066 – A Vaca como Animal Sagrado
Parto novamente. Deixo Dhamli. Desta vez custou-me um pouco mais do que é hábito, afinal de contas tive o tratamento mais personalizado desta viagem, mimada todo o tempo pelo Thakur Inder, que ainda insistiu algumas vezes para eu ficar mais um dia. Não posso. Tenho de partir, tenho de ir conhecer novas terras. Não sei o que me espera, cada local onde chego é uma incógnita, e isso espicaça-me a partir.
Desviem-se vocês e é se querem, que eu sou um animal sagrado… Posso fazer o que quiser… Dois autocarros? Problema vosso! Desviem-se… Passem como quiserem, que eu estou aqui muito bem e não saio…
Ora bem.
Umas boas fotos para abordarmos este tema – o da vaca como animal sagrado. No outro dia uma amiga perguntou-me se eu sabia porque era um animal sagrado, a vaca. Vamos então investigar o assunto.
E vou logo parar a um livro que chegou a estar proibido na Índia. Nada melhor para acicatar a curiosidade, banir um livro. Foi só ler estas palavras e entrei no Amazon para comprá-lo:
“The Myth of the Holy Cow” (“O Mito da Vaca Sagrada”, sem tradução para português), do eminente historiador indiano Dwijendra Narayan Jha, da Universidade de Delhi. Nele se mostra que o hábito de comer carne era bastante comum na sociedade hindu primitiva e nele é ainda condenado o fundamentalismo em torno da santificação do animal, imposto pelos principais grupos religiosos da Índia. Estes mesmos grupos, é claro, baniram o livro e recomendaram que os exemplares à venda fossem queimados. A capa do livro traz um comentário do jornal “Observer” que diz tudo: “Desde os Versos Satânicos de Salman Rushdie que um livro não causava tamanha reação violenta”. Por treze euros, já com portes incluídos, veio do Reino Unido para a minha caixa do correio.
A tradição da vaca como animal sagrado nasceu de facto com o hinduísmo. Os Vedas, coletânea de textos religiosos de cerca de 1500 A.C., comentam a fertilidade do animal e associam-no a várias divindades. A vaca seria o transporte do deus Shiva, por exemplo. Outra escritura hinduísta fundamental, o Manusmriti, compilado por volta do século I A.C., também enfatiza a importância da vaca para o homem. Nos séculos seguintes foram criadas leis elevando gradualmente o status religioso bovino. No sistema de castas que vigora na sociedade indiana, a vaca é considerada mais pura até do que os brâmanes (indivíduos pertencentes à casta mais elevada, dos sacerdotes), por isso não pode ser morta nem ferida e tem passe livre para circular nas ruas sem ser incomodada. O seu leite, a sua urina e até mesmo as suas fezes são utilizados em rituais de purificação.
Segue a tradução parcial do prefácio do livro:
“… Apesar de evidências históricas contrárias, [os Hindus comunalistas e as suas organizações fundamentalistas] agarraram-se à ideia de que este animal foi sempre sacrossanto e inviolável, e que os seus ancestrais, especialmente os Indianos Védicos, não comiam a sua carne. Eles associaram igualmente a ingestão de carne de vaca à vinda do Islão, tratando-a como uma marca da comunidade Muçulmana. A presente obra argumenta, pelo contrário, que a “santidade” da vaca é um mito e que a sua carne fazia parte do regime alimentar não-vegetariano e tradições dietéticas (…). O argumento sublinha o facto de que comer carne de vaca não foi um “legado ruinoso” do Islão à Índia, nem a sua abstenção pode ser considerada uma marca da identidade “Hindu” …” ¹
Fiquemos agora com a explicação detalhada do jornal New York Times, artigo que saiu na altura da publicação do livro, com comentários do próprio Dwijendra Narayan Jha:
“… E durante 10 meses o Sr. Jha foi obrigado a deslocar-se de e para a universidade escoltado por polícias. (…)
A sua ofensa? Dizer o que os eruditos já sabiam há muito tempo: os primeiros Hindus comiam carne de vaca.
O Sr. Jha afirma que o seu livro foi uma vítima nas guerras culturais que se tornaram numa praga na Índia desde que a linha dura do Partido Hindu nacionalista Bharatiya Janata assumiu o poder há cinco anos atrás. “As linhas da batalha estão claramente desenhadas”, disse ele. “De um lado da barricada estão as ideias de pluralismo cultural, racionalismo e valores democráticos. Do outro lado estão o fundamentalismo Hindu e o nacionalismo cultural”. (…)
Neste contexto, até a comida se tornou politizada pelos Hindus nacionalistas ao usarem o seu vegetarianismo para se distinguirem da minoria nacional Muçulmana que come carna de vaca, sendo assim implicitamente imoral. (…)
A partir do ano 500 D.C., escreve o Sr. Jha, matar vacas tornou-se cada vez mais um tabu – de acordo com os textos religiosos, uma prática pecaminosa associada à camada social mais baixa, os intocáveis. Em parte, especula, a mudança na atitude oficial pode ter coincidido com a explosão da agricultura. A vaca, de cuja força (para arar a terra), excrementos (para combustível) e leite dependia a comunidade, era demasiado valiosa para se matar.
Outros escolares, todavia, afirmam que o tabu se deve mais a fatores intrinsecamente ligados aos Hindus, Budistas e Jainistas: a crença na reincarnação, que dissipa as linhas entre humanos e animais, e a doutrina da ahimsa, a não-violência.
“A sensação que as pessoas têm sobre matar animais e acabar com as suas vidas, é a base disso”, diz a Sra. Doniger [professora de história da religião na Universidade de Chicago] “Obviamente, as pessoas sentiam-se culpadas. Cada vez que se come carne de vaca, isso significa que alguém matou uma vaca”…” ²
Algumas pessoas, de todas as castas, incluindo as mais altas, deixaram para trás as suas profissões para se dedicarem exclusivamente ao bem estar das vacas mais fragilizadas e/ou mais velhas, criando vacarias que são sustentadas por eles próprios e por outras pessoas que lhes vão dando donativos. Entre estas pessoas, podemos encontrar políticos, médicos e toda uma variedade de profissões.
Resumindo e concluindo: o tema da sacralidade da vaca não é unânime. Não se tem a certeza sobre a sua origem, sabe-se apenas que existem inúmeras referências a si nos escritos religiosos. Sabe-se também que no passado histórico os indianos comiam carne de vaca. E que na história recente existem motivos políticos por detrás: exacerbado nacionalismo hindu versus comunidade islâmica.
Deus Shiva & Vaca
Deus Shiva & Vaca
¹ Jha, Dwijendra Narayan, “The Myth of the Holy Cow”, Londres / Nova Iorque, Verso, 2002.
² Eakin, Emily (2002) “Holy Cow a Myth? An Indian Finds The Kick Is Real”, New York Times, 17 de Agosto. Página consultada a 12 de Setembro de 2009, <http://www.nytimes.com/2002/08/17/books/holy-cow-a-myth-an-indian-finds-the-kick-is-real.htm>