. Os galos é que já cantam. Antes das cinco da manhã já cantam todos, vai aqui um cantorio…
Hoje terei uns magníficos 47 km de bicicleta e vou em direção a Com.
Começo já com a rotina habitual: besuntar-me toda com o protetor solar, fator 50, e a seguir o anti-mosquitos. Eles – os mosquitos – a esta hora, de madrugada, atacam muito. Antes de irem dormir querem ir de barriga cheia. A minha preocupação é mesmo a malária. Conforme contei na crónica 2, eu não estou a tomar os comprimidos da malária, que me custaram uma fortuna: vim carregada de comprimidos diários para um mês, e agora não posso tomá-los porque fazem doer-me o estômago. Portanto tenho que ser muito cuidadosa e pôr sempre o spray anti-mosquitos. Não dou tréguas. Vão perdoar-me a linguagem (vou dizer uma asneira): o cabrão do mosquito não me há-de picar.
São 6.30h da manhã, e vou dar uma volta de bicicleta. Juntamente à palavra “malai”, que significa estrangeira, comecei a ouvir outra: “malai bonita” – dizem-me, sobretudo as mulheres, já que os homens supostamente têm de ter alguma contenção. Eu rio-me. “Obrigada”, respondo. “Nada”, retribuem-me, rindo-se também. São todas palavras em comum, entre o tétum e o português. Bom dia, boa tarde e boa noite também são iguais em tétum. E rapidamente percebi que desconhecem o “olá“. Ninguém me responde quando digo “olá”. Pelo que passei a dizer bom dia ou boa tarde, e recebo sempre resposta, com outro bom dia ou boa tarde também. Efetivamente agora no início ainda sou eu a primeira a ser cumprimentada. Mas rapidamente aprendi a ser rápida nos cumprimentos e vou distribuíndo bons dias pelo caminho, na bicicleta, centenas de vezes. Se me cruzar com uma centena de pessoas, é uma centena de vezes que digo bom dia. Estamos numa ilha pequenina, toda a gente se cumprimenta. E o Valério apita na pickup. Todas as motas, carros e pessoas com quem nos cruzamos, há uma troca de cumprimentos com uma buzinadela. E também me cumprimentam a mim, na bicicleta. Eu não sou amiga de buzinadelas, é barulho a mais, e reajo melhor aos mais sofisticados, que me fazem sinais de luzes. Levanto a mão do guiador e aceno rapidamente, com a palma pousada no guiador. Não convém largar o guiador, sobretudo em terreno acidentado. O pior é quando eles ainda me respondem outra vez, desta vez com uma buzinadela. Ai.
Ficou desfocada, é pena, mas mantive-a.
O letreiro diz: “Escola Primária Pública nº 1 Baucau. Amigo, põe os livros na sacola, e vamos pra escola, pois se chegarmos tarde, vão-nos dizer boa tarde”.
As mensagens nos maços de tabaco são iguais às nossas. Destaco a língua tétum: “Fuma kauza impoténsia”. Escreve-se de outra forma, mas diz-se igual, portanto. Daí a facilidade em ir percebendo palavras aqui e além, nas conversas com as pessoas.
De regresso ao hotel, às 7h. Só servem o pequeno almoço a partir das 8, pelo que o recusei logo na noite anterior. Mal de mim se estivesse à espera do pequeno almoço – ou matabicho – como se diz em tétum, até às 8. Antes de sair na bicicleta comi pão com manteiga de amendoim e leite com chocolate. Comi sentada na cama. Tenho sempre um saco de comida comigo, nos quartos – pão de forma e manteiga de amendoim, além dos pacotes de leite e também bolachas que trouxe de Portugal. Às 7 é hora de arrancar e o Valério já está à minha espera.
Cá está o Valério. Tem 35 anos, vive em Díli, é casado e tem 4 filhos: 13, 10, 4 anos e o último com 6 meses. Todas meninas exceto o rapaz de 10. Nasceu em Lospalos (lá chegaremos) e trabalha há 6 anos como motorista na Timor MEGAtours. A sua condução é exemplar, domina perfeitamente uma pickup 4×4 por estradas muito – muito – complicadas. Claro que adoraria apanhar-se com um carro de Fórmula 1 nas mãos.
Foi uma das meninas do grupo quem nos tirou esta foto. Passei-lhe a câmera, expliquei-lhe os botões, et voilà. É certo que a menina achou que a árvore lá em cima era mais importante do que as nossas pernas, mas pronto. O Valério vai algures mais para a frente, e ficará à minha espera. Pacientemente à minha espera, enquanto eu paro e entro em todo o lado, pelo caminho. Mal sabia o Valério no que se meteu quando escolheu a carreira profissional de motorista na área de turismo. Mal sabia ele que lhe ia calhar uma turista assim, ciclista, que geralmente vai devagar, com tanta coisa para ver e fotografar. Vai apanhar umas valentes secas à minha espera, coitado. Rapidamente vai começar a parar nas sombras que encontra, enquanto espera por mim. O Valério fica estrategicamente posicionado para ver-me passar. Alguma vez hei-de passar. Estamos na fase de conhecimento e habituação, ainda é tudo novo para ambos. De qualquer forma o Valério já teve uma experiência de acompanhamento de ciclistas na prova “Tour de Timor” em 2011, uma prova de ciclismo com a duração de cinco dias, e 550 km nesse ano de 2011. Pelo que percebo, o percurso e os quilómetros variam de ano para ano. Pelo que sabia perfeitamente acompanhar-me na pickup, mantendo-me sempre debaixo de olho, e estando atento à quantidade de água no meu cantil, por exemplo, para reabastecer se necessário. O que o Valério não esperava é que eu lhe dissesse que não quero um acompanhamento tão perfeito e tão zeloso. Eu não quero vê-lo, Valério, disse-lhe eu. (Coitado do Valério). O Valério tem que ir à minha frente, alguns quilómetros, e esperar por mim em pontos estratégicos, como cruzamentos. Eu quero andar sozinha, não quero ver carros, ou pelo menos vê-los o menos possível. Se vou no meio do campo, quero ir em silêncio. Não quero ouvir o motor da pickup.
E o paciente Valério seguiu o seu caminho, afastou-se, perdeu-me de vista. E eu perdi-o de vista a ele. Enfim, aqui estou eu a sós, nas mãos do povo timorense. E perguntam-me (perguntam-me sempre isto, em todas as viagens): não tens medo?
Já comentei isto em crónicas anteriores, e volto a comentar nestas de Timor: o mal está por todo o lado. Não foi encontrado o corpo de um ciclista agora recentemente em Portugal, em Avis, no Alentejo? Andou desaparecido, a mulher e o filho sem saberem dele, até que finalmente alguém encontrou o corpo. Foi morto. Uma tristeza. Ainda vamos descobrir o que se passou, cá aguardamos o trabalho da nossa magnífica Polícia Judiciária, aposto que vão descobrir. O perigo está onde menos se espera, portanto. Eu tanto posso morrer ao pé da minha casa, em Lisboa, como a milhares de quilómetros, na Ásia. Mas pensem: se calhar é mais fácil sermos apanhados nas nossas rotinas. Há algum timorense à espera de ver passar uma rapariga estrangeira numa bicicleta? Rapariga ou rapaz. Bem que podem esperar sentados. Calhou eu passar ali, naquele dia, àquela hora. Creio que ninguém estará plantado à espera que passe um ciclista, em Timor. Claro que pode haver um louco – louco na verdadeira aceção da palavra, com perturbações mentais, que me ataque subitamente, mas isso também não aconteceu já em plena ilha espanhola – Tenerife – por exemplo, onde um louco decapitou uma mulher que saía do supermercado, e andava com a cabeça dela na mão a passear, até que finalmente foi agarrado? O perigo está em todo o lado, repito. Está mesmo aqui junto a nós. Não podemos andar sempre com medo. Há determinadas precauções a tomar, e enfim, permitam-me meter uma colherada: numa bicicleta racing não seria assim tão fácil apanhar-me. De qualquer forma não andei em locais assim tão desertos. Há sempre casas, aldeias, crianças, várias pessoas a passar. Mais facilmente atacaria eu alguém… E senti por vezes alguma cautela por parte das pessoas com quem me cruzei. Se eu estou à sua mercê, efetivamente elas estão à minha mercê também. Mantenhamos a calma e o bom senso. O Valério continua atento e a esperar por mim ao fim de alguns quilómetros. E temos o telemóvel para nos contactarmos.